“Oi, Fred
Queria saber algo sobre culpa. Sou uma pessoa que se cobra muito. Me preocupo demais com os detalhes e as consequências de tudo. Muito disso acho que vem por conta da relação com a minha família.
Meus pais e irmãos possuem profissões boas e ganham dinheiro com isso, construíram ótimas carreiras. Eu acho que não estou no mesmo patamar e sinto, ao mesmo tempo, que não é uma grande ambição minha. Também sinto que não tenho as qualidades necessárias. Por exemplo, não gosto de confrontar as pessoas, discutir com elas ou deixá-las desconfortáveis por algum desentendimento.
Tanto que sempre me vejo evitando esses confrontos. Acho que me preocupo muito em ter a reação certa e acabo me tornando muito introspectivo e pensativo com relação às minhas próprias atitudes. Parece que estou sempre desejando ser alguém melhor, ter as melhores relações, deixar tudo em sua melhor forma.
Às vezes sinto que estou sempre me reprimindo e olhando como se tudo que faço fosse errado. Como se eu fosse inexperiente e ignorante em tudo, sem sentir confiança para aceitar meus defeitos.
O problema é que essa culpa me consome muito. Fico mal, fico pensativo nas tarefas da vida, em como subir, ir sempre pra frente, não errar com minhas escolhas, minhas palavras, meu jeito de ser.
Queria entender melhor a culpa.”

Caro Y,

A culpa é um dos meus temas mais caros, afinal, sou um culpado de carteirinha que “só por hoje” tento não me culpar.

Muitos usam o termo culpa católica para falar do assunto, mas acho até meio ingênuo pensar que uma religião criou um sentimento. Ela pode evidenciar, reforçar e se aproveitar disso, mas criar não o cria. O que a religião cria – assim como a filosofia, a ciência e qualquer outra visão normatizante – é a visão de mundo que estabelece qual é a risca que separa o bem do mal, o certo do errado, o justo do injusto.

O bom, o mau e o feio. Todos culpados

O que consideramos como digno de culpa ou condenação moral nada mais é do que a transgressão de um conjunto de regras construídas socialmente para regular um determinado grupo de pessoa numa determinada época histórica. Ela não é imutável por natureza, mas sempre mutante já que a própria estrutura da sociedade se reformula criativamente e estimula novos tipos de comportamentos, regras e transgressões. Por exemplo, numa época a pena de morte é legítima e em outra passa a ser questionada até o ponto de ser abolida.

A culpa que muitos sentem costuma ser reflexo da imagem de transgressão do conjunto de regras absorvidas de uma cultura pelo ciclo de pessoas significativas que influenciaram sua formação. Seu pai aprendeu com o pai dele, reformulou ao seu modo e repassou a você que vai absorver ao seu modo e repassar aos demais e assim por diante. É um grande telefone sem fio de gente “cagando regras” para o bem viver.

Visão binária

A culpa é filha predileta da visão dicotômica da vida que separa tudo sempre em duas categorias e não comporta paradoxos e complexidade.

Certo e errado são visões que podem ser questionadas até as últimas consequências, como vemos em bares e em tribunais. Podem ser distorcidas e apropriadas de forma bem particular.

Certeza absoluta não existe. O que vale cegamente num contexto pode ser bem inútil em outro.

Se cada grupo tem um conjunto de visões específicas da realidade moral que coabitam, é curioso perceber como um moleque que participa do tráfico de drogas pode se sentir culpado de ter sido gentil com um amigo ou carinhoso com sua namoradinha porque se distraiu da sua função “profissional”. Ele sente culpa por transgredir aquele conjunto de normas em que a regra é ser cruel, frio e impiedoso.

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Nesse aspecto, a culpa que você sente por tudo pode ser só uma transgressão bem pessoal de uma regra inventada pela sua família e que nada tem de transcendente e universal. Talvez seja um punhado de achismos baseado em experiências amarguradas de pessoas frustradas que resolveram ter filhos e passar sua moral sobre o que é “bom” na vida.

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Transgredir esse tipo de regra, nascida do rancor e de uma visão mesquinha da vida, é até um favor que nos fazemos, afinal o custo de perpetuar a ignorância e a infantilidade é bem alto.

Culpa como prepotência

De outro lado também penso que a culpa é uma forma de presunção, como se fôssemos obrigados a ter o controle prévio de todos os resultados de nossas ações.

Já vi muita gente fazer uma aposta em algo e, caso a expectativa se cumprisse, apontava a si mesmo como um gênio. Se ficasse frustrado, dizia que era um erro. É como se quisesse subverter a lógica a partir do resultado e nunca assumisse que fez escolhas que pareciam acertadas, mas que naufragaram. Raramente questionamos que ter nossas expectativas cumpridas nem sempre é um bem em si.

A falsa ilusão de que o destino da vida está assegurado em nossas mãos é que cria espaço para a culpa.

Depois da ação realizada, o sujeito se tortura em múltiplas hipóteses do que deveria ter feito de “certo” para não evitar a besteira. É uma roda sem fim de hipóteses sem sentido que se tornam instrumentos de auto-tortura.

Auto-bullying

Se pudesse dissecar a mente de um culpado crônico, veria um Eu que age impulsivamente, um Eu que avalia/controla/pune/recompensa a ação baseado em certo grupo de valores/regras e um Eu oprimido que responde efetivamente pelas consequências do que fez. Freud chamou esses eus de id, superego e ego, respectivamente.

Eu brinco que a pessoa culpada tem um eu avaliador parecido com uma tia velha, chata e implacável que faz bullying com o ego.

Se o ego sai um pouco do cercadinho que o superego determinou como O Certo, logo recebe uma chicotada desproporcionalmente agressiva. Se a pessoa foi educada por pessoas muito intransigentes e até sádicas provavelmente absorveu valores fechados e rígidos e pode ser que ela fique se debatendo com culpas infinitas, ainda que despropositadas e não-construtivas. Essa culpa não produz melhora ou amadurecimento, só peso desnecessário e fuligem psicológica.

Daí, a pessoa faz um monte de coisas para tentar se corrigir de um erro que não foi um erro e piora ainda mais sua situação. É o auto-bullying.

Autossabotagem

Existe, também, um ciclo de autossabotagem em que a pessoa se pune por sentir algum tipo de prazer ou felicidade imerecida. O cruel é que essa sensação de mérito ou demérito é baseada numa espécie de legislação psíquica. Como um cachorro maluco correndo atrás do rabo e que raramente leva para algum tipo de aprendizado real.

Nessa autossabotagem surge um ciclo de pisar na merda, buscar outros motivos para se punir e repetir tudo outra vez.

Desculpas

Nesse cenário de autoenganos retroalimentados surgem as desculpas sociais que não refletem apenas uma tentativa de limpar a própria autoimagem denegrida. Quando alguém pede desculpas, é um apelo aflitivo para que o outro não deixe de amá-lo porque foi desleal ou contraditório.

A retratação ou busca de resgate de consciência boa é mais um alívio do peso do que uma real remodulação de si mesmo. É uma tentativa de passar a borracha sem nem pensar no impacto da ação e assim assumir esse vício como se fosse algo valioso. Normalmente, depois do pedido de desculpas a culpa abaixa, o sujeito relaxa, volta a fazer o ato impensado e o ciclo de desculpas retorna.

Meu caro Y, precisamos ficar atentos nessa areia movediça de regras incoerentes com retratações sem sentido e múltiplas automutilações psicológicas.

A culpa dificilmente representa avanço, mas é um sinal de um jogo de vitória-derrota que só realimenta o autocentramento e o orgulho.

Frederico Mattos

Sonhador, psicólogo provocador, é autor do <a>Sobre a vida</a> e dos livros <a href="https://amzn.to/39azDR6">Relacionamento para Leigos"</a> e <a href="https://amzn.to/2BbUMhg">"Como se libertar do ex"</a>. Adora contar e ouvir histórias de vida no instagram <a href="https://instagram.com/fredmattos/">@fredmattos</a>. Nas demais horas cultiva a felicidade