“Oi, Amuri.
Ganho bem, tenho certa estabilidade, gosto do meu trabalho e tenho uma poupança de aproximadamente R$ 90.000,00, fruto da venda de um apartamento, há coisa de 5 anos.
Sei que preciso me organizar financeiramente, uma vez que todo mês eu lasco um pedacinho da minha poupança, mas não consigo fazê-lo. A verdade é que só de pensar na ideia de mexer com números e planilhas eu sou tomado por um desânimo sem fim.
Ano passado gastei R$ 16.000,00 da minha poupança, nem sei bem com o quê, só com as retiradas mensais que utilizo para deixar minha conta corrente no positivo. Quando penso nisso bate um desconforto, fico chateado, mas passa rápido, e eu sigo nesse ritmo confortável (e insustentável).
Estou preocupado.
Como encontrar ânimo?
O que fazer?
Obrigado”
Querido amigo bon vivant, tomarei a liberdade de ser bem franco nas minhas colocações. Na verdade você não está, de fato, muito preocupado. Você gostaria de estar (uma vez que sua situação realmente carece de atenção), mas não está. E isso é bastante comum e compreensível.
Vou contar brevemente a história do participante mais dedicado e esforçado que já passou pelo Pó Mágico, curso que ministro no lugar. Vou chamá-lo de José.
José decidiu se separar da esposa, com quem tinha 3 filhos, havia 6 meses, porém não estava conseguindo sair de casa, uma vez que suas finanças estavam bem, bem, bem apertadas. Conta no vermelho, cartão de crédito quase no limite e uma vontade imensa de ter o próprio canto para dar um recomeço pra vida e receber os filhos no final de semana.
O curso começava às 19h, porém eu sempre chegava mais cedo, às 17h30, para organizar as coisas, e sempre deixava claro para a turma que eles poderiam fazer o mesmo, caso quisessem tirar dúvidas ou esclarecer um ponto mais específico. O José chegou às 17h, meia hora antes que eu, todos os dias.
Assim que eu entrava na sala, ele já estava de caderno aberto, folhas e folhas preenchidas, mil dúvidas.
No intervalo, na hora do café, José me cutucava, pedia desculpas por atrapalhar o único momento em que eu poderia ficar um pouco mais quieto, e dizia que queria que eu revisasse o plano que ele havia feito para resolver o turbilhão em que ele se encontrava.
Não era raro eu ficar 30 ou 40 minutos a mais, depois do término da aula, ajudando a resolver alguma dúvida que ficara.
Ninguém aproveitou tanto o curso quanto o José.
Ele seguiu todos os pitacos que dei, leu todos os livros que sugeri, incentivou todos na sala a fazerem o mesmo e, 60 dias depois, no grupo de Whatsapp da turma, mandou fotos da mesa que havia feito para decorar a sala do apartamento novo, ainda meio capenga.
Sobre pegar impulso no fundo do poço
Essa história me atormenta até hoje.
Na enorme maioria dos casos, precisamos chegar ao fundo do poço para encontrar a energia necessária para protagonizar uma mudança. José teve sorte, porque a situação dele ainda estava longe de se tornar realmente grave. Em 60 dias ele endereçou tudo e já estava com a vida no trilho. Em 6 ou 7 meses, se tudo corresse bem, as coisas estariam totalmente resolvidas.
Atendi um rapaz do interior do Paraná, advogado em começo de carreira. Baita boa vontade, organizamos tudo, dívida por dívida. O poço dele, porém, era bem mais fundo.
Entre parcelamentos e reparcelamentos, em uma perspectiva otimista, demoraríamos 7 anos (84 longuíssimos meses) para quitar a dívida toda. Pelos próximos 2500 dias, esse cara dormiria e acordaria sabendo que estava endividado. Situação complicadíssima.
De onde vem a apatia financeira?
Pelo que pude perceber, nossa apatia financeira parte de algumas bases. Como nossa relação com o dinheiro é emocional – e não exata, ao contrário do que muitas vezes pensamos –, é provável que você não se enquadre, especificamente, em uma, mas que oscile entre todas.
1) Ilusão de que o planejamento é algo necessariamente complexo e dolorido
Achismo infundado de que o planejamento financeiro necessariamente envolve planilhas, cálculos e gráficos pizza e que o momento de fazê-lo será longo e tedioso.
Com isso, surgem, respectivamente: a preguiça de começar e, em seguida, a hipersenbilidade, que faz com que chutemos o balde e deixemos o planejamento (ou o aplicativo de celular) de lado logo no primeiro deslize.
Nos faltam exemplos de planejamentos simples, rápidos e flexíveis. Na ausência desses referenciais positivos, ficamos com a imagem do chato planilheiro na cabeça. Nada atraente.
2) Crença orgulhosa de que tudo vai dar certo
De forma velada e elegante, temos a crença de que somos mais inteligentes e capazes do que a média, em especial no campo intelectual. Na fase adulta, esse campo se conecta direta ou indiretamente com a vida profissional.
Mesmo que disfarçada sob a forma de uma insegurança charmosa, assumimos uma postura de desdém, de quem se percebe notoriamente a frente dos demais.
Por que cuidar com zelo dos recursos que temos hoje se, lá no fundo, no fundo mesmo, sabemos que somos capazes de produzir muito mais quando quisermos?
Por que agir da mesma maneira que a maioria, que se preocupa com o dinheiro, se estamos em outro patamar?
3) Medo de se perceber incapaz de lidar com as possíveis restrições que o planejamento trará
Aversão à tensão que surge quando nos percebemos privados das nossas vontades.
Importante frisar – e isso parece uma diferença sutil, mas não é – que o que incomoda por aqui não é o medo de ficar sem um mimo do qual gostamos, mas sim o medo de se perceber incapaz de lidar com o desconforto que surge mediante a privação do mimo.
Ficar sem uma viagem de férias não é, realmente, o que incomoda. O que incomoda é se perceber tão falível, tão pequenininho, ao ponto de não saber lidar com o desconforto que surge quando percebemos que a viagem não acontecerá.
4) Visão limitada a respeito das possibilidades que o dinheiro traz (e os papeis que ele pode exercer)
Muitas vezes compreendemos o dinheiro de forma bem simplista e rasa, como se a única coisa que ele pudesse nos trazer fosse luxo e conforto.
Esquecemos que ele pode assumir papeis mais elaborados e fascinantes: pode nos conceder o privilégio de fazer escolhas (trabalhar com isso, e não com aquilo), pode servir de corrimão (cagadas acontecem a todo momento), pode sustentar nosso direito de impor limites (“não vou fazer isso, chefe”).
O entendimento raso faz com que enxerguemos só os benefícios menos interessantes.
O que fazer?
O simples fato de se dedicar ao entendimento da questão já funciona como um primeiro passo, especialmente porque, durante esse processo, será inevitável um mergulho na origem do problema. É na desconstrução que se abre espaço para uma nova postura.
Adianto que, pelo que já experimentei por aí, processos freudianos de escavação da infância e relação com pai e mãe tem seu brilho e utilidade, mas não bastam e, não raro, desaguam em jornadas intermináveis.
A reflexão e a busca por objetivos factíveis que sirvam de motivação (como a guinada de vida do José) também costumam servir de caminho. Além disso, vale repetir o melhor conselho financeiro de todos: fale sobre dinheiro.
Para darmos continuidade ao papo, boas referências que embasaram essa resposta e que valem o tempo:
- Pare de se enganar, você precisa lidar com o dinheiro;
- E se falássemos de dinheiro como falamos de futebol?;
- Reserva financeira: o direito de chutar o balde;
- O capítulo sobre dinheiro do Sobre a arte de viver, livro excelente do sociólogo inglês Roman Krznaric.
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