Após cabeçadas doloridas (ou boas sessões de terapia), a gente aceita que dentro de cada entidade – pessoa, instituição, empresa, igreja – cabe um mundo. Ninguém é só bonzinho ou só malvado. Dançamos entre mil facetas, umas nobres, outras nem tanto. Somos um emaranhado.

Enquanto consumidores, porém, precisamos de olhar atento. O jogo corporativo e publicitário ficou tão refinado, mas tão refinado, que ao invés de buscar uma imagem imponente e sólida, os novos CNPJs se escoram em camaradagem e propósito nobre.

Estamos vivendo a era das empresas fofas.

Olha pra cá, olha

Há 10 anos era necessário muito dinheiro para atingir a massa. O minuto no intervalo da novela custava uma fortuna. A página da revista semanal idem. Atualmente, porém, (essas mídias continuam muito caras, mas…) passa-se mais tempo na telinha do smartphone do que na telona da TV, e é para lá que migrou a sede do mercadão que comercializa um dos nosso bens mais preciosos: nossa atenção.

Até pouco tempo, a mecânica era simples e copiava o modelo de negócio anterior, ou seja, quem tinha muito dinheiro investia um monte em mídia (Google Ads, Facebook Ads), atingia muita gente e forjava uma presença brutamontes em cima disso. Isso não funciona mais. Não tão bem quanto funcionava antes ao menos.

O setor chave da nova empresa: customer success

Agora a gente quer indicação de amigo. Chega de anúncio inundando a tela do computador. O que a gente quer é um post de um site menorzinho, com visual descolado, escrito por alguém que passa pelos mesmos problemas que a gente, dizendo o tanto que a empresa X ou Y o tratou bem.

O boca a boca ganha escala quando, ao invés de contar pro vizinho que o Nubank (aquele do cartão roxinho) é incrível, a gente posta um relato na timeline do Facebook. Esse relato é visto por mil pessoas, que também têm suas timelines, e que também se sentem muito felizes em compartilhar com seus amigos a boa nova.

Cientes e provocadoras do fenômeno, as empresas investem rios de dinheiro na criação de um setor inovador e extremamente importante, o customer success. Uma área pequena (mas com orçamento grande) inteira focada em garantir a satisfação do cliente, custe o que custar.

É essa área que "sugere fortemente" que os motoristas do Uber abasteçam os carros com balas e copos de água e que ofereçam descontos bem expressivos, caso os passageiros não se sintam confortáveis com a corrida. É ela, também, que protagoniza casos virais de sucesso, como o caso do Hector – rapaz que teve o lanche da madrugada cobrado duas vezes e que, para compensar, recebeu o estorno e, além disso, uma sanduicheira cor de beterraba, com uma lista de receitas escritas a mão.

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A personificação das empresas

Todo esse investimento de dinheiro e tempo tem por objetivo criar uma persona agradável, que inspire confiança e que torne o processo de identificação (que resulta em compra e faturamento) o mais fácil e rápido possível.

Em tempos de manada, queremos nos sentir únicos. Slogans são ineficientes nessa empreitada. Não basta dizer "Feito para você", ou dizer que é o "Banco do juntos", tem que convencer que, quando mais precisar, estará lá, tratando feito gente, e não feito número. O mercado se sustentou dessa promessa por muito tempo.

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Com a democratização dos meios de informação, estamos presenciando a criação de personagens completos. Alguns revertem em faturamento, outros não.

Onde mora o perigo?

O atendimento de eficiência duvidosa, a fachada imponente, o posicionamento sisudo, tudo isso contribui para que nós, consumidores, criemos um senso crítico aguçado. Nos interessamos em saber o que está nas entrelinhas, o que não está dito, aquela taxa que não foi tão divulgada assim, aquela ressalva que não apareceu nos comerciais, aquela sensação de que, mais dia, menos dia, vamos tomar prejuízo. Essas são as empresas mais tradicionais, old school.

Ao interagirmos com empresas fofas, que escrevem com português impecável e que escolhem com muito cuidado qual a cor utilizarão em seus anúncios, nossa tendência é abaixar a guarda. A gente confia que está tudo certo.

O perigo está aí. Na cegueira. Quando a barra da paixão sobe e a barra do ceticismo desce, quem está exposto somos nós. Abre-se margem para que a empresa aja única e exclusivamente de acordo com suas metas, de maneira não vigiada.

Não estou afirmando que as empresas fofas são, na verdade, seres malignos travestidos de ursinhos carinhosos, mas afirmo, sim, que são empresas. Neutras. Que causam impacto na sociedade, que possuem acionistas que buscam lucro e que, vez ou outra, botam os pés pelas mãos e fazem cagada. É importante a gente não esquecer disso, nunca.

Como se posicionar diante disso tudo?

Uso Uber quase todos os dias, me entupo de bala e sempre pego um ou dois copos de água. Quando viajo, minha primeira opção é o AirBnb e eu só não uso o Nubank porque não utilizo cartão de crédito com frequência.

A questão não é deixar de usar, a questão é se manter atento, questionador, curioso.

Temos que manter a luz acesa, saber como as empresas estão lucrando (elas estão, juro), o que buscam de fato, como tratam todos os envolvidos na cadeia (o motorista do Uber, o atendente da Nubank, enfim, todo mundo que viabiliza o mundo cor-de-rosa).

***

Nas próximas semanas, vamos destrinchar o modelo de negócio de algumas das grandes empresas que investem pesado na relação com os consumidores. Começaremos pelo Uber.

Como funciona o preço da quilometragem? Quanta ganha um motorista em tempo integral? Paga imposto? A competição com o táxi é desleal? Vale a pena usar todo dia? O tal do Uber Pool funciona mesmo?

Quais outras curiosidades vocês teriam?

Quais outras empresas e modelos de negócio valem nossa atenção?

Seguimos o papo nos comentários.

Eduardo Amuri

Autor do livro <a>Dinheiro Sem Medo</a>. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças