Nota: esse texto faz parte de um percurso que começou aqui.

Cobra muito barato, tem bala, tem água, tem ar condicionado, tem uma equipe de usabilidade muito competente e promete revolucionar o transporte. É difícil resistir.

Nossa pequena análise vai tombar pra lá e pra cá, vai abrir pontos positivos e negativos, vai apontar dedo e vai bater palma. Vamos brincar de vestir a camisa dos três times – da empresa, do motorista e do passageiro.

A única coisa que não vai dar pra fazer é negar uma verdade óbvia: enquanto empresa focada em crescimento e em retorno aos investidores, o Uber é genial.

O preço e o modelo de negócio

O Uber fatura por comissão. O modelo é ridiculamente simples, não tem nenhuma entrelinha. É só pegar o preço da corrida e multiplicar pelo percentual estabelecido pela própria empresa. É de lá que vem a grana que sustenta a operação.

Se tomarmos por base o momento em que este texto está sendo escrito (abril/2016), consideraríamos 25% para o UberX (reservado aos carros populares) e 20% para o Uber Black (reservado aos carros de luxo), ou seja, se a corrida custar R$ 10,00 no UberX, a empresa ganha R$ 2,50 e o motorista ganha R$ 7,50. No Uber Black a empresa ganharia R$ 2,00 e o motorista R$ 8,00.

A estimativa do cálculo do preço da corrida é feita de maneira automática, tomando por base o trânsito (em minutos) e a distância.

Parece complicado, mas não é. Utilizando como exemplo uma corrida que vá da Av. Paulista 1.000 até a sede do PdH, em Perdizes, aqui em São Paulo:

Destrinchando a conta:

  • Valor inicial de toda corrida: R$ 2,00

  • 10km de distância, multiplicado pelo valor do km, ou seja, R$ 14,00

  • 11 minutos de duração da viagem, multiplicado pelo valor do minuto, ou seja: R$ 2,86

Somando as três variáveis (valor inicial, distância e duração), chegaremos em algo próximo dos R$ 18,00 (que, com pequenas variações, é efetivamente o quanto a corrida me custa, sempre que preciso fazer o trajeto).

O aplicativo é integrado com o Waze (que sacada, pessoal) e, com isso, mitiga-se o risco de pegar um motorista picareta com tendência a caminhos especiais.

A primeira grande sacada

Nenhuma grande esperteza nos dados acima, afinal, o grande lance do Uber não está no algoritmo que calcula o caminho e o preço, nem na utilização bem feitinha do GPS que conecta o motorista ao passageiro.

Em linhas gerais, o Uber é genial porque, para crescer a passos alucinantes, precisa apenas de dois ingredientes: gente querendo ganhar dinheiro e tecnologia de ponta, e isso temos de sobra.

Não precisa alugar galpão, não precisa contratar montes de funcionários, não precisa inflar custo fixo. É só abrir vaga para novos motoristas e fazer a manutenção de uma equipe afinada de excelentes programadores (algo bem trivial para quem se criou no Vale do Silício).

O que o usuário quer, afinal?

Todo mundo quer ser bem tratado, claro. É gostoso entrar num carro limpo, é gostoso conversar com gente educada, é gostoso ter água e balinha à disposição. Tudo isso contribui para a construção de uma atmosfera que faz com que o usuário vá lá e conte pro amigo o quão incrível é o serviço.

Mas o diferencial não é bem esse (caso contrário a briga com os taxistas estaria resolvida se cada um destes investisse R$ 150,00/mês em mimos). Em tempos de moedas contadas, em que se enxuga de tudo quanto é canto, quem cai na graça do povo é quem cobra mais barato.

Quem comanda a briga é o preço.

É mais barato que taxi?

É muito mais barato. Mesmo sendo descuidado e tomando por base apenas a bandeira 1, temos:

  • Taxi: Bandeirada R$ 4,50, tarifa por km R$ 2,75 e tarifa por minuto R$ 0,55.
  • UberX: Bandeirada R$ 2,00, tarifa por km R$ 1,40 e tarifa por minuto R$ 0,26.

Deixando o julgamento de lado (é certo, é errado, pode, não pode), os taxistas não têm a mínima chance.

Pode oferecer a torta de limão da minha mãe, junto com o pudim de leite da minha vó. Eu sempre vou querer pagar (muito) mais barato.

A tentativa de fechar a conta

Sou usuário assíduo do Uber e o modelo sempre me pareceu muito esperto e redondo. Se é possível oferecer transporte de qualidade a preço justíssimo, por que não fazê-lo? Salvo os taxistas, extremamente descontentes (e com razão), quem mais haveria de ser contra?

Segui com crença intocável até que um amigo querido (e recém-demitido da empresa em que eu trabalhava) comentou comigo, feliz, quanto estava ganhando, trabalhando com Uber.

Animado e querendo seguir o assunto, perguntei: “Ah, mas esse valor é líquido, né? Depois de tirar o tanto que você gasta com gasolina, trabalhando 8 horas por dia”. E ele disse que não. Em seguida complementou, com orgulho: “Isso aqui é o que pinga na minha conta”.

Ajudei-o a refazer os cálculos, agora levando tudo em conta, e chegamos a conclusão que ele estava ganhando menos de dois salários-mínimos por mês.

Resolvi fazer uma pequena pesquisa, absurdamente informal, com metodologia questionável, partindo da base que eu tinha disponível:

Entrevistei as indicações (pessoalmente e por Skype) e fiz uma brincadeira com os números que eles me passaram.

Pequena ressalva

Passo longe de ser um pesquisador, então a coleta de dados carece de rigor e método. A ideia aqui é brincar com os números, apenas.

Não considerei aqui a manutenção ocasional, manutenção regular e depreciação, portanto os números certamente são ainda menores do que listei.

Todos os entrevistados são de São Paulo e pediram para manter sigilo sobre suas identidades, com medo de represálias da empresa. Portanto, os nomes são fictícios. 

As entrevistas

1)  Fernanda e João, casal Uber

O casal simpático reveza o volante, para ficar a maior quantidade de horas possível na rua. Antes, rodavam com um Honda Civic, que foi trocado por um Spacefox, que consome muito menos, quase metade.

Fernanda roda cerca de 48 horas por semana, focando mais nos sábados e domingos. Além disso, trabalha em tempo integral no setor administrativo de um escritório de arquitetura. Se somar as duas jornadas, trabalha 88 horas por semana (sim, é isso mesmo). Como motorista, fatura cerca de R$ 1.000,00 por semana.

João é ator é trabalha como Uber sempre que não está atuando. Acorda às 3h30 todos os dias e vai para o aeroporto, onde acha mais provável encontrar chamadas maiores. Trabalha até às 16h, todos os dias (exceto no rodízio). Atualmente faz cerca de R$ 250/dia, ou seja, aproximadamente R$1.500,00 por semana.

Consolidando os números, o casal fatura, por semana, R$ 2.500,00, nas suadas 106 horas de trabalho. Descontando a gasolina, o número cai para R$ 1.800,00. Chegaremos em R$ 7.200,00 por 424 horas de trabalho. O valor hora, até aqui, é de R$ 17,00.

Brincando um pouco mais com os números, precisamos lembrar dos demais custos, como o seguro (R$ 483/mês, uma vez que o casal optou por fazer um seguro comercial, não obrigatório e extremamente abrangente) e a troca de óleo (R$ 150/mês). Chegamos, então, em R$ 1.460/semana.

Descontando o IPVA e a provisão de férias, nosso valor final ficaria em R$ 12,33/hora, e o salário base mensal, considerando 8 horas de trabalho por dia, em R$ 2.071,44.

2) Gabriela, multifunção

A Gabriela trabalha como Uber de sexta pra sábado e de sábado pra domingo. Durante a semana, é funcionária pública de dia, e estudante de economia à noite. Extremamente articulada. De quebra, ainda administra uma pequena empresa de compotas e produtos artesanais.

Trabalha 18 horas por semana e fatura R$ 500. Considera o Uber uma experiência antropológica e acha dirigir um prazer. Sempre trabalha de madrugada, com um Megane Grand Tour.

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Por semana, gasta R$ 100,00 de gasolina. Sobram, portanto, R$ 400 que, divididos pelas 18 horas trabalhadas, resultam em R$ 22/hora.

Precisamos descontar, daqui, o seguro mensal (R$ 140/mês) e o seguro extra, exigido pelo Uber (R$ 72/ano), o IPVA e a provisão de férias. Chegaremos em um valor líquido de R$ 15,65/hora. Convertendo para nosso padrão, ficaremos em R$ 2.629,00 por mês.

Obs: no Uber, fez contato com um passageiro que pede uma corrida por fora toda a quarta-feira. A prática é bastante comum.

3) Rafael, biólogo, doutorando

É professor universitário e pesquisador, fez mestrado nos Estados Unidos, voltou para fazer o doutorado na USP e sofreu com o corte das bolsas e da verba de pesquisa.

Atualmente trabalha com Uber em tempo integral, embora também faça bico como astrólogo. “O Uber me possibilita seguir com a pesquisa”, ressalta com gratidão.

Trabalha com um Ford Ka por cerca de 9 horas durante a semana, todos os dias. Aos finais de semana, faz jornada de 14 horas, tanto no sábado quanto no domingo. Com isso, fatura R$ 1.100/semana. Descontando a gasolina, o número cai para R$ 800. Se descontarmos o seguro, o número cai para R$ 720. Descontando IPVA e provisão de férias, o valor líquido é de R$ 8,72/hora. Se considerássemos 8 horas por dia, 5 dias por semana, chegaríamos em um salário mensal de R$ 1,464.96.

4) Juliana, engenheira civil

Moradora do Anália Franco, a Juliana dirige 8 horas por dia, 6 vezes por semana. Perdeu o emprego há 1 ano e meio. Prefere rodar nos bairros mais elitizados (ao invés de ir para o aeroporto, por exemplo).

Trabalha de segunda a quarta durante o dia, e de quinta a sábado à noite (porque é dia de balada). Sempre tenta mirar R$ 1.200/semana, e gasta R$ 200/semana de gasolina em seu Renault Logan (que possui 8 meses de uso e 20.000 quilômetros rodados). Com isso, chega em uma média de R$ 21 por hora. Se descontarmos o valor do seguro, a média por hora cai para R$ 16,90/hora. Trazendo para nossa regrinha improvisada, de 8 horas por dia, 5 dias por semana, ficamos em R$ 2839,20 por mês.

Sobre a manutenção do carro e os dias de gripe

Normalizando a quantidade de horas e supondo uma média simples, nossa pequeníssima base ganha R$ 27.000,00 por ano, ou seja, R$ 2.250,75 por mês.

É desse valor que sairão todos os gastos relacionados a manutenção, sejam as revisões obrigatórias, sejam as batidinhas e raspões que eventualmente acontecerão.

Precisaríamos considerar também que esse valor certamente cairá por conta dos dias em que o motorista tiver algum problema pessoal (levar a mãe no médico, acordar com muita gripe, dentre inúmeros outros).

Outros pontos que surgiram em todas as entrevistas

As seguintes frases surgiram, com pequenas variações, em praticamente todas as entrevistas:

“Para ganhar um dinheiro razoável, é preciso trabalhar uma jornada muito, muito grande.”

“O Uber Pool – sistema de corrida compartilhado – é uma invenção dos deuses para o usuário, porém ruim para o motorista, uma vez que os desvios de caminho para pegar os demais passageiros jogam o gasto de gasolina nas alturas. O sistema de comissão é injusto”.

“Vejo o Uber como uma ocupação temporária”.

“O Uber era muito melhor há 3 ou 4 meses. A quantidade de motoristas cresceu de um jeito absurdo, e o valor que faturamos caiu de maneira muito significativa”.

“O preço dinâmico (sobretaxa por conta da escassez de carros disponíveis), que devia ser acionado com frequência, tornou-se algo bastante raro. Tem muita gente na rua”.

O Uber seduz: a segunda sacada

Recebi 49 indicações de motoristas para entrevistar, grande parte deles são esclarecidos e cultos.

É bem curioso o fascínio que criamos em cima da profissão, uma vez que a remuneração por hora não é atraente – se considerarmos o preço de entrada (a compra do carro) – e a jornada de horas é muito, muito extensa.

Conseguimos justificar com facilidade, porém. O trabalho de cultura empresarial é genial. “Ser uber”, de certa forma, é ser descolado. Criou-se uma atmosfera de incentivo, que martela com força a participação que os motoristas tem na criação de um mundo melhor. Todo mundo quer participar de uma grande causa. Não é de se espantar que torne-se tão natural tratar os passageiros tão bem, com tanto mimo (a média de gasto com balas e água entre os entrevistados é de R$ 90,00/mês).

Surge também a questão da liquidez. O motorista recebe na semana seguinte em que efetua a corrida, o dinheiro vem rápido. Não tem burocracia, não tem que esperar o dia 30, não tem que exercitar o músculo do longo prazo. Não é raro escutar algo próximo de um discurso meio american dream. “É só trabalhar que o dinheiro vem, a oportunidade está ai”.

O reforço positivo é outro ponto extremamente bem bolado. O esquema de notas – as estrelinhas, que qualificam o motorista e servem de base para saber com que frequência ele será chamado – funciona como tapinha nas costas. Todo mundo gosta de receber cinco estrelas. Cria-se um sentimento de diferenciação.

O amigo motorista que desencadeou as entrevistas todas me falou que “só dá pra fazer esse valor que eu faço se tiver nota máxima em todas as corridas”.

Problemas

A quantidade de horas trabalhadas é uma questão. Ninguém permanece são por muito tempo trabalhando dessa forma, especialmente se o local de trabalho for o trânsito de uma capital. Essa é a principal razão pela qual a renovação da frota é tão frequente. Ninguém aguenta, ainda mais quando a promessa de salário não se cumpre:

Veja mais aqui e aqui.

O motorista é a engrenagem que permite que o sistema rode desse jeito, cobrando valores muito abaixo da média praticada pelos taxistas, por exemplo. A conta “fecha” para a empresa (que lucra bem) e para o passageiro (que gasta pouco), mas eu questiono, de verdade, a viabilidade disso tudo para quem está na rua, dirigindo todos os dias.

Os números assustam, mesmo fazendo vista grossa para valores que impactam diretamente os resultados (como o IPVA e a depreciação).

Ao projetarmos o impacto na esfera social, surge outra questão. Ainda é nebulosa a maneira com que o Uber (e as empresas concorrentes que devem chegar no Brasil nas próximas semanas) vai interagir com o ecossistema que já existia por aqui (o taxi e o transporte público).

Falando sobre o táxi, uma vez que o custo de entrada e de operação (alvará, impostos, preço da bandeirada, quilometragem e minutagem, etc.) é muito diferente, falar sobre concorrência soa como piada.

Em se tratando do transporte público, o problema é mais brando, mas existe, já que hoje, com o Uber Pool, em 2 pessoas, vários trajetos saem mais barato que o bilhete do metrô.

Além disso, justificar a entrada e o sucesso da plataforma à desorganização das outras classes também é um argumento fraco, afinal, nosso teto é de vidro e nossos problemas são estruturais.

Veja mais aqui.

Sigo curioso, cheio de dúvidas e bastante aberto para debater os dados que foram exibidos no texto. Se você é motorista de Uber e se sente confortável para abrir seus números nos comentários desse texto, por favor, fique à vontade. Como citei, a pesquisa feita, embora cautelosa com relação aos dados, é amadora e carece de volume.

A única certeza por aqui é que a regulação – seja via Estado, seja via concorrência (essa é outra conversa) – é necessária e urgente.

Não dá pra ficar refém de acionista.

Eduardo Amuri

Autor do livro <a>Dinheiro Sem Medo</a>. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças