“Primeiro lugar, eu, segundo lugar eu e até o vigésimo lugar eu, se sobrar algo disso talvez sobre algo para ela.”
Assim começou uma consulta recente de um jovem rapaz, muito bem sucedido, que me procurou por conta de um cansaço físico brutal. Na verdade, seu cansaço não era físico. Era efeito colateral de uma vida extremamente focada em atender apenas às suas vontades.
Esse tipo de pessoa é o exemplo máximo do que poderíamos diagnosticar com um transtorno de personalidade narcisista. Mas longe do que imaginamos, o culto ao ego não é exclusividade de pessoas que estão no topo da sociedade ou que saem exibindo suas conquistas de forma esnobe.
O narcisismo está mais presente em sua vida do que imagina e provavelmente é fonte de grande parte de sua sensação pessoal de infelicidade.
Modus Operandi
O narcisista está sempre no jogo ganha-perde e competindo com as pessoas para se sobrepor em alguma área, mesmo que seja daquele que mais faz caridade.
Busca a previsibilidade para poder se antecipar e ganhar o jogo, por isso evita eventos ou situações inusitadas nas quais não tenha o repertório de comportamentos na manga.
Costuma sentir uma insatisfação crônica – quando não tédio – porque nada atinge sua expectativa ideal de si, e nada é o suficiente.
Com certa frequência acha que tem baixa autoestima, pois sendo perfeccionista, nada basta para satisfazer seu Olimpo performático. Não raro cai em “depressão” quando sua vida não alça o voo desejado.
A ansiedade é uma companheira constante por querer controlar antecipadamente cada evento que catapulte seu jogo de vitória.
Sua tortura constante é se comparar com todos estabelecendo onde está no ranking de competências pessoais. Se sente inferior (e raivoso) aos melhores e certa satisfação quando sabe que tem gente pior.
Suas relações são regadas de uma carência nem sempre manifesta, mas sempre exigindo que os outros atendam necessidades que nem sabem se podem ou querem atender.
O maior ponto cego de seus impasses com os outros é não conseguir ver como suas ações afetam os outros e mesmo que veja costuma não se importar e achar que tudo é um draminha.
Link Youtube | O modus operandi da mente narcisista resumida em 2:50 de música
O nascimento do Eu e os diferentes tipos
A personalidade humana nasce de um contraponto entre nossas necessidades básicas, associadas com tendências genéticas, modelagem parental e a realidade que nos cerca.
Quanto mais diversificada, fluida, flexível e afetuosa ocorrer essa jornada de um corpo que se transforma em pessoa, maiores serão as chances do surgimento de uma personalidade saudável, rica e expansiva.
Do contrário, quanto mais inflexível, fria, instável e tumultuada for essa travessia, menos recursos essa personalidade desenvolverá.
Ali nasce a base do conglomerado de nossas construções mentais a que chamamos de Eu.
O Eu encolhido
Quando uma pessoa desenvolve bases expansivas e adaptáveis, ela pode circular por diferentes ambientes e enfrentar variados cenários e, mesmo assim, seu tempo de recuperação e superação será melhor.
Personalidades frágeis apoiadas em poucas bases tendem a criar cascas mais rígidas. Quanto mais pobres forem os recursos psicológicos disponíveis, mais limitada será a identidade de alguém.
Aqueles que se orgulham se serem vistos como impetuosos, espertos ou serenos, na realidade, estão reféns de um só script. Para além disso naufragam, já que seu campo de possibilidades se restringe a uma ilha. Ser reconhecido por um único traço é sinal de pobreza psicológica e não de uma personalidade bem resolvida.
Eu e o outro
Só um ego saudável é capaz de reconhecer com clareza a existência do outro sem se perder, confundir ou projetar. Ainda que perceba que toda a relação é essencialmente interdependente ela sabe delinear com certa facilidade as fronteiras que distinguem as pessoas.
Um ego pequeno não conseguirá reconhecer as necessidades de uma outra pessoa senão para a sua utilidade. Isso fica muito evidente quando esbarramos com pessoas preconceituosas, agressivas ou declaradamente interesseiras. No entanto, esse traço utilitarista é mais comum do que se imagina.
O Eu utilitarista
O narcisista inconsciente de si jamais conseguirá pensar sobre um evento sem que esteja incluído no raciocínio. Sua baixa empatia o torna obtuso na arte de considerar os outros sem um fim pessoal.
Subliminarmente, só se interessasse por assuntos e pessoas que reforcem e potencializem suas ideias grandiloquentes. Aqueles que não aplaudem seus feitos com elogios, reconhecimentos ou reciprocidade serão descartados imediatamente.
De alguma maneira, sente que ele é sempre o ator principal dos acontecimentos, os demais são escadas para sua cena. Se vai a um casamento e a noiva atrasa ele fica indignado, como se ela estivesse consumindo seu tempo precioso. No trânsito, não consegue perceber que ele também polui e ocupa espaço dos outros carros. Nos compromissos, suas urgências são sempre as prioridades e pautas principais, ainda que não admita.
O amor e o ego
É muito curioso notar como superestimamos o nosso amor como se fosse totalmente desprendido de interesses secundários de reciprocidade. Certa vez ouvi de uma garota de vinte anos:
“Amo meu namorado de tal forma que ele nem precisaria me amar de volta.”
E eu rebati seu argumento purista relembrando-a de um acontecimento recente:
“Curioso. Você chegou muito triste na nossa sessão dizendo que ele nunca dava valor ao carinho que oferece a ele sem cobrar nada.”
Ela sequer desconfiava que a sensação de incondicionalidade de seu amor era falsa, afinal precisava do posto de Madre Teresa para sentir valor pessoal. O egoísmo declarado do namorado era parte do seu jogo secreto de “eu dou tudo de mim e nunca recebo nada dos outros”.
Além disso, o amor que diz sentir é sempre uma tentativa de se projetar sobre uma pessoa percebida como mais ou tão poderosa – inteligência, status, beleza – e assim reafirmar a si mesma. Numa bolsa de valores emocional aposta na ação que está em alta, descartando-a em caso de baixa.
Orgulho e suas máscaras
O narcisismo é o tipo de praga silenciosa que se metamorfoseia de muitas formas. Quero citar algumas características que podem ter como base o orgulho:
- Distração: eu preso no meu mundo.
- Falação verborrágica: minha fala é a mais importante.
- Radicalismo: as idéias que eu adoto são as melhores.
- Fanatismo: um grande eu que adoto como doutrina ou entidade suprema é a única verdade possível.
- Raiva: meu eu foi frustrado e não admite isso.
- Depressão: o mundo não atendeu meus caprichos, não vou mais brincar.
- Indignação: como você se atreve a contrariar minhas expectativas?
- Ressentimento: quero meu lugar supremo de pureza original de volta e você deve me dar.
- Ciúme: você é minha porque me reafirma e não pode me enganar pelas costas.
- Retidão: não sou como esses outros inferiores.
- Timidez: não me arrisco se não for para brilhar e agradar sem erros.
- Benemerência compulsiva: olha como sou bom para os outros?
- Má educação: minhas regras importam, não as suas.
- Mimo: o mundo não me atende então não terá nada de mim.
- Exibicionismo: só eu brilho.
- Ansiedade: quero ter controle sobre tudo, mesmo que não esteja no meu controle.
- Luto: não me conformo que morreu para mim
Esses exemplos simples só expressam a natureza do narcisismo: o exclusivismo e a supremacia do eu. Isso não acontece só com os vilões de filmes ou nas pessoas sem escrúpulos, mas em qualquer pessoa a qualquer momento.
O narcisismo é essa cegueira funcional que impede você de sair do seu próprio mundo para enxergar o quadro geral.
O sofrimento
O sofrimento do narcisista é só uma ferida na necessidade de estar acima dos demais. Perceber-se mortal, vulnerável, rendido ou dependente de algo ou alguém cria contexto para sua dor de não aceitar ter expectativas frustradas.
O narcisismo, em essência, é um apelo do ego para manter o status quo infantil, frágil e oprimido por vontades passivas de uma personalidade que se culpa ao invés de agir, que se deprime ao invés de encarar suas perdas, que se tortura ansiosa ao invés de fluir rumo ao desconhecido da vida.
Acho tão curioso quando vejo placas de assento reservado às pessoas com necessidades especiais, ou de “jogue lixo no lixo”, “urine no vaso”, como se fosse necessário nos lembrar constantemente do óbvio: os outros existem.
Perguntas que não querem resposta
Uma pergunta que talvez nos façamos lendo este texto é: todo mundo é narcisista? Ela esconde uma esperança de que talvez você não seja um desses. Qual seria o problema se todos fôssemos narcisistas? É muito estranho, absurdo ou bizarro? A maneira que construímos o mundo e a realidade contrasta ou reafirma essa ideia?
Existe saída? Quer dizer, será que você vai se libertar disso? Se todas suas perguntas só evidenciam um eu sedento de resposta, é bem provável que não haja saída.
Vejo algum tipo de caminho quando o ego se permite entediar, baixar guarda, nutrir menos esperanças vãs e mergulhar numa verdadeira jornada de diluição de uma identidade fixa, rígida e dona de si.
Consigo perceber faíscas de mudanças numa criatividade e generosidade que se aventuram para longe de fechar e beneficiarem a si mesmas.
Além disso, um certo tipo de gratidão e mansidão por consentir a vida como é, sem heroísmo ou saga épica, sem utopias radicalmente idealistas. Me resguardo a espiar o que se desdobrar nos comentários.
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