Ficamos chocados quando nos deparamos com um marido que tranca a esposa em casa.
Se a mãe belisca a filha pequena no meio do shopping, para que ela pare de correr, as pessoas percebem e imediatamente se colocam no lugar da menina, provavelmente extasiada por conta da quantidade de brinquedos, cores e lojas. Recriminamos a mãe e tememos pela adolescente que aquela criança vai virar.
Se o técnico do time dá um tapa na cabeça do atleta juvenil que perdeu o gol, nossa empatia aflora e nos sentimos compadecidos pelo sentimento triste que provavelmente assola o esportista.
Seja por meio da autoridade inerente a um papel social (o de marido ou o de mãe), seja por conta da força física, o fato é que presenciamos dinâmicas de dominador e dominado frequentemente.
Está tudo às claras, com o bom senso exercendo o nobre papel de juíz. É óbvio que vai dar problema, que não é saudável, que prejudica fortemente os dominados.
O problema é quando o processo não chama a nossa atenção, quando ele está escondido sob atos aparentemente inofensivos.
Travestido de cavalheirismo, carinho de pai e mãe ou camaradagem, muitas vezes sem perceber, utilizamos o dinheiro como uma forma muito eficiente, carinhosa e perigosa de dominar o outro, de manter a situação sob controle, de tapar buracos deixados noutras ocasiões.
Situação 1: Carinho de mãe
Chega a conta de celular em casa. Antes que a filha veja, a mãe pega a conta e paga. A filha tem 20 e poucos anos, é pós-graduada e assalariada, mas não sabe o valor da própria conta de telefone, não sabe qual plano possui, não tem ideia de quanto custa uma ligação. Ela sente-se grata pela atitude da mãe. Já tentou tomar a frente e pagar a conta, mas nunca com muita energia. É confortável. Dessa maneira sobra mais dinheiro para gastar com outras coisas.
A mãe, zelosa, fez uma poupança para a filha, depositando mensalmente um certo valor desde o nascimento. A filha sonha em mudar de carreira. Quer fazer um curso de teatro, conhecer outras áreas, se envolver em outros setores e pede para realizar um saque dessa poupança. A mãe não deixa. Artista morre de fome nesse país. Se ao menos fosse para fazer uma faculdade de verdade, defende.
Mas afinal, a poupança não era para o futuro da filha?
As situações aparentemente não possuem uma ligação clara, nem parecem estar intimamente relacionadas. Mas estão.
Talvez a mãe não perceba, talvez na cabeça dela isso seja uma atitude de amor, mas não deixar que a filha pague a conta de celular é uma maneira carinhosa e socialmente aceitável de reiterar a própria autoridade, de podar e conceder o direito de veto ao saque da poupança, sem deixar a consciência pesada. Afinal, é ela quem paga as contas e, principalmente, é ela que sabe o que é melhor para a filha.
Situação 2: A conta do jantar
A hora da conta é o momento perfeito para travestir a dominação sob a forma de cavalheirismo. O garçom entrega a conta para o homem, que estufa o peito e olha o valor. Abre a carteira, entrega o cartão e pede para passar todo o valor. A moça, sabendo das dificuldades financeiras enfrentadas pelo parceiro, diz que dessa vez vai pagar sua parte.
Como se tivesse sido pego fazendo coisa errada, o homem fica sem graça, quase que ofendido. Ele sabe que o melhor seria dividir, mas manda passar tudo no cartão.
A garçonete solta um gracejo ao casal: “Não se fazem mais homens assim hoje em dia”.
O cara se sente bem, a moça se sente cuidada e ambos voltam para casa.
Chega a fatura do cartão. Ele não tem a grana para pagar e sente-se acuado, diminuído, mas sustenta a imagem bem sucedida organizando a planilha enquanto a mulher cuida da casa. Ela fica com peso na consciência pelos gastos, mas não se sente no direito de palpitar, de sugerir mudanças, de participar das decisões que poderiam colocar a vida financeira do casal no eixo.
O ato de pagar a conta o coloca em outro patamar, e ele acha que é melhor assim.
A colaboração e o cavalheirismo não são o problema
Colaborar com alguém querido ou oferecer um jantar são, por si, boas atitudes. É possível oferecer ao outro sem exercer uma dominância negativa. O problema ocorre quando esses pequenos rituais camuflam e endossam movimentos ruins, que limitam algum dos protagonistas da história.
Pagar a conta de celular e manter-se como provedora é, em certa proporção, um grito de medo misturado com egoísmo, de quem quer a filha para si e teme que ela ganhe asas e só venha visitá-la no natal.
Sentir-se diminuído quando o outro se propõe a dividir a conta pode ser um sinal bem latente de insegurança, de quem não sabe de relacionar sem seguir a convenção social.
São atos que parecem inofensivos, mas partem da mesma atitude mental que desencadeia as condutas graves e declaradamente recrimináveis, como trancar a mulher em casa ou bater na fillha. Muda apenas a intensidade e o cenário externo.
“Será que eu faço isso?”
Por mais camuflados que sejam os movimentos, eles geralmente envolvem pequenas operações comerciais.
Quando um paga a conta do celular, o outro usufrui do serviço sem precisar despender nada. Quando um paga a conta do jantar, o outro é que recebeu o presente. As operações comerciais sempre têm, pelo menos, duas partes.
Em relações ruins, ambas as partes saem perdendo. O dominante sofre com o medo do dominado deixar de sê-lo, e o dominado sofre com a opressão constante.
Uma atitude que eu vejo funcionando e que geralmente deixa escandalosamente evidente a relação ruim, ao ponto de descontruí-la, é inverter os papeis.
Se você está acostumado a ter o jantar pago pelo parceiro(a), oferecer-se irredutivelmente para pagar a conta uma vez e notar o desconforto do outro pode ser um excelente exercício.
Como aquela mãe se sentiria se a filha se antecipasse e pagasse a conta de luz de casa? Em relações antigas e incrustadas de sentimento (amor materno incondicional, por exemplo), as ações efetivas e cortantes tem uma importância imensa.
Tendo reconhecido que de fato ocorre e é ruim, geralmente a situação desfaz-se por si só, de tão caricata que é. Paramos de colocar nosso potencial financeiro a serviço do nosso padrão dominador e abrimos espaço para que ele possa entrar como viabilizador, como combustível para o que queremos realmente impulsionar. É como se estivéssemos libertando-o.
Por mais que sejam operações comerciais, por mais que estejamos utilizando o dinheiro para deixar essas dinâmicas ruins em evidência, no fim estamos falando de gente.
Sempre estamos.
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