O escritor moçambicano Mia Couto é um dos meus preferidos justamente por carregar, mesmo tendo a literatura escrita como base, a tradição oral africana consigo, a preocupação com a importância da oralidade.

O vencedor do Prêmio Camões em 2003, a mais importante congratulação da língua portuguesa, tem muita coisa importante nesta fala de uma aula magna ministrada por ele em 2014 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Tempo, família, soberania e momentos irrepetíveis. 

Abaixo, o vídeo curto e, logo depois, a transcrição da fala dele. Pra quem se interessar, o vídeo da aula completa também pode ser visto lá no YouTube.

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Eu lembrei de tudo isso quando, um dia destes, eu passeava com um dos meus netos, e de repente uma cobra atravessou o nosso caminho. O menino não ficou muito assustado, e disse uma coisa extraordinária. Apontou a cobra e disse: "Olha esse bicho que só tem pescoço!".

Isto é poesia, né. É poesia pura.

Então, acho que o nosso tempo é hoje um bicho que só tem pescoço. Comeram-lhe a cabeça e arrancaram-lhe a cauda, não é? E essa dupla amputação foi praticada por isto que chamamos de "sociedade do efêmero", em tudo o que nasce, nasce transitório, nasce-se já morrendo, à espera que chegue a última versão, à espera que chegue alguma coisa mais leve, mais veloz, mais atualizada. Nós estamos sempre a correr numa corrida infrutífera para não ficarmos desatualizados.

Então vivemos neste tempo em que tudo é simultâneo, tudo é imediato, e tudo é voraz, tudo é veloz. Então, como é que isto aconteceu?

Eu acho que foi uma coisa que se chama "o mercado", que é algo de terrível por não ter rosto, não tem nem nome, e impôs-nos um outro tempo, um tempo de consumo, um tempo em que se consome a si próprio e nos consome a nós. Nós lamentamos sempre que não temos tempo, às vezes perguntam "como é que você escreve?", porque eu trabalho e tenho horário de trabalho.

Mas eu acho que nós não precisamos de mais tempo, nós precisamos de um tempo que seja nosso. Portanto, não é uma questão de quantidade, é uma questão de soberania.

E nesse tempo que seja nosso, nós temos que encontrar a intimidade com as coisas que nos são próximas, com as pessoas que nós amamos, e isso requer um vagar, um tempo próprio, né. Hoje em dia faz muita impressão que, quando estamos a viver alguma coisa muito intensa, em família por exemplo, a primeira preocupação não é viver isso de uma maneira aberta e disponível.

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É registar o momento numa imagem, numa fotografia, num vídeo.

Quando eu estou em casa, em família, quando acontece alguma coisa extraordinária, há sempre uma voz que se levanta e pergunta: "Alguém está a gravar?". Eu não quero fazer a apologia de uma espécie de regressão nostálgica. É óbvio que estas coisas, essas tecnologias têm as suas vantagens, mas a questão é saber se continuamos a ser sujeitos, autores dessa narrativa que é a nossa própria vida.

Então essa… eu já estou me caminhando pro final… Essa intervenção que eu fiz com base em momentos, em lembranças, né, eu fiz assim porque essas lembranças, esses episódios não são coisas do passado. Foi no passado que eu carreguei a minha alma de futuro, que eu investi. E falei nesses episódios porque acho que neles é que está uma espécie de um programa que eu tenho, naquilo que é minha intervenção cívica, né.

Porque eu lembro as histórias que meus pais contaram, a casa em que eu vivi, a cozinha em que eu fui menino e a rua em que eu fui mundo, como se isso tudo me desse uma relação em que eu peço ao mundo que ele tenha sempre um rosto, um nome, uma voz.

Essas lembranças fazem-me pensar de como é importante nós restituirmos essa presença corporal quando contamos histórias às crianças. Eu não renego que as crianças tenham essa relação com a máquina, com a televisão, o tablet, o computador. Mas essas máquinas não podem ser as únicas contadoras de histórias. É preciso que regressemos. Que humanizemos esse momento, em que nós estamos com a presença física, com esse afeto que só pode ser trazido pela presença corporal, e que torne esse momento mágico, único e irrepetível.

Com os nossos pais, nós não podemos voltar atrás com o remote control."

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados