Existem várias formas de amizade certo? A amizade entre irmãos, a camaradagem da escola, aquele melhor amigo de uma vida inteira, a amizade de futebol, churrasco e cerveja. Amizades que só funcionam em dupla, amizades que só funcionam em grupo. A gente entende isso com tranquilidade, mas quando o assunto é amor a gente tende a mudar o jeito de olhar pra isso.
Quando o assunto é relacionamento a gente conhece basicamente o amor romântico: a paixão que arrebata dois corações e depois se assenta em um compromisso para vida, em casal, em monogamia. Quem ama não deseja ninguém mais além da pessoa amada. Quem ama promete ser fiel a vida toda. Quem ama sente ciúmes, medo de perder. Quem ama não trai. Quem ama abre mão dos seus desejos porque não quer ferir o outro.
Claro, as monogamias não são todas iguais. Existem as mais ciumentas, as com mais diálogos, as mais fechadas no casal, as mais rodeadas de amigos. Mas ano após anos, nas maiores histórias de amor a fidelidade impera e a ideia de desejar ou estar com outra pessoa implica o fim do romance.
O que pouco falamos, mas temos começado a falar mais atualmente, é que não precisa ser sempre assim. Pode existir amores, paixões, sentimentos e compromissos sem a regra de exclusividade sexual e/ou afetiva. É isso que chamamos de não-monogamia.
Por que se diz não-monogamia?
Chamamos de não monogamia todo o espectro de relações que têm em comum o pensamento de que amor, desejo e compromisso não precisam ser vivenciados exclusivamente entre duas pessoas. Dentro desse espectro podemos encontrar acordos de relacionamento aberto, amor livre, poliamor, etc.
Cada dia inventam uma coisa nova…
Na última década muito tem se falado sobre as várias formas de ser e amar que não são apenas o casal formado entre um homem e uma mulher, fiel até o dia da morte, unidos na finalidade de constituir família. Para todos aqueles que não se sentiam representados por esse modelo de família, essas variedades de ser e amar trazem possibilidades de existências mais autênticas. Mas para muitos essas variedades são modismos contemporâneos. Invencionices modernas. Será mesmo?
Se apelarmos para a origem natural das coisas, descobriremos que a espécie humana não é monogâmica por natureza. A monogamia em si é uma invencionice moderna que surge quando o homem dá conta de inventar tecnologias agrícolas. Então a monogamia surge em algumas sociedades como uma estratégia de estabilização conectada ao conceito de posse e herança da sociedade patriarcal. Garantindo que a esposa não teria mais parceiros, todos os filhos daquele “chefe de família” seriam herdeiros legítimos das terras conquistadas.
Note que dissemos “em algumas sociedades”. Dentro de comunidades indígenas originárias, por exemplo, na qual a terra pertence à aldeia e não aos indivíduos, o conceito de família não depende da exclusividade sexual ou afetiva.
Houve um tempo em que o mundo era composto por vários povos, de várias religiões e idolatrias e que essas tinham diversas formas de constituir família: monogamias; poligamias unilaterais (em que só os homens poderem se casar com mais de uma mulher) a amores livres.
Quando viramos todos monogâmicos?
Sem juízo de valores e sem qualquer intenção de apontar se esse processo foi positivo ou negativo, a monogamia foi se tornando norma pelo mundo associada a dois processos históricos: catequização judaíco cristã e colonização europeia.
É importante trazer isso à luz para notarmos que, em qualquer tempo da história, as relações são forjadas por um contexto social e, portanto, podem ser mudadas à medida que estamos em outros contextos.
[Aqui vai um texto sobre o processo cultural de implementação da monogamia]
Como é ser não monogâmico?
Significa então que pode trair, que vale tudo? Que é bagunça? Significa que valem todos os tipos de combinados. O que é traição e o que não é depende do combinado forjado pelos integrantes da relação a partir dos seus limites e visões de mundo.
- Para a relação A pode ser que ambos tenham combinado de sair separados algumas noites e se permitirem relações casuais.
- Para a relação B pode ser João e Pedro que eram um casal, tenham se apaixonado por Ana, formando com ela uma relação a três, mas que nem João, nem Pedro nem Ana tenham interesse em outras pessoas para além da relação.
- Para a relação C pode ser que ambos acreditem que o amor não precisa ser só a dois então, além dessa relação eles tem vidas individuais e estão abertos a inclusive se apaixonarem e terem compromissos paralelos com outras pessoas.
Existem infinitas possibilidades. De forma geral, a não-monogamia entende que traição não é sinônimo de beijo, encontro ou sexo.
[Aqui vai um texto do Alex de Castro sobre As regras da Não-monogamia]
Traição é a quebra do acordo estabelecido. Se o acordo permite sexo fora do casal, não é traição. Se o acordo pede sinceridade, mentir sobre qualquer coisa pode ser uma forma de traição.
O ponto é entender que o acordo deve ser forjado entre as partes da relação, considerando seus valores e desejos.
“Isso não é amor, é bagunça!”
Não é porque um casal não quer exclusividade de afeto e sexual que ambos estarão constantemente com outras pessoas. Para alguns pode ser assim e tudo bem, não é errado.
Mas para outros tantos, a não-monogamia será uma relação não muito diferente daquelas mais tradicionais, com longos períodos de vida a dois, e alguns momentos em que, por um interesse pontual, uma ou ambas as partes se permitem desfrutar de outros amores.
“Mas quando a relação fica séria tem que fechar…”
Acordos monogâmicos podem funcionar perfeitamente, afinal, a fidelidade monogâmica é possível e desejável para muitos. No entanto, mesmo para os que escolhem essa forma de se relacionar, ocasionalmente surge um desejo externo. É da natureza humana. Claro, na monogamia, o acordo é não ceder a este desejo, e tudo bem.
Agora um exemplo:
Um dos episódios da série Modern Love mostra um casal profundamente apaixonado. Em dado momento a garota volta para a cidade natal e reencontra o ex-namorado. Ela sente saudade do que viveram e, somente naquela noite, fica com o ex. Ao voltar pra NY, ela conta honestamente o que aconteceu para o parceiro, que de alguma forma ela quis aquela noite para fechar a história com o ex. Ela sabia que queria continuar na relação com o parceiro. Eles eram felizes juntos.
Ele nem segue a conversa, faz as malas e vai embora. Se ela nunca tivesse contado, ele nunca saberia. Mas sabendo ele vai embora, de orgulho ferido e ainda amando ela profundamente.
A maioria de nós consegue ver o amor nessa história e entender o rapaz que a deixa. Eu particularmente faço a pergunta: Ele ainda a ama, então porque ambos tem que, contra suas vontades, se separar, para honrar um certo orgulho?
Esse é o verdadeiro amor que queremos cultivar? Um amor que se acaba imediatamente diante de uma noite? Novamente, não existe resposta certa ou errada. Amores são complicados, mas trago esse exemplo pra mostrar que, por certa perspectiva o amor não-monogâmico não é instável ou passageiro.
Ele pode ser visto como um amor que, ao ser flexível, é também incondicional. Como um amor que entende a outra pessoa como um indivíduo que tem questões, aflições, sentimentos e desejos que não terminam dentro dos limites do casal.
“Mas e se a outra pessoa me trocar?”
O ciúme, a sensação de posse e o medo de perder são sentimentos que atravessam muitas relações monogâmicas e não-monogâmicas.
Nesse ponto um entendimento importante é que todas as relações estão sujeitas a acabar.
Uma aliança firma um compromisso, mas por diversos motivos este pode acabar. As pessoas com quem nos relacionamos não nos pertencem. Não podemos controlar a permanência do outro, o que podemos fazer, em qualquer arranjo de relação, é cultivar um amor cuidadoso que faça com que a pessoa queira ficar, não porque ela é obrigada, não porque ela tem uma amarra, mas porque estar junto é bom.
Não é sobre certo ou errado, é sobre multiplicar as possibilidades
A monogamia é uma prisão quando é vista quando é vista como regra
Não podemos fazer um juízo de valor e dizer que monogamia funciona e a não-monogamia é problemática. Também não podemos dizer o contrário. Não estamos buscando uma nova norma, um novo ideal sobre qual seria a maneira ideal de se relacionar.
O que se pretende é entender que um arranjo não dá conta de atender as necessidades, sonhos, afetos e orientações de 7 bilhões de pessoas no mundo. Diversas formas de amor precisam existir, ser vistas, legitimadas e respeitadas pela sociedade.
Se hoje falamos de uma forma de amar diferente do que falávamos ontem, não é porque se está inventando moda, é porque estamos ampliando o leque (que não deve parar de crescer) de possibilidades de amar, desejar e formar famílias.
“Eu queria estar com outras pessoas, mas não quero que meu parceiro/minha parceira faça o mesmo”
Não. Essa é uma postura que faz parte de uma certa vivência masculina de “eu sou homem, homem tem desejos, claro. Mas com a minha mulher ninguém mexe”. É provável que essa ideia já tenha passado pela sua cabeça, que essa fala já tenha saído da sua boca. Aqui o importante é saber que esse é um pensamento machista e que não tem nada a ver com não-monogamia. Abrir uma relação significa liberdades iguais, significa trocar posse por cuidado e confiança.
Para muitos homens heterossexuais têm uma pressão social grande diante da ideia de permitir que a parceira tenha outros. Essa pressão faz parte da “caixa do homem”, do machismo que vos forja, mas ela também pode ser superada. Sabia que existem grupos de apoio para homens que querem refletir e sobre não-monogamia trabalhando questões de masculinidades? Aqui vai
A não-monogamia não acaba com as famílias
Em muitas famílias traições e abandonos foram tormentos que findaram relações. Sabemos por A+B que a monogamia não funciona de forma ideal para todo mundo. A traição é uma forma muito egoísta e antiética de lidar com nossos desejos e sentimentos, porque ela necessariamente parte do princípio que relações paralelas não são permitidas e não devem ser reveladas à outra parte.
Não-monogamia não é sobre isso. É sobre a responsabilidade de forjar um acordo honesto e de estabelecer uma relação de confiança mesmo sem o controle sobre uma parte da vida do outro.Não é para destruir núcleos familiares, é para que núcleos familiares possam ser pensados de outras formas, adaptados a variedade de pessoas existentes no mundo.
Sabemos fazer isso em outros campos da vida:
Aprendemos a dividir nosso amor entre dois pais, entre mais de um irmão, entre dois melhores amigos, entre três ou quatro filhos. Para todas as outras relações que não a romântica, conseguimos entender que o amor não é limitado ele se multiplica. Se nascer uma nova criança na família, haverá amor e tempo para ela também. Será tão diferente assim nas nossas relações conjugais?
Com esse texto não queremos te convencer que monogamia não funciona, queremos te convidar a olhar para outras possibilidades de arranjos entendendo que elas são legítimas. Que se alguém ao seu redor vive uma não-monogamia, isso não significa que um “trai e que o outro é corno”, não significa que é uma depravação ou uma relação para não ser levada a sério. É uma outra forma de viver os romances, que merece respeito e que mesmo que não se aplique a sua vida, sempre temos algo a aprender com as diferenças que nos cercam.
Depois de ler esse texto, o que você pensa sobre a não-monogamia?
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Esse texto foi escrito com a colaboração do psicólogo @joaomarques.psi
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