Meu nome é D. e acabei de fazer 22 anos.
No momento, enfrento uma grande crise pessoal, a ponto de não querer mais sair de casa. Não que eu esteja deprimido. Na verdade, estou entediado.
Não gosto da maioria das pessoas que eu conheço, os assuntos que eu geralmente escuto julgo supérfluos e não despertam em mim o mínimo interesse. Não concordo com nenhuma convenção social.
Não encontro nenhuma mulher que realmente me interesse e recuso a ser escravo da vaidade ao me relacionar com uma pessoa só pela aparência.
Gosto de passar meu tempo sozinho, lendo ou assistindo filmes, pois diretores e escritores são pessoas mais interessantes do que as que me cercam.
Estou cursando engenharia civil, já no final do curso e trabalho no ramo – que também não me desperta interesse nenhum.
Sou piloto de motocross no tempo livre e agora também enfrento um impasse interno nesse aspecto, pois é um esporte que requer uma boa quantia em dinheiro para ser praticado e eu não tenho interesse em fazer compromisso com isso, vendendo meus dias para ter uma faísca de diversão no sábado (o dia que eu brinco com motos).
Não ligo para datas especiais, feriados nacionais, viagens internacionais, roupas legais, vontades carnais…
No momento, o estilo de vida que mais me enche os olhos é o de um hippie vendendo artesanato na praia ou de um monge em meditação numa caverna no Tibet. Eu me julgo mais inteligente que as pessoas com frequência, não por maldade ou satisfação pessoal, mas sim pelos absurdos que ouço saindo de suas bocas.
Não sei onde encontrar gente interessante que some ideias às minhas da maneira com que muitos artigos do PdH, Woody Allen, Palahniuk e outros fizeram.
No fundo, eu percebo que toda essa festa e alegria das pessoas ao meu redor, na verdade, são muito superficiais. Talas ou muletas para apoiarem suas mentes cansadas e preguiçosas. Se todos buscassem, no fundo mesmo, a real motivação de suas ações, estariam tão ou mais vazios do que eu me sinto agora.
Antigamente, eu não era assim, e estava sempre sorridente. Lá pra faculdade, com vontade, usando minha roupa alternativa para atrair as meninas mais descoladas. Na sexta ia para as baladas e com sorte descolava uma transa vadia com alguma menina qualquer.
Tinha vários sonhos e todos eles concordavam em um aspecto: muito dinheiro.
Nessa época eu era brincalhão, sociável e estava sempre sorrindo, não dava a mínima para filosofia, meditação ou poesia.
Meus pais, que dividem a casa comigo, estão preocupados, pois eu praticamente não saio mais e estou sempre falando de algo triste como holocausto, sistema monetário beirando a falência, competição pelo poder e miséria.
Fui criado cristão e hoje acho religião uma baboseira tamanha que pra mim devia estar na mesma seção de gosto pessoal por frutos do mar de cada um.
Não sei se é uma crise passageira, não sei se devo ser mais tolerante, anestesiar o cérebro e forjar um sorriso amarelo para participar de eventos ou se devo continuar descendo até finalmente alcançar o fundo do poço e começar a olhar pra cima.
Alguma dica?
Olá, D.,
Também me lembro dessa fase em que todos estavam errados, eram burros e só eu estava certo e tinha uma visão profunda do mundo.
Eu pensava: “pobre humanidade sofredora, ignorante e fútil, nada mais posso esperar delas”, depois descobri que precisava tirar minhas fraldas, limpar a bunda sozinho e bater nas portas de cada pessoa para descobrir o que havia naquela fachada de imbecilidade.
Descobri pessoas incríveis, meu topete abaixou e fiquei apaixonado por gente de todos os tipos.
Prepotência outsider
“Não que eu esteja deprimido, na verdade estou entediado”
É muito comum, ao chegar em idades limites em que o confronto com a vida adulta e suas responsabilidades batem na porta, que muita gente recorra ao argumento de que esse mundo adulto é uma merda e eu é que sou esperto.
Essa arrogância juvenil não foi inaugurada por você, mas entendo de onde ela surge. Todos estamos morrendo de medo de entrar nessa máquina trituradora de esperanças chamada sociedade pós-moderna e perder completamente o senso de identidade, aquela pureza infantil.
Você tem algumas alternativas:
1. Entrar no jogo e ficar perdido nele;
2. Sair do jogo, se retirar e ficar imerso nos efeitos colaterais da posição de outsider;
3. Desenvolver uma inteligência que o transcenda;
Eu não me misturo
“Não gosto da maioria das pessoas que eu conheço”
Pois é, em geral, baseamos nossas relações no aspecto gosto/não-gosto e raramente no tipo de experiência que atravessa as preferências pessoais e vai em busca de conexão humana e aperfeiçoamento pessoal.
Ao invés de ficar sentado num trono supremo, enviando os infiéis para as fogueiras do seu inferno emocional, poderia simplesmente aprender a arte de gerar companheirismo, ajuda mútua, sabedoria, quebras de preconceitos e exercício de gentilezas.
Não consigo imaginar onde você poderia chegar se continuar trancado no quarto, se autodenominando o conhecedor dos segredos do universo. O fato de não se misturar porque julga tudo supérfluo é porque ainda só sabe se relacionar com as pessoas a partir das suas preferências pessoais preciosistas.
Uma tribo de um homem só talvez não seja o melhor caminho.
As pessoas são fúteis
“Julgo supérfluos e não despertam em mim o mínimo interesse.”
“Quando Pedro fala de Paulo, sei mais de Pedro do que de Paulo.” Essa frase de Sigmund Freud revela algo interessante sobre as pessoas que adoram fazer discursos eruditos: elas próprias carecem de profundidade.
Atendo pessoas diariamente que na primeira consulta trazem o discurso pronto do que são, do motivo de suas dores emocionais e até tentando me induzir a um diagnóstico e uma solução. Respiro fundo, olho nos olhos, sorrio, dou espaço, abro conversas menos apressadas e conclusivas. O resultado é que as pessoas supostamente “fúteis” revelam preciosidades e profundidade incríveis.
Posso dizer que, dentro ou fora do consultório, raramente tive uma conversa com uma pessoa fútil, pois fui ousado e amoroso para interromper uma fala automática e mergulhar mais para dentro.
O mundo que vemos só revela nossa lente e o modo como evocamos as pessoas ao nosso redor.
Anti-social
“Não concordo com nenhuma convenção social.”
Curioso isso: o computador com o qual estamos nos comunicando é uma convenção social. Assim como comer com talheres e defecar na privada. Eu, honestamente,não gostaria de descobrir o fogo a cada vez que precisasse cozinhar. Como tem levado sua vida sem essa sequência interminável de convenções sociais?
Parece muito astuto da sua parte simplesmente agir como um iconoclasta, à margem, de fora de todo o processo. Seria muito fácil concordar com você e dizer que o mundo é uma merda, mas isso seria ignorar a imensa quantidade de pessoas que estão sinceramente buscando seu espaço e sua dignidade, ainda que num mundo com valores em transição.
Desejar pessoas perfeitas e sem máculas é o primeiro sinal de arrogância moral.
Eu também notei que meu suposto senso de superioridade era uma máscara para o medo de me render, sofrer frustrações e não ser correspondido pelas garotas ou rechaçado pelos amigos.
Os essencialistas
“Recuso a ser escravo da vaidade ao me relacionar com uma pessoa só pela aparência.”
Ignorar o aspecto aparente de um relacionamento é um dos típicos purismos de quem tem medo de atravessar a aparência de verdade.
Você, assim como eu, também está hipnotizado pelas aparências, pois não consegue ver o que está além delas.
Por exemplo, ao olhar uma mulher linda, não é incomum tratá-la com certo sentimento de invisibilidade: “ela é só bonita”. Já perguntou para qualquer mulher bonita sobre seus sonhos, sobre o que mais gostava em sua avó falecida, qual seu doce predileto, quem gostaria de salvar da doença e da morte?
Provavelmente ela ficaria embaraçada com as perguntas, seja porque nunca pensou sobre aquilo, apesar de saber as respostas ou porque, apesar de ter clareza do que responder, ninguém havia se interessado por algo além de suas belas coxas.
Relacionamentos são interdependentes entre aquilo que aparece (estética, comportamentos) e aquilo que é oculto (sentimentos, pensamentos e visão de mundo). Não é uma via de mão única e nada se pode excluir como fator de atração.
A supremacia ao capitalismo
“Tinha vários sonhos e todos eles concordavam em um aspecto: muito dinheiro.”
“O estilo de vida que mais me enche os olhos é o de um hippie vendendo artesanato na praia ou de um monge em meditação numa caverna no Tibet.”
Alguém mais notou a posição binária que você lida com o dinheiro? Vida milionária fútil ou hippie feliz. Meu amigo Eduardo Amuri, entre tantas coisas, me ensinou que o dinheiro não é uma arma em si, mas um veículo que pode comprar desgraças ou benefícios humanos incríveis.
Parece que você tem se apoiado em visões clichês do manejo financeiro e olhado somente a espada usada no meio da guerra, não quem a maneja.
Ganhando dinheiro ou vivendo distante da lógica financeira, de um jeito ou de outro, você terá que lidar com seus demônios mentais e condicionamentos. Não é o dinheiro que inventou a ganância, mas a ganância que usou o dinheiro como instrumento de poder e dominação. Num mundo utópico sem dinheiro, a ganância pode ser de outra ordem. O problema é o modus operandi mental.
O niilismo como salvação
“No fundo, eu percebo que toda essa festa e alegria das pessoas ao meu redor, na verdade, são muito superficiais. Talas ou muletas para apoiarem suas mentes cansadas e preguiçosas.”
As correntes filosóficas que pregam o niilismo e o vazio de sentido esquecem de uma coisa: sentidos são multifacetados e complexos.
A capacidade de uma pessoa (ou sistema) dizer para a outra que o dinheiro, aquele pedaço de papel colorido, não vale mais nada é a mesma que fará brilhar os olhos de uma criança para comprar um sorvete. O significado que se atribui de valor para algo neutro é que precisa ser visto com cuidado.
Afirmar que nada faz nenhum sentido é um risco, pois mesmo que diga que esse texto tem um sentido vazio em s, ao mesmo tempo, ele tem um sentido que estamos dando ao lê-lo.
Uma academia de ginástica pode ser só um conjunto de tijolos com gente dentro ou pode ser um local de cultivo de beleza, vigor e saúde.
São as duas e nenhuma coisa. É um paradoxo lindo, como todo o resto.
A rebeldia existencial auto-destrutiva
Acho a visão de “eu perdi a fé na humanidade” sempre curiosa. Normalmente, vem de pessoas muito exigentes e idealistas, daquelas que querem que mil Ghandis e Madre Teresas caminhem pelas ruas. Elas mesmas não tem olhos para notar pequenas gentilezas cotidianas.
Mesmo no turbilhão de esquisitices e sordidez humana, sempre sobra espaço para reparar naquele mendigo levando três cachorros consigo ou aquela vizinha fofoqueira sendo compassiva com a comadre doente. Ainda que seja deplorável notar certas engrenagens tóxicas entre as pessoas, existe espaço para o amor, a gratidão e o carinho desinteressado. Porém, o olhar dos idealistas amargurados só se deixa arrastar por aquilo que não serve e falta.
Como “protesto” o sujeito quer cortar os pulsos para mostrar como os “outros” são imbecis, quando a si mesmo falta muita estrada, ação e compaixão. Se você acha que carrega em si algum tipo de cura para esse mal, levante a bunda da cadeira e aja. Existe muito trabalho pela frente, porque de críticos inertes o mundo está cheio.
Se há um mundo vazio de sentido, arregace as mangas e vá construir sentido em conjunto. Mas coloque a esperança arrogante no bolso e toque as pessoas com brilho nos olhos e não com pedras nas mãos.
Não espere o momento especial ou a motivação incrível, você pode começar agora.
Nota: A coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas), mas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não me condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.
A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão livre, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.
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