"Estou junto com minha esposa há quase 18 anos. Moramos juntos desde 2006, temos dois filhos e sempre tivemos uma trajetória de altos e baixos. De alguns anos para cá, mais especificamente depois que tivemos nossa primeira filha e nos mudamos de cidade, ela vem se tornando bastante depressiva, com auto estima nula.
Além disso, é bastante apegada ao relacionamento, tenta controlar como ajo, onde estou, com quem estou e tende a ver todos os meus comportamentos como negativos, como se eu fizesse somente coisas ruins para provocá-la. Há acusações, por exemplo, de que roubo os amigos dela por ser mais legal/engraçado. Sempre que vivo experiências recompensadoras (e que normalmente ela não participa por falta de interesse), ela me acusa de ser egoísta e não envolvê-la.
Eu entendo perfeitamente o que acontece com ela, também tive quadro depressivo. Só consegui melhorar depois de assumir um compromisso comigo mesmo, passei a meditar e fazer atividades físicas, buscando ter experiências enriquecedoras e caminhar pelo mundo com mais leveza. Quero muito ajudá-la a sair desse estado, porém, não quero ser sugado outra vez por esse buraco no processo e voltar à depressão.
Creio já ter feito tudo ao meu alcance e sinto que a maior ajuda seria deixá-la seguir seu caminho livre da minha influência.
Porém, como deixar alguém passando por tamanha dificuldade desassistida? Como superar essa culpa?"
Caro Marido,
A dor de vocês dois é mais comum do que imagina. A depressão tem sido considerada uma doença de alta incidência e, apesar de todo o esclarecimento disponível no mundo, ela causa reações curiosas por parte de quem tem e quem convive.
Por ser uma doença mental é muito fácil usar um filtro moral para analisar a situação, dizendo que a pessoa é fraca ou deveria lutar, como se fosse preguiçosa. Mesmo não sendo o seu caso acho válido ressaltar o que acontece com muita frequência e estigmatiza quem tem o problema.
Para não me delongar em uma explicação sobre depressão, indico esse vídeo no qual falo em detalhes sobre esse transtorno de humor.
Ainda assim, é importante destacar que a depressão não é meramente uma tristeza inconsolável, mas uma profunda desvitalização, uma perda global da capacidade de sentir prazer e encanto pelas pequenas coisas da vida.
Para quem convive, o desafio é redobrado, pois é quase como tentar salvar alguém de areia movediça. E essa é uma das premissas mais problemáticas que os relacionamentos atuais incorporam: a de que um precisa salvar o outro.
Da perspectiva do homem, isso é ainda mais tóxico, afinal, fomos educados a proteger as pessoas e, principalmente, nossas parceiras.
Ciclo de negatividade
Uma das coisas mais difíceis da depressão é o ciclo de negatividade, aquela tendência fortíssima de puxar a perspectiva da vida para baixo, rechaçando qualquer brilho, alegria ou leveza da convivência.
Para cada palavra sua pode haver uma crítica, para cada solução um "sim, mas…". É exaustivo e tentar convencer a pessoa de que, no fundo, as coisas podem melhorar pode parecer algo impossível. Em alguns casos é.
Quanto mais pressão para mudar, maior será a negatividade, o filtro está adulterado, escurecido, deteriorado, procurando defeitos, implicando com cada detalhe. Na maioria dos casos, é melhor não entrar nas discussões intermináveis e, sim, se mostrar empático como "não consigo imaginar como é estar desse jeito", "tem se sentido cansada, né?", "às vezes parece tudo complicado mesmo".
Para quem vê de fora, pode parecer que você está reforçando um traço negativo, mas não. Você apenas está nomeando o que se passa, sem interferir ou tentar torcer o estado de espírito.
Há uma coisa que preciso falar sobre a depressão. A personalidade do depressivo cria um sistema imunológico emocional contra otimismo e esperança. Sob essa perspectiva você precisa desenvolver meios de entrar indiretamente para não ser arrastado como um inimigo. Se parecer muito fofolete será alvo de agressão, então, é melhor saber descrever o que se passa sem grandes "vamos mudar isso".
Seu bem-estar é seu
Não tente, por outro lado, conter a sua alegria, felicidade e bom humor.
Pode parecer que você está esbanjando comida no meio da miséria da África, mas a verdade é que agir naturalmente, mostrando que existem pessoas efetivamente felizesm ajuda na quebra das crenças silenciosas do depressivo.
Não se trata de humilhar ou afogar a pessoa em boas energias, mas de manter a sua parte da vida com o fluxo que você consegue sustentar, ainda que isso sofra ataques invejosos.
Parecer cabisbaixo ou infeliz não elevará a autoestima dela. A baixa autoestima de uma pessoa não ter a ver com o meio que vive, mas com uma dinâmica interna de auto-crítica tóxica, essa é uma tarefa que ela própria precisa assumir. Seu bem-estar pode servir de apoio, mesmo que indireto, mesmo que ela o ataque.
Forçar-soltar
Forçar uma melhora pode ser uma das coisas mais insuportáveis que alguém com depressão enfrentará. Na terapia, um dos grandes equívocos dos terapeutas menos experientes é tentar imprimir uma aura de otimismo, como se o que faltasse fosse bom humor. O grande desafio é ser um bom tradutor que leva a pessoa depressiva a poder entrar em contato com as suas contradições, a maneira problemática de lidar com auto-avaliação e o modo de se relacionar.
Se você força muito uma mudança, a depressão se aprofunda. Se você solta demais, a pessoa sente que você não se importa. É um exercício de equilíbrio, como sustentar uma pena com o toque de um dedo.
Respeitar a escuridão do outro
Ainda assim, é preciso ser honesto. Os outros têm direito a desistirem de si mesmos e você não tem controle, por mais que a ame, por mais que a história de vocês tenha sido incrível. Em última instância, é preciso salvaguardar o mínimo de sanidade nessa família, existem filhos envolvidos e o peso dessa vida pode ser mesmo demais para alguns.
Há pessoas absolutamente identificadas com o lado obscuro da vida, como se estivessem ligadas por um tecido invisível. Entrar nesse embate é perda certeira. Esse lado mórbido pode vir de uma espécie de protesto contra o tipo de mundo em que vivemos, que de algum modo nos torna meios, objetos, coisas, números. A recusa pode vir também de uma profunda inadequação com tanta intensidade e pressão por performance.
Existem muitas facetas ocultas da depressão que não conseguimos alcançar. Às vezes ela sustenta uma personalidade que, se pudesse se manifestar, seria altamente tóxica. É como se aquele mar de culpa soubesse de si mesma "se eu falar ou fizer tudo o que quero, destruiria tudo à minha volta, então prefiro engolir a mim mesmo".
O paradoxo do "abandono"
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche em "Além do bem e do mal" disse que "quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". A real é que existem pessoas que carregam buracos negros emocionais.
Quando você fica perto demais, se não for uma vela com chama resistente, pode fazer se apagar na tentativa de elevar alguém que está pregado no chão.
Se todos os esforços, inspirações, tentativas de terapias, atividades físicas, práticas espirituais foram em vão, o seu amor precisa tomar distância para respirar. Algumas pessoas irão condená-lo por isso, mas essa é uma perspectiva rasa de quem acha que união é tudo e gratidão precisa ser paga com sangue.
À distância, sua perspectiva pode ficar mais clara. Algo pode chacoalhar a outra pessoa. Mas se resolver partir, não se agarre a essa possibilidade. Mesmo distante, pode ser que nada aconteça.
Com tudo isso, não quero parecer pessimista, dizer que a depressão não tem cura. Pelo contrário, toda a ajuda de terapia, medicação, estimulação magnética (recurso pouco conhecido e muito eficaz) e outros tantos tratamentos complementares podem ter um impacto gigantesco. Mas, ainda assim, é preciso estar aberto para seguir em frente, atravessar a dor da culpa e impotência de entender que até mesmo a paixão mais linda tem limites. Infelizmente, o amor não cura transtorno mentais, ainda que possa ser parte fundamental da recuperação.
Não deixe que a sombra do suicídio faça de você refém. Informe-se sobre o assunto mas não limite a si mesmo. Vou deixar aqui mais um vídeo sobre o tema, para quem quiser mais informações.
Quando nos abrimos para a possibilidade do "abandono" algo estranho acontece. Nossa atitude fica mais leve, aberta, e pode até ser melhor do que a postura engajada e persistente.
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