Hoje compartilho uma das habilidades que mais treinei ao longo da vida: como fazer uso inconsciente de medo e orgulho para se fechar tão hermeticamente quanto um jabuti enquanto resolve problemas, ignora outros e lidera pessoas.

Senta que lá vem história.

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Tivemos uma reunião de quase duas horas(prevista pra trinta minutos) ontem: eu, Gitti, Fabio, Felipe e Roberto. Gitti nos apresentou uma proposta para conduzir seu trabalho da melhor maneira possível, dentro da movimentação exposta no artigo “Qual é a sua jornada?“. Papo excelente, ótimos embates.

Ao final, me peguei cobrando o Felipe pela sexta vez sobre uma ideia sugerida por ele próprio há apenas quatro dias. Gitti complementou como eu de fato já fiz isso umas tantas vezes e como essa postura de cobrança excessiva parece usurpar a autoria de um projeto para o feitor da cobrança. Quase como se a cobrança fosse martelada de maneira tão insistente a ponto do progenitor da ideia nutrir aversão por sua própria cria.

Bem real.

Senti o mesmo inúmeras vezes quando eu estava na posição de ser cobrado.

Samurai cansado, em “The Way of the Samurai”

Qual era minha justificativa/muleta aparente, para realizar essa cobrança ostensiva?

“Garantir que a ação ideal fosse feita no menor tempo hábil possível, acelerando nossos resultados.”

Qual era a necessidade oculta por trás dessa justificativa?

Me posicionar com autoridade perante o grupo. Orgulho. Não perder minha força. Medo.

A cobrança feita desse modo seria o melhor caminho para de fato alcançar o objetivo pelo qual me justifiquei internamente agir dessa forma?

Não, tendo em vista a construção de um chassi saudável.

Talvez, a curto prazo. A contrapartida seria cultivar tensão e desmotivação no Felipe, a médio/longo prazo, culminando em processos de burn out para ambos. Vivemos isso ano passado, ipsis litteris.

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Dormi como um rei de sexta pra sábado. Deixei meu corpo despertar no horário de sua conveniência, ao contrário do que faço nos outros dias da semana. Fora responder alguns emails, meu principal destino era o piquenique do último dia da Semana Cinética – divulgada aqui mesmo. Um bocado de pessoas se reuniu no parque Zilda Natel pra debater planejamento urbano.

Cheguei ao final da tarde. Me postei bem tranquilo do lado de fora da roda – em pé, óculos escuros, braços cruzados e escutando. O vento dificultava um pouco, mas dava pra pegar as ideias centrais. Lá pelas tantas o pessoal se levantou para caminhar pelo entorno. Luiz de Campos Jr. do Rios e Ruas iria nos contar das origens por trás da região de Perdizes – local de nosso QG.

Cheguei

A organizadora me cutucou e disse, “Tira esse óculos. Parece que veio como observador, olhando por cima, e não pra se conectar. Descruza os braços.”

Hmmm, ruminei, antes de me “abrir”. Após escutar toda a fala do Luiz, fui embora e deixei o episódio na gaveta mental, marinando. Ontem à noite, enquanto requentava o delicioso kibe de carne recheado com catupiry feito pela Mônica no almoço, bateu o estalo. Meu medo e orgulho usaram mecanismos de defesa equivocados para não serem expostos. Filhos da puta. Já havia observado em ocasiões anteriores como os dois pregam peças.

Qual era minha justificativa/muleta aparente, para estar de óculos e braços cruzados?

“Há sol ainda, está esfriando. Estou prestando atenção e me conectando com a fala mesmo assim. Inclusive memorizei o que sujeito acabou de dizer. É possível estar absorto em profunda conexão de óculos e braços cruzados, ou mesmo em qualquer outra postura corporal.”

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Qual era a necessidade oculta por trás dessa justificativa?

Ainda que houvesse verdade na muleta aparente, havia também uma tentativa besta de, no fundo, no fundo, me distanciar da situação e dizer como sei/sou mais do que os outros. Percebam o quão sofisticado é o mecanismo. A justificativa mental para o comportamento é sólida. Consigo sustentá-la, me impondo com facilidade em várias situações. Por trás dela, longe das vistas destreinadas, habita o equívoco: estou de fato distante.

Estou distante pois novamente indo ao fundo da coisa, esse é um traço bem masculino pelo qual tenho apreço, não me deixo penetrar ou ler com facilidade. E em que medida uma postura distante é capaz de real conexão, abertura ou empatia?

Não sei precisar. No meu caso, a conexão, abertura e empatia tendem a surgir quando estou em posição de liderança, me fazendo questionar ainda mais que porra de abertura é essa. Posso ter me acostumado a ceder e abrir apenas em contextos de comando e clara autoridade.

Qual o medo em ceder e me abrir fora dos contextos de controle?

Sendo franco, o medo passa por me expor, ser “descoberto” em algum tipo de farsa, cagar no pau; em suma, variações do aparentar fraqueza ou ser rejeitado.

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O processo para vomitar esse texto foi uma via crucis, a qual vem sendo percorrida arduamente nos últimos anos e, em especial, nos últimos seis meses.

Pior, ao escrever observei a consciência buscar mil e um argumentos maravilhosos para mostrar como qualquer eventual demonstração de medo, orgulho ou egoísmo foi mero lapso; *nunca* nada além.

Em resumo, eis o percurso:

  • a consciência detecta riscos – de ser exposta em suas partes sensíveis, ser rejeitada, humilhada
  • ela dispara mecanismos de auto-engano para se proteger da exposição
  • o auto-engano preserva o ego de sua própria fragilidade medrosa e orgulhosa
  • as muletas de auto-engano são muito bem racionalizadas e amarradas
  • você compra suas próprias besteiras
  • acreditando o suficiente, transmite essa convicção ao exterior
  • as pessoas ao redor escutam, confiam e executam, ainda que possam não se sentir expecionalmente motivadas
  • ocasionalmente, elas se sentem atropeladas
  • os mecanismos internos de medo e orgulho seguem presentes
  • o ciclo se repete
  • espaços de REAL liderança, abertura, crescimento e autonomia seguem não sendo acessados

Ou seja, um sujeito sente medo, orgulho e ainda assim é capaz de convencer, planejar e executar grandes tarefas com auxílio de outros. No processo, ganha louros de ousadia e competência. O que não é necessariamente ruim, projetos necessitam avançar independente dos humores e instabilidades dos envolvidos.

A carapuça

Me pergunto o quão sustentável ela é e qual é sua potência para a construção de reais aliados – aqueles que lutam além dos cifrões. Mais, o stress associado cobra preços altos – seja na mente ou no corpo.

Como balancear liderança, firmeza, decisões, entregas, complexidade e eficiência com disponibilidade, abertura, leveza, relaxamento e confiança?

Por fim, como tem sido a experiência de vocês ao detectar suas muletas mentais prediletas, aquelas das quais se envergonham ou sequer admitem terem usado? Seja no contexto profissional, afetivo, familiar ou qualquer outro.

Deixo em aberto para o debate.

Guilherme Nascimento Valadares

Fundador do PDH e diretor de pesquisa no Instituo PDH.