Você pode até odiar aquela frase "o importante é competir". Associar essa frase com uma mentalidade derrotada e querer ensinar seus filhos a vencer sempre. Mas os Jogos Paralímpicos já começaram cheio de histórias que servem como uma tapa de realidade na nossa cara e provam que há casos onde realmente tudo que importa é competir.

É o caso da atleta belga Marieke Vervoort. Ela quer completar seu último objetivo no Rio de Janeiro para, então, se matar.

O lado iluminado

Ela nasceu em 10 de maio de 1979 e levava uma vida normal na cidade de Diest, interior da Bélgica. Enquanto subia em árvores e apostava corrida até com os meninos do colégio, Marieke tinha vontade de se tornar professora, mas aos 14 anos, o que começou com uma dolorosa inflamação no pé deu pistas de que a vida tinha outros planos pra ela.

Aos 16, as dores já atingiam os joelhos e Marieke e seu pai Joseph percorriam hospitais em busca de médicos que pudessem dar respostas para uma única pergunta: qual era seu problema?

A resposta demorou e não acalentou seus corações, Marieke é portadora de uma doença degenerativa incurável que ataca a medula, provoca fortes dores e a fez perder gradativamente o movimento da cintura pra baixo e reduziu sua visão a apenas 20%.

Aos 20, ela já não se via mais em condições de viver sem uma cadeira de rodas e decidiu abandonar os estudos. A busca passou a ser por algo que pudesse aliviar sua dor, retardar a evolução de sua doença ou pelo menos ocupar seu tempo.

No começo, o esporte era isso. Algumas horas na piscina, outras pedalando e alguma dedicação às lutas de jiu-jitsu onde chegou à faixa marrom. Mas a doença seguiu avançando e ficar em pé passou a não ser mais uma opção.

Decidiu dedicar-se ao basquete adaptado. Participou de um Ironman e se tornou bicampeã mundial de triatlo. Pouco tempo depois, porém acabou optando por seguir apenas no atletismo – o que provou ter sido uma decisão correta.

No mundial de Doha, no Catar, em 2015, Marieke se tornou tricampeã mundial ao vencer nas distâncias de 100, 200 e 400 metros. Além disso, ela é detentora, até hoje, dos recordes mundiais nos 400, 800, 1500 e 5000 metros na categoria T52. Ainda assim, ela classifica a medalha de ouro nos 100 metros e a de prata nos 400 em Londres 2012 como a sua maior vitória na carreira.

“Quando me sento na cadeira de rodas, tudo desaparece. Me desprendo de todos os pensamentos obscuros, o medo, a tristeza, o sofrimento e a frustração. Foi assim que consegui ganhar tudo que ganhei”

As dores, porém, progrediram e Marieke já não as suporta mais.

“Todo mundo me vê com a medalha de ouro, mas ninguém vê o lado obscuro.”

O lado obscuro

Seria exagero dizer que Marieke mora sozinha. Na verdade, a belga mora acompanhada de seu inseparável cachorro Zen. Com ele, ela divide as noites intermináveis em que não consegue dormir mais do que 10 minutos mesmo sob efeito de morfina.

Além dele, uma enfermeira aparece quatro vezes ao dia para ajudá-la a ir ao banheiro e trocar de roupa. Um casal de amigos lhe ajuda levando e trazendo Marieke dos treinos numa cidade vizinha. E o pai está sempre por perto para socorrer quando, com cada vez mais frequência, ela aperta o botão que significa um ataque epilético ou dores insuportáveis.

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Sem tréguas nas dores, não restou outra medida à corredora que não fosse recorrer à eutanásia, permitida na Bélgica desde 2002. O país é um dos mais permissivos do mundo em relação ao procedimento letal. Lá, em média, cinco pessoas por dia decidem morrer por esse método e até menores de 18 anos podem recorrer a esse procedimento desde que com consentimento dos pais.

Mas mesmo na Bélgica, o processo não foi assim tão fácil. Marieke teve que convencer  um psiquiatra de que sua decisão não se devia a um estado de espírito momentâneo e provar a três médicos diferentes que as dores são tão intensas que ninguém consegue viver com elas e que não existe nenhuma esperança de melhorar. Apesar de tudo isso, a belga parece não guardar rancor da vida.

“Já comecei a me preparar para a eutanásia. Mas não sofro. Apesar da minha condição, tenho sido capaz de experimentar coisas que os outros podem apenas sonhar”

Antes de ter os papéis em mãos, Marieke só conseguia pensar no longo processo de dor e sofrimento que teria que enfrentar. Hoje, a sensação é bastante diferente. 

“Quando quiser posso pegar meus documentos e dizer é o suficiente! Quero morrer. Isso me tranquiliza quando tenho muita dor. Não quero viver como um vegetal”

Os últimos desejos

Com a certeza de que poderá optar pelo momento desejado, Marieke faz planos para a hora da morte. Escreveu uma cara que deverá ser entregue aos seus pais e amigos apenas depois que se for. Quer que eles se lembrem dela com alegria e para isso planeja uma cerimônia alegre, com músicos e taças de champagne. Depois disso, quer ser cremada e…

“Que lancem minhas cinzas em Lanzarote, onde a lava se funde com o mar. Um lugar que me transmite paz e tranquilidade. É lá onde quero terminar.”

Antes disso, porém, ela garante que ainda tem o que viver. Quer aproveitar as pequenas coisas da vida. As refeições com as amigas. As conversas no jardim de casa. Tudo isso depois de voltar do Rio de Janeiro com uma medalha no peito. Missão que já sabe que será difícil.

“Depois do Rio, vou parar minha carreira desportiva. Quero ver o que a vida me traz e vou aproveitar os melhores momentos. Tenho uma lista do que quero fazer.

O Rio é meu último desejo. Existe a possibilidade de medalha, mas será difícil porque a concorrência é muito forte. Eu treino muito duro, mesmo se tiver que lutar dia e noite contra a minha doença. Espero terminar a minha carreira em um pódio no Rio.”

Da nossa parte, você terá toda a torcida do mundo.

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Atualização: neste sábado (17), a para-atleta conquistou a sua segunda medalha olímpica no Rio de Janeiro e encerrou sua carreira esportiva cumprindo seu último objetivo. Depois da prata nos 400 metros rasos categoria T52 no dia 10, hoje foi a vez da conquista da medalha de bronze nos 100 metros. Agora Marieke terá uma grande lista de coisas a fazer na volta pra casa até chegar a hora de dizer adeus.

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>