A fachada é de mármore e o logotipo é imponente. Na recepção, você provavelmente será atendido por uma funcionária terceirizada. Outsourcing está na moda e reduz custo.
Uma faixa dizendo que essa é uma das X melhores empresas para se trabalhar estará posicionada estrategicamente à sua direita. Quem colocou ela lá foi o marketing, em parceria com o departamento pessoal. Não foi o José, diretor do marketing, juntamente com a Francisca, diretora do departamento pessoal. Foi o marketing e o departamento pessoal, entidades que ganharam vida (e perderam carne e osso), assim como todos os outros departamentos daquela grande corporação.
Frases como “O RH não permite” e “Tem que pedir pro Global” se tornaram comuns nos corredores, perto da requisitada máquina de café, onde os funcionários, todos trajados de acordo com o dress code, respiram aliviados e desfrutam de uma pausa.
Degraus e mais degraus de burocracia castigam o ânimo de quem tenta propor algo novo. “Aqui é assim que funciona”, diz o sênior para o estagiário. Um fluxo de apatia se instaura e, exaustos, desistimos: vamos ser felizes de final de semana.
A máquina não nasce pronta
Antes de se tornar uma grande empresa, quando a fachada não era de mármore e o logotipo era caseiro, talvez essa empresa fosse, de verdade, a realização do sonho de alguém. Talvez a plaquinha de missão, visão e valores realmente servisse pra algo além de decorar a parede da sala da diretoria.
Com o tempo o projeto ganhou escala. Pessoas e mais pessoas foram contratadas, montou-se uma hierarquia, fazia sentido crescer. Os que faziam parte do núcleo duro, que pariram a coisa toda, não conseguiam mais transmitir o sonho, o propósito daquilo existir. Alguns anos à frente e o que temos é uma grande máquina que opera através de crachá, vende plano de carreira e acaricia ego com distribuição de lucros e mesa com frutas.
Em tempos de “Faça o que você ama”, o usual é enxergar as empresas como sendo a raiz de todo o mal, como se empreender fora delas fosse a grande solução, como se só desse para causar impacto positivo de verdade através das ONGs e iniciativas do gênero. Temos empresas mais poderosas que governos.
Por que não conseguimos alocar essa potência toda na direção que realmente desejamos seguir?
O que é uma empresa?
Proponho um experimento: imagine a sede de uma grande empresa, com todas as baias, computadores, corredores, banheiros e ilhas de impressão, funcionando a todo vapor, cheia de dinheiro. Agora imagine que todos os funcionários dessa empresa desapareceram.
Não sobra nada. A empresa não existe mais, não tem utilidade alguma. A empresa só é uma empresa por conta do conjunto de pessoas que despende tempo, energia e intelecto para que ela exista. Em essência, uma empresa é uma alucinação coletiva. Ela agrupa o lado bom e o lado ruim dos que a compõe.
Nossa inabilidade em trabalhar em rede, somada a nossa educação tradicional, que prioriza a competição e o acúmulo, faz com que essa alucinação ganhe vida e, em poucos anos, deixe de servir ao propósito para o qual foi criada.
Como nos posicionamos nisso tudo?
Nos sentimos confusos e impotentes, especialmente se estivermos falando de empresas muito grandes, que possuem vocabulário próprio, datas comemorativas, nomenclatura de cargos, hierarquia rígida, ecossistema completo.
Imersos, fica realmente muito difícil entender que, com certa quantidade de esforço (às vezes — nem sempre — mais do que somos capazes de fazer sozinhos), é possível que a empresa opere de outra forma, mire outros objetivos e seja capaz de proporcionar o sentimento de satisfação e propósito que a gente sente quando empreende por conta, ou quando dedica tempo para alguma causa não profissional e benéfica para a sociedade.
Deste cenário caótico surgem diversas possibilidades: tem os que se preocupam em fazer o seu e ganhar o salário, sem muitas reflexões, tem os que se revoltam e vão trabalhar com o terceiro setor, em busca de propósito, e tem os que incorporam todo o script e cultura. Não creio existir postura certa ou errada, mas é fato que a gente só consegue gerar algum impacto positivo se estivermos ao menos cientes da posição que estamos ocupando.
Ficar reclamando que a gente veste a camisa da empresa mas a empresa não veste a nossa não vai nos levar a lugar nenhum.
Ou a gente entende que as corporações são estruturas maleáveis constituídas essencialmente de pessoas e que, portanto, podem ser adaptadas de modo a se inserirem de maneira benéfica na sociedade, ou viramos refém delas, deixamos de ser protagonistas do jogo e sofremos as consequências disso.
O papel das empresas hoje
Nos dias 24 e 25 de abril fomos convidados para cobrir o Sustainable Brands Rio 2014, evento que se propõe a discutir qual o papel das marcas na nossa sociedade. A Camila Haddad esteve na edição anterior do evento e compartilhou, aqui, seu maior receio: que a distância entre o discurso e a prática fosse gigantesca.
Ressabiado, fui com a mesma cautela, e em meio a alguns poucos discursos que visavam somente a divulgação de case e propaganda, a surpresa foi boa.
Encontrei pessoas que já sacaram que a gente não vai sair do lugar se os projetos e as melhorias forem implementadas tendo como único objetivo a geração de slides no PowerPoint. Foi como se os palestrantes pisassem no palco com cautela, como se dissessem “Eu sei que a gente ainda não está fazendo tudo o que pode fazer, mas estamos nos mexendo”.
Nas palestras que abordavam mais diretamente a sustentabilidade, a questão chave foi unânime. O que falta não é eliminarmos os copos plásticos, ou reciclar todo o lixo. O ponto, que vai desaguar em todas essas práticas, é:
Como tornamos a sustentabilidade algo desejável, que possa ser incorporado à atividade principal da empresa — e não fique por conta de uma equipe afastada e sem expressão —, e cujo resultado seja positivo e mensurável?
A obrigação dificilmente vai gerar um movimento poderoso. Entender que a mudança significa empresas mais prósperas vai.
Pra onde vamos?
A fala que ganhou maior destaque no evento foi a da Denise Alves, head de sustentabilidade da Natura, defendendo que a preocupação de antes (menos impacto negativo) já não serve. Precisamos de impacto positivo, de ajuda. Atrapalhar menos não basta.
Um alívio encontrar falas assim vindo de dentro das grandes corporações, em tempos em que o usual é acreditar que grandes mudanças só poderão ser protagonizadas pelo pequeno empreendedor apaixonado. No momento que a gente se enxerga como rede isso passa a ser uma coisa só. Não existe estar dentro ou fora do sistema.
Precisamos de gente lúcida tocando o cenário microempreendedor, e de gente lúcida dentro das grandes empresas, direcionando, utilizando todo o alcance que as instituições mais robustas possuem.
É razoavelmente comum as empresas menores e mais ágeis “emprestarem” suas inteligências (preocupação com o indivíduo, treinamentos, valorização da experiência de trabalho, esmero artesanal com o que está sendo feito) para as empresas maiores, mas ainda falta a gente conseguir enxergar que as inteligências mais valiosas presentes nas grandes empresas não precisam ficar só por lá.
Existem projetos incríveis e admiráveis que sobrevivem por milagre, que enfrentam dificuldades todo final de mês e que dependem da caridade alheia. Projetos que voariam longe, muito longe, se conseguissem incorporar qualidades frequentemente presentes nas grandes, como administração competente, preocupação com eficiência e maturidade operacional.
No fim, entre pequenas, médias e grandes, entre setor público e privado, o que falta mesmo é parar de procurar time pra integrar ou torcer e realmente entender que a gente faz parte de um todo, de uma rede que segue junto, e que a maneira através da qual a gente se posiciona e interage não se limita à nossa startup descolada. Nem ao nosso crachá.
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