“Olá, pessoal do PapodeHomem,

Bom, essa é terceira vez que sento e tento tirar coragem pra escrever esse meu relato…

Hoje sou um homem de 29 anos, já na eminência da crise dos 30, graduado, empregado, dono das minhas ações, socialmente estabilizado e… infeliz.

Primeiro devo dizer que, infelizmente, há pouco tempo conheci o PapodeHomem, mas mesmo nesse breve convívio pude aprender tanto, pude rever valores e conceitos erroneamente pré-estabelecidos de forma tão arcaica em minha mente. Uma das sessões mais intrigantes e que mais me assusta é a coluna que sai às quintas, a “ID”, e eu não “entendia” o por que isso me amedrontava tanto. Ate que eu compreendi, até que relembrei um passado muito obscuro e triste da minha estória. Uma coisa tão ruim que acredito que meu subconsciente fez questão de tentar esquecer .

Tenho 30 anos e nenhum relacionamento afetivo duradouro, nenhum vinculo afetivo real que não seja o familiar. Sempre fui uma pessoa arredia, nunca fiz questão de pedir ajuda às pessoas, sempre fui o que se chama de “passivo agressivo”, sempre me esquivava de qualquer contato físico íntimo como demonstrações de abraços. O fato das pessoas me tocarem, encostarem sua pele em mim me causa desconforto. Sinto uma necessidade urgente de me higienizar, lavar as mãos e aplicar colírio nos olhos.Com o tempo isso começou a me incomodar. Por que sempre me esqueço das pessoas? Porque meus relacionamentos nunca foram profundos e bons, por mais que eu quisesse? Porque num primeiro momento não gosto de ser tocado por outras pessoas nem mesmo por um simples aperto de mão?

Nunca soube ao certo o porque disso, ou nunca me atentei. Até que tudo veio à tona.  Lembrei de coisas tão ruins do meu passado que tive uma crise de choro tão forte, mas tão forte que achei que se não me controlasse seria capaz ate mesmo de cometer suicídio, afinal tudo agora fazia sentido. E por culpa minha, minha vida chegou a esse ponto.

Sim, eu fui molestado e abusado quando eu era criança… Até mesmo o ato de digitar essas palavras me causa um tremor… Até esqueci por um tempo, mas o passado sempre volta.

Eu devia ter uns 6 ou 7 anos, não me lembro ao certo, na verdade, lembro de fatos soltos. Sempre fui uma criança bonita e triste. Lembro que tínhamos uma babá/empregada que ficava comigo em casa a tarde, Leia era o nome dela, devia ter seus 17 ou 18 anos. Ela era corpulenta, bem formada, morena clara de sorriso largo e cabelos ondulados. Lembro que ela tinha um forte cheiro de pele. Pele humana, quente e úmida …não gostava que ela me desse banho … ela me tocava durante o banho me dizia que eu era um menino muito bonito e que me queria só pra ela… às vezes ela forçava meu prepúcio pra que minha glande ficasse exposta e ela com a ponta do seu dedo indicador me alisava. Na hora de me enxugar, fazia com que eu sentasse no colo dela e ficasse encostando em seus seios grandes. Meu deus, aquele cheiro… às vezes eu chorava.

Com o tempo, minha mãe descobriu que ela roubava alguns anéis e a mandou embora. Quando mudamos de bairro, como toda criança, busquei fazer amigos, alguns da minha idade estudavam no mesmo colégio. Não demorou muito pras coisas ficarem diferentes. Os garotos maiores sempre me olhavam como se eu estivesse nu no meio deles. Alguns se alisavam enquanto olhavam pra mim e isso me assustava. Lembro de dois fatos em que fui abusado por eles. Um era um vizinho, não me lembro o nome dele, mas ele era bem mais velho. Se eu tinha uns 7 anos, ele devia ter seus 19 ou 20. Não lembro se ouve penetração (ou talvez eu não queira lembrar), ele era alto, seu membro muito grande, e me lembro da cor da cueca dele: vermelha.

No outro caso foi mais grave, havia um campinho perto do bairro, com umas árvores e uma pequena mata. Dessa vez eram em maior número, uns 3 ou 4. Um deles era o irmão mais velho e um dos amiguinhos que estudavam comigo na mesma sala de aula. E foi justamente ele que me levou atá os outros. Inventaram uma desculpa, disseram que era pra eu fazer parte do grupo e essas coisas. Falavam que eu era muito bonito, muito branquinho e que a culpa era minha. Me fizeram tocar neles, me deixaram nu, com medo e com frio. Passavam seus órgãos no meu rosto, me seguravam… fiquei com muito medo comecei a chorar. Disseram que me matariam se contassem pra alguém, que era só uma brincadeira. Não me lembro se ouve penetração, mas me deixaram ir embora.

Depois de alguns dias, contei à minha mãe. Ela se desesperou e nos mudamos mais uma vez.

Desde então, eu tenho me tornado uma pessoa com medo das outras, o assunto foi escondido pelo resto da família e eu cresci assim. Durante a adolescência sempre tive os mesmos olhares sobre mim. Até mesmo um médico num exame de “micose” para o clube me tocou de uma forma “diferente”… pra mim, esse tipo de coisa sempre iria acontecer e teria que aprender a conviver com isso.

Agora, sou um adulto que não gosta de ser tocado, na maioria das vezes acho o sexo vulgar e grotesco, não consigo me lembrar dos meus sonhos, e tudo que é ligado ao puro e à pureza chama minha atenção. Tudo que é imaculado, cristalino. Adoro objetos de vidro, mas agora vejo que não é simplesmente um gosto, hoje vejo que é uma fuga. E também não tenho paciência com crianças, principalmente meninos de idade de 7 anos.

Sei que isso me causou muitos danos. Gostaria da opinião do psicólogo que assina a coluna ID. Isso é um carma que eu tinha que passar… eu só queria ser uma criança feliz pra não ser esse adulto triste de hoje.

ZY”

* * *

Caro ZY,

Não é incomum que pessoas que sofreram abuso alterem o seu comportamento, fiquem mais fechadas, medrosas e tenham sintomas físicos terríveis. A pessoa se questiona se aquilo realmente aconteceu e chega a duvidar da sua sanidade. Costuma se questionar se vai virar um pedófilo ou criminoso, como dizem as lendas sobre abusadores. Às vezes surge a culpa por imaginar que tenha causado aquilo ou se seria capaz de alterar a orientação sexual. O momento do desabafo é um incrível alívio.

Sobre o abusador

Seria excelente traçar um perfil do abusador como um pedófilo sem caráter que se arrasta como um Quasímodo pelos becos da cidade ou um tarado bigodudo e gordo (clichês de filmes) atrás da tela do computador em sites da internet corrompendo criancinhas.

O limiar que diferencia uma pessoa que abusa de outra é pequeno. Pode ser qualquer pessoa. Os alvos em sua maioria costumam ser crianças, os agressores também podem ser crianças, um pouco mais velhas.

Eu dividiria essa categoria entre abusadores ocasionais que são aqueles que cometeram abuso uma vez só na vida numa condição específica (muitas vezes descobrindo a própria sexualidade) e os abusadores contínuos, que de dedicam a essa maneira de se relacionar com as crianças e que sofrem de uma parafilia.

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“Shhhh….. Eu estou apenas dando uma olhada em você”

Esses poderíamos chamar de pedófilos, já atendi alguns no consultório. O pedófilo costuma ser uma pessoa que passa bem discretamente aos olhos suspeitos, como aquele professor divertido, o palhaço de festas infantis, o Papai Noel do shopping, o tio do sorvete, o padrinho legal, o padre/pastor/rabino/pai-de-santo querido, o primo inteligente, o padrasto dedicado, o pai responsável e a mãe amorosa.

Qualquer pessoa pode cruzar lentamente essa linha queimando a largada da primeira pequena concessão até agir de forma cada vez mais ousada e invasiva.

A sedução da primeira vítima abusada é também uma descoberta para o abusador. Para ele, não é um abuso, mas uma forma de conhecer aquela criança adorável e carismática mais de perto. De repente, numa brincadeira de pular corda, ele entrevê a calcinha aparecer debaixo da saia que balança. O desejo súbito e proibido aparece, “como é possível? isso é errado!”, ele próprio se pergunta. O tempo passa e ele não consegue parar de pensar naquela criança dócil, como alguém que se lembra do brigadeiro guardado na geladeira. Aquela vontade de apertar a bochecha dela é a mesma que a sua, mas existe um brilho a mais que os demais não veem. Essa pessoa se sente emocionalmente (às vezes sexualmente) incapacitada para vivenciar algo mais maduro e consistente com uma pessoa da sua idade. Muitos pedófilos são casados e pais de família que podem buscar seus alvos dentro ou fora de casa.

Cada pequeno assédio do abusador contínuo é uma barreira rompida em sua saga de descobertas e “aventuras” sexuais. Ele racionalmente sabe que não deveria entrar nesse território, mas se deixa corromper pelos seus desejos e avança sobre o doce “irresistível”.

Com o passar do tempo, sua liberdade vai se unindo à habilidade que tem de forjar situações onde estará isolado com alguma criança para iniciar e dar seguimento à sedução sutil.

Como bom conhecedor do mundo infantil, sabe que não precisa muito além de elogios, palavras suaves em tom de voz ameno, brinquedos e doces para distrair e ganhar confiança. É quase uma fase de paquera até que a criança se sinta suficientemente confortável ao seu lado. Costuma ser alguém de confiança da família (ou um membro dela), que de outro modo, nunca deixaria sua criança na presença de um adulto desconhecido.

A fina película moral que o separa de fazer carícias despretensiosas até chegar em beijinhos no rosto e no pescoço vai sendo rompida aos poucos. A ousadia máxima de incitar a criança a acariciar seus órgãos genitais e fazer o mesmo acontece num clima onde o medo de ser pego e a sensação de culpa social já foram superadas. Muitas vezes, fazem até parte da fantasia, como o casal novato que transa no quarto ao lado dos pais. Ele usa a mesma racionalização que nós para sonegar impostos, dirigir alcoolizado, dar um tapa mais forte no filho malcriado, humilhar um funcionário, perseguir um ex-namorado, comer além da conta e gastar mais do que deve. “Não é de todo mal, afinal parece não haver consequências ruins, ela está gostando”, assim se justificam.

Somos muito bons na arte de enganar a nós mesmos. O que nos leva a nos endividar, a prometer mudanças de ano novo, agredir uma pessoa querida, importunar um colega de trabalho, bater o carro é o mesmo que acontece com o pedófilo quando avança sexualmente sobre uma criança, ele acha que pode sem maiores sequelas, pois subestima os prejuízos.

A autoimagem dessa pessoa vista como um monstro pela sociedade é a mesma de alguém que está embriagado – até sabe que passou do ponto e se tornou inconveniente, mas mesmo assim continua. A racionalização pode ser tão patológica em casos (com outros transtornos mentais associados) que a pessoa chega a se reconhecer incompreendida em seus sentimentos e se vê como alguém que foi obrigada a amar em segredo por ser vítima de preconceito.

Abuso cometido por homens e por mulheres

Homens tem uma tendência a expressar suas emoções pela sexualidade e quando contrariadas impor sua força e dominação. Os estupros e abusos exclusivamente sexuais tem autoria soberana masculina, esse é seu último ato de desespero para impor sua virilidade, mesmo subjugando alguém mais frágil.

Eu tinha 20 anos, eu não tinha chegado a uma conclusão de que era transgênero ainda… Ele tinha 26 anos, era meu amigo, eu confiei nele. Ele me convidou para uma festa, ele colocou algo em minha bebida. Enquanto ele me agrediu, seus amigos gravaram aquilo. Quando eu o confrontei depois de alguns dias, ele disse:  "Apenas porque você não lembra disso, não significa que você não tenha gostado”. Mike, 42 anos, transexual masculino. Eu tinha 20 anos, eu não tinha chegado a uma conclusão de que era transgênero ainda… Ele tinha 26 anos, era meu amigo, eu confiei nele.
Ele me convidou para uma festa, ele colocou algo em minha bebida. Enquanto ele me agrediu, seus amigos gravaram aquilo. Quando eu o confrontei depois de alguns dias, ele disse:
Eu tinha 20 anos, eu não tinha chegado a uma conclusão de que era transgênero ainda… Ele tinha 26 anos, era meu amigo, eu confiei nele.Ele me convidou para uma festa, ele colocou algo em minha bebida. Enquanto ele me agrediu, seus amigos gravaram aquilo. Quando eu o confrontei depois de alguns dias, ele disse:”Apenas porque você não lembra disso, não significa que você não tenha gostado”. Mike, 42 anos, transexual masculino.

As mulheres usam táticas passivo-agressivas para atacar sua presa, como chantagem, birra, greve de sexo, silêncio torturante e coisas do gênero. No seu caso ZY, sua empregada foi mais direta e intrusiva. A experiência de uma menina em ter sua pureza corrompida pelas mãos insanas de um homem perturbado é algo terrível, mas há abusos cometidos por mães com seus filhos. Os homens costumam abusar sexualmente porque a maneira de expressar seu desejo de proximidade, o incesto das mulheres às vezes é velado, abusando emocionalmente de seus filhos com amor sufocante e excessivo. Nesses casos, não é incomum a mãe ameaçar o filho de castigos caso não dê um abraço, um beijo ou tenha raiva do pai.

Leia também  Traição, o que fazer e como superar?

Fica um trauma para a vida inteira?

Sempre me perguntam se a vítima de abuso terá sequelas pela vida inteira. Traumas, ou seja, quebras bruscas e violentas de um desenvolvimento natural sempre deixam cicatrizes. Raramente conheço alguém que não passou por algum tipo de quebra e, como tudo, vai depender de outros fatores para que algum tipo de patologia psicológica ou social se desenvolva.

Predisposições genéticas ruins, desamparo familiar, baixo nível de instrução intelectual e falta de apoio psicossocial criam terreno fértil para problemas múltiplos, e quando associados ao abuso sexual criam consequências desastrosas.

Na maior parte dos casos, essas pessoas terão uma sensação de sobre-esforço maior que outras, como se tivessem sempre tentando subir uma escada rolante que desce. Algumas podem se apoiar na dor para construir alternativas emocionais mais refinadas ou podem nivelar sua vida por baixo e adotar uma postura autopiedosa e cheia de comiseração pessoal. Outras assumem uma vida como se fossem bravos guerreiros invioláveis, mas isso pode levar a pessoa por um caminho de pseudo autossuficiência que, na realidade, agrava o seu embotamento emocional.

Uma pessoa que foi agredida em qualquer nível e âmbito da vida precisa de um cuidado extra, pelo menos para prevenir algum tipo de fixação de sua identidade ao evento do abuso. A nossa mente pode ser traiçoeira e se ancorar nesse fato para justificar qualquer atitude nociva para si mesma e para os outros. Paralisar nossa vida por um abuso ou uma unha encravada ainda é uma escolha, não podemos alterar o que está fora de nosso controle mas podemos decidir a atitude mental diante da dor.

Quais as sequelas?

As sequelas mais comuns de abusos sexuais são comportamentos sexuais conflituosos. A sexualidade tem um tempo gradual de manifestação que se acelerado ou precipitado causa algum tipo de confusão emocional. No caso do abuso, aquela ansiedade natural que existe na infância começa a ser povoada de ingredientes atormentadores.

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“Como pode uma garota estuprar um garoto?” – Quase todo mundo que eu tentei contar nos primeiros 4 anos depois que aconteceu.“Vira homem” – Minha noiva na época, ao ver o ataque de pânico que eu estava tendo, causado porque eu vi meu estuprador pela primeira vez depois do ocorrido, oito anos antes.

Com o tempo, essa pessoa pode seguir dois caminhos mais comuns.

O primeiro é adotar uma postura repelente ao sexo, associando o asco que ficou enterrado em sua memória emocional com qualquer forma e expressão de sexualidade. Cria um tipo de fobia de intimidade que se arrasta por todo tipo de relação com o sexo oposto. Costuma se refugiar em filosofias e religiões para acobertar seus desejos e acaba se sentindo sujo e incapaz de gozar prazer sexual adulto. É como se revivesse (mesmo sem querer ou ter consciência) a sensação de mal-estar original onde sexo e abuso de poder eram uma coisa só. Os homens podem se tornar tímidos, inibidos e impotentes sexualmente, as mulheres criam uma frigidez protetora.

A segunda postura, não menos problemática, é criar um mecanismo contrafóbico em que esparrama sua sexualidade por todos os canais como uma forma de se proteger do pânico da intimidade sexual. Superficialmente, a pessoa superou o bloqueio, mas adicionou uma camada nesse conflito tentando se mostrar bem resolvida e hiperdesejosa.

É como se ela estivesse o tempo todo gritando para não ouvir o silêncio ensurdecedor. Oculta sua dor se expondo a novos e mais sofisticados tipos de abusos emocionais, como se sua mente tentasse superar o sofrimento revivendo inúmeras vezes a mesma sensação. É uma autopunição em forma de subversão, como aquelas pessoas que se dizem autênticas e chegam chutando os outros, mas no fundo tem medo da reprovação social.

Muitos Don Juan podem estar tentando compensar uma resistência emocional desse tipo, assim como garotas que desenvolvem um transtorno de personalidade histriônica (dramática, exagerada e sexualmente intrusiva).

Não é raro observar pessoas adictas em drogas, álcool, comportamentos de risco e sexualidade patológica quem foram molestadas. Adrenalina excessiva e drogas são tentativas inócuas de automedicação para angústias dessa ordem que levam à perpetuação do desespero em doses homeopáticas.

O abusado vira abusador?

Existe uma lenda que se prega em filmes e seriados de investigação criminal de que os que cometem abuso sexual estariam descarregando nos outros a dor que sofreram. O que nos levaria a pensar que toda criança que foi abusada sexualmente carrega consigo a semente da pedofilia. Isso não é verdade, pois as mentes perversas precisam de qualquer empurrão para liberar impulsos destrutivos, seja um abuso ou não.

Nem todo pedófilo ou abusador tem um histórico de abuso sexual, mas sim um desejo irrefreável de dominância. Já comentei em outro texto que nem todos os eventos infantis necessariamente criam comportamentos específicos em adultos.

Abusadores são loucos ou psicopatas?

Essa é uma pergunta que muitos advogados fazem, pois quando o crime acontece o seu agente precisa ser definido como imputável (responsabilidade ou capacidade da pessoa em entender que o fato é ilícito e de agir de acordo com esse entendimento) ou inimputável.

A regra é a mesma com a pedofilia, se não estiver associada com os casos de doenças mentais que debilitem a capacidade de julgamento do sujeito, continua sendo um caso de imputabilidade e o réu é julgado em plenas condições legais de escolher o que faz, ainda que ele ceda a impulsos mais doentios que à média da população. Ele é punido por burlar suas regras pessoais e do direito alheio independente de ter uma compulsão patológica. Podem ser “loucos” (transtornos psicóticos) ou psicopatas (desvio doentio de personalidade sádica).

O que passa na mente deles?

Quando aborda a criança, o abusador entra num outro mundo que nem consegue descrever. É o mesmo fascínio que você tem quando está fazendo dieta e encontra o prato favorito. A mesma concessão que faz para si mesmo antes de atacar o doce é o que acontece com o abusador. Ele sabe que não deveria, mas sente o cheiro da criança tão apetitoso que não importa quanto tempo gaste, irá se dedicar até conseguir encontrar um momento íntimo.

“Vamos...Ninguém precisa saber.” Às 5 da manhã em um banheiro do dormitório na minha sexta noite na faculdade. Bem, adivinhem? Agora a universidade também sabe. “Vamos…Ninguém precisa saber.”
Às 5 da manhã em um banheiro do dormitório na minha sexta noite na faculdade.
“Vamos…Ninguém precisa saber.”Às 5 da manhã em um banheiro do dormitório na minha sexta noite na faculdade.Bem, adivinhem? Agora a universidade também sabe.

Ele cria o cenário, usa ferramentas como Whatsapp, Facebook, telefone, escolinhas, acampamentos, enfim, qualquer lugar que ofereça oportunidade de permanecer sozinho com uma criança.

Dali para a frente é como uma caçada insaciável, até que possa se ver dominando o espaço, o corpo infantil e se saciando, não necessariamente chegando ao orgasmo ou à penetração. A tara é pela dominação da inocência.

Como identificar uma criança abusada?

Muitos pais devem estar preocupados agora pensando em seus filhos e tendo o impulso de olhar mais de perto para checar se algo diferente está acontecendo. Porque muitos tem o hábito de olhar com atenção para os filhos apenas quando há um risco?

É óbvio que essas características desacompanhas de contexto, falta de evidência e um relato incomum da criança podem ser isoladamente apenas traços de problemas eventuais, mas vale à pena ficar atento se certos sinais que as crianças apresentam são predominantes como:

  • irritabilidade desproporcional;
  • birra excessiva;
  • agressividade (que incluem perturbar outras crianças);
  • vergonha e timidez incomum;
  • medo estranho de adultos ou estranhos;
  • mudanças bruscas de comportamento;
  • dores fantasmas pelo corpo ou doenças repetitivas;
  • prisão/incontinência urinária ou fecal;
  • vermelhidão/feridas pelo corpo e principalmente na região genital e anal;
  • brigas na escola, queda de desempenho escolar, apatia geral;
  • excesso ou perda de sono;
  • pesadelos repetidos.

O que fazer quando há essa suspeita?

O mesmo que deveria estar fazendo sempre com os filhos: observar, conversar, interagir, conhecer a vida e a rotina dele. Sem paranoia ou perguntas intrusivas, questionar com naturalidade sobre os amiguinhos da escola e do prédio. É sempre bom analisar também os desenhos feitos, as músicas que ouve, os sites que navega na internet, os amigos em redes sociais.

O objetivo não é criar uma cerca inviolável que sufoque a própria criança, mas oferecer um espaço saudável de interação.

O mais importante é que você seja visto como uma autoridade que resolve os assuntos difíceis. Muitas crianças (se não todas) testam os limites que os pais impõem e é por ali que elas confiam ou não em sua capacidade de protegê-las.

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“Homens não podem ser estuprados” – era o que ouvia quando eu contava a alguém.

Pais muito permissivos (e que tentam ser amiguinhos) são vistos como fracos e domináveis pelos filhos, portanto, incapazes de oferecer proteção num caso real de abuso. A criança sente assim: “ele nem me segura quando eu estou errado e faz tudo o que eu mando, como irá me defender de verdade?”

O outro extremo também não funciona, pois não adianta em nada a severidade austera de um pai/mãe descontrolado e agressivo. É como tentar abrir uma lata de palmito na base da força e não do jeito. Uma criança abusada está com sentimentos embalados à vácuo, mais pressão não adianta.

Muitos pais amorosos não entendem porque seus filhos não conseguiram se abrir. A resposta é culpa, elas se sentem problemáticas e não querem criar mais problemas para pais sempre apressados, afobados, cheios de compromissos inadiáveis e que se queixam o tempo todo.

O Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República recebe as denúncias relativas a vários assuntos que envolvam minorias e grupos de risco. Surpreendentemente, depois do depoimento da Xuxa sobre o abuso sexual que sofreu, o Disque 100 recebeu 285.051 ligações  em apenas um dia.

A ajuda psicológica de um profissional é essencial para que uma criança possa ter um tratamento adequado e que não crie um tipo de cristalização na pessoa do tipo “sou um abusado ambulante”. No caso de adultos que foram vítimas de abuso e carregam esse fardo (nem todos) recomendo terapia também, afinal, conheço pessoas que me procuraram já com 60 anos e guardavam amarguradas esse segredo por anos.

Depois de ler tudo isso, algumas pessoas poderão ter o impulso de se apiedar de você, julgar sua personalidade ou tentar transformar num super-homem que sobreviveu e encarou o drama.

Isso é uma cilada, pois se ver como um coitadinho, um perturbado ou um herói seria reduzir sua vida ao abuso, como se tudo gravitasse em torno desse evento. Você irá lembrar disso para o resto da vida? Claro, já que não tem problema de memória, mas quando se cuidar de verdade poderá lembrar sem pesar, orgulho de vítima que sobreviveu ou receio de represálias.

Que bom que você escreveu ZY, pois sei que também falo muitas vozes silenciosas que caminham por aí com um peso no peito sem poder refletir, ser feliz ou saber como agir. O abuso é mais comum do que os puritanos gostam de pensar e menos frequente do que os alarmistas do apocalipse dizem, no entanto, é sempre bom estar informado para que o ódio não seja a única resposta que se coloque diante de um problema de saúde pública, muito mais do que de bandidagem ou falta de caráter.

* * *

Nota: A coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas), mas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não me condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.

A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão livre, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.

Antes de enviar sua pergunta olhe as outras respostas da coluna ID e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa e se mesmo assim achar que ela beneficiará outras pessoas envie para id@papodehomem.com.br.

* * *

Nota do Editor: todas as imagens desse texto pertencem ao projeto Unbreakable. Os dizeres nos cartazes são o que os agressores disseram no momento dos abusos.

Frederico Mattos

Sonhador, psicólogo provocador, é autor do <a>Sobre a vida</a> e dos livros <a href="https://amzn.to/39azDR6">Relacionamento para Leigos"</a> e <a href="https://amzn.to/2BbUMhg">"Como se libertar do ex"</a>. Adora contar e ouvir histórias de vida no instagram <a href="https://instagram.com/fredmattos/">@fredmattos</a>. Nas demais horas cultiva a felicidade