É de Robert Capa, um dos fundadores da agência Magnum, a mais famosa e repetida frase sobre fotojornalismo:
“se suas fotos não estão boas o suficiente, é porque você não está perto o suficiente”.
O fotógrafo húngaro, que cobriu os principais conflitos da primeira metade do século passado, morreu honrando o lema ao pisar numa mina terrestre, em 1954, durante sua cobertura da Guerra da Indochina. Máquinas e objetivas mais elaboradas não foram capazes de mudar essa verdade: lugar de fotojornalista é no front de batalha, no meio do fogo cruzado, em busca da melhor imagem, bem perto da morte.
Quando o presidente americano George W. Bush deu ultimato de 48 horas para Saddam Hussein e seus familiares deixarem o Iraque, em 17 de março de 2003, o fotógrafo Juca Varella, da Folha de S. Paulo, estava em Londres ao lado do repórter Sérgio Dávila para comprar máscaras contra armas químicas e biológicas, coletes à prova de bala e outros equipamentos de segurança para cobrir a iminente guerra.
Com o cronômetro regressivo disparado, assinou um termo de responsabilidade exigido pela British Airways (companhia aérea britânica) e embarcou num gigantesco Boeing, com apenas 12 passageiros, rumo a Tel Aviv. De lá, pegou avião até Amã, na Jordânia, e, por fim, viajou doze horas de carro até Bagdá. Com suborno, conseguiu alugar um apartamento no hotel Palestine, reduto de correspondentes internacionais no centro da cidade. Entrou no quarto exausto após três dias de viagens. Poucas horas mais tarde, acordou com barulho das sirenes, das baterias antiaéreas e dos primeiros mísseis Tomahawk. A guerra havia começado. Era hora de trabalhar.
Cobrir guerra é o ápice na carreira de um fotojornalista. Não há evento no mundo mais rico em possibilidades de se conseguir uma grande foto: investigativa, impactante, exclusiva, histórica. Nem todos, no entanto, estão dispostos a vencer o medo em busca de boas imagens das barbáries de um conflito armado. É preciso ser durão. Dos mais de dois mil jornalistas que estavam no Iraque até o anúncio de Bush, somente cerca de 180 (incluindo equipes técnicas) ficaram na cidade durante as primeiras semanas de bombardeios.
Varella viu a morte rondar por longos e exaustivos dias: milhares de mísseis caindo pela cidade, tanque americano atingindo o hotel em que estava, colegas de profissão sendo mortos. Foi preciso controle para não entrar em pânico e fazer do medo um aliado: “o medo bem administrado impõe limites”.
A experiência de trabalhar em situações tensas no Brasil – rebelião, fuga de presídio, quebra-pau em manifestações, movimentos agrários, ações em favelas – era distante da realidade dos mísseis e da constante troca de tiros nas ruas de Bagdá. Varella não se privou de observar e aprender com fotógrafos mais tarimbados, como o americano James Nachtwey, que já havia estado no Afeganistão, Bósnia, Ruanda, Kosovo, Chechênia, Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Irlanda do Norte. A árdua tarefa de Nachtwey em registrar esses conflitos deu origem ao documentário War Photographer, indicado ao Oscar em 2002.
Link YouTube | Documentário sobre o fotojornalista James Nachtwey mostra a realidade da cobertura de conflitos armados
O único fotógrafo brasileiro no Iraque viveu a angústia de deixar para trás algumas das melhores fotos que poderia ter feito. “Se eu via que o Nachtwey recuava em algumas situações, sabia que havia muito perigo e que eu não poderia me arriscar mais. Deixei de fazer foto boa para caramba porque não conseguia chegar onde gostaria. Era muito arriscado”.
Mesmo assim, Varella teve que deitar no chão por várias vezes, ouvir as balas cruzarem não muito longe do seu corpo, torcer para não ser atingido. Durante ataque da resistência iraquiana próximo ao hotel em que estava, afrouxou suas regras de segurança e desceu para a rua no meio do tiroteio. Acabou surpreendido por um jovem americano apontando aos gritos um fuzil M16 para sua cabeça.
“Gritei que era imprensa, que era brasileiro, que estava trabalhando. Vi que ele estava mais nervoso que eu. Sabia que podia puxar o gatilho a qualquer momento. Muitos soldados estavam fazendo sua própria guerra. Não havia fotógrafos e repórteres na rua. Fui além dos limites”.
Equipamentos de transmissão e comunicação eram moqueados nos dutos de ar condicionado do quarto, que diariamente recebia visitas não anunciadas de espiões iraquianos. Foi preciso uma batida combinada na porta para evitar surpresas e perder a única conexão com o Brasil e a possibilidade de reportar diariamente.
O jornal municiou os dois correspondentes com informações e análises do conflito. Deixou para eles qualquer decisão sobre deslocamentos. A tomada do aeroporto da cidade, batalha sangrenta que durou vários dias, não pode ser fotografada de perto por ninguém. Ir até o aeroporto era assinar a própria morte. Da varanda do hotel, fotografou o primeiro bombardeio aliado contra a capitalBagdá (Juca Varella/Folhapress). Só ele e um fotojornalista francês conseguiram o registro.
A cobertura de Juca Varella durou 35 dias, 15 deles na Bagdá dos mísseis americanos e da resistência iraquiana. A saída do país foi outro momento de grande risco. Sem muito dinheiro, a dupla de jornalistas brasileiros precisou passar à frente da defesa iraquiana e cruzar o avanço das tropas aliadas. Pelo caminho, estradas e pontes destruídas, carros de imprensa incendiados e o temor de que o veículo em que viajavam fosse considerado suspeito pelos americanos.
Desafiar o instinto natural de sobrevivência e encarar a guerra tão de perto faz parte da alma de repórter. O jornal não pauta ninguém para a guerra, faz um convite. Claro que existe interesse profissional em conseguir imagens exclusivas do front para abastecer a cobertura, mas é preciso mais. Varella carrega desde criança o sentimento agitado dos investigadores.
“Sempre fui curioso, fuçador. Adorava as situações de quanto pior, melhor. Considero o repórter fotográfico um privilegiado e tento retribuir a oportunidade de estar em grandes eventos com o melhor trabalho que posso fazer. Fico mal mesmo em ter que fazer fotos de celebridades, de desfile de moda e de coluna social.”
O fotógrafo que registrou a derrocada brasileira na final da Copa de 1998, na França, e o título de 2002, na Coréia-Japão, diz que é preciso concentração no trabalho para conseguir boas imagens. “Tem que pensar que é um jogo comum, uma final de juniores. Não posso ficar refletindo que três bilhões de pessoas estão acompanhando a partida. É preciso bloquear a emoção”. A experiência vale para qualquer cobertura: primeiro é preciso garantir as boas imagens, fica para mais tarde administrar qualquer sentimento sobre a realidade que acabou de enfrentar.
O ensinamento foi seguido à risca durante reportagem especial sobre a fome na Etiópia, onde Varella encontrou famílias vivendo como bichos em meio ao falso assistencialismo de igrejas, aos infrutíferos esforços de organizações humanitárias e aos interesses escusos de grandes potências mundiais. “Você não pode chorar ao ver uma criança de sete anos que pesa 12 kg e está cheia de vermes saindo pela boca. É preciso registrar com frieza, concentrado em obter boas imagens. Do contrário, é melhor ir embora”.
Longe das mazelas africanas, no entanto, o fotógrafo não conteve a emoção. “Chorei várias vezes depois pensando na minha família, na minha filha. Não há nenhuma estatística sobre aqueles mortos. Ninguém sabe da existência deles. Tenho certeza de que o homem pré-histórico era mais feliz, porque estava contextualizado. Ali são apenas bichos morrendo, recebendo ração americana de qualidade inferior a que dão para porcos, trocada pela entrada no país de sistemas obsoletos de telefonia celular” (Juca Varella/AE).
As experiências de Juca Varella ao lado do repórter Sérgio Dávila estão contadas no livro Diário de Bagdá – A Guerra do IraqueSegundo os Bombardeados, que recebeu o Prêmio Esso de Reportagem de 2003. A viagem pela Etiópia com o repórter Jamil Chade rendeu outro livro, O mundo não é plano, lançado em 2010. Varella voltou para o Iraque outras duas vezes, em período de eleições, trabalhando para o jornal O Estado de S. Paulo, quando o perigo dos bombardeios havia dado lugar ao seqüestro de estrangeiros. Aos 48 anos, novamente trabalhando na Folha de S. Paulo, ele não descarta novas aventuras em campos de guerra. “Estou pronto”.
Jagunços com escopetas e bombas na cabeça
Os riscos que cercam o trabalho do fotojornalista “linha de frente” não estão apenas na guerra. Operações policiais em áreas do tráfico, manifestações mais acaloradas e conflitos fundiários podem se tornar bastante perigosas. No último dia 20 de abril, o fotógrafo do jornal Folha de S. Paulo Joel Silva, 46 anos, e o motorista da equipe de reportagem foram rendidos por jagunços encapuzados em estrada rural de Pau Brasil, no sul da Bahia, região palco de conflito entre fazendeiros e índios pataxós. Foram revistados e interrogados por cerca de sete minutos, sob mira de revólveres e escopetas, até serem liberados sob ameaças de não identificarem os agressores.
Para Joel Silva, o episódio faz parte do trabalho de investigação do jornalista. “É preciso estar preparado para uma situação extrema e ficar calmo quando algo assim acontece. Nessas horas, o pânico é inimigo. Lembrei dos treinamentos que tive em cursos com militares, não desrespeitei as ordens dos jagunços e expliquei que estávamos na região para acompanhar o conflito. Deu tudo certo e acabamos liberados”. O fotógrafo acredita que é justamente esse tipo de experiência que vai fazer diferença durante uma cobertura de guerra. “O jornal fica confiante em saber que você tem recursos para negociar numa situação dessas. Trabalhamos para estar sempre preparados para o momento difícil”.
No ano passado, uma foto de Joel Silva na Líbia correu o mundo através da agência Reuters. A imagem do cogumelo de pólvora e areia no deserto é resultado de uma bomba, lançada por caça das forças de Muammar Gaddafi, que explodiu a menos de cem metros de onde estava o fotógrafo. “Foi o registro do primeiro bombardeio do governo contra os rebeldes. Você não tem segurança de nada. É preciso contra com a sorte. Ouvi barulho do caça no céu e depois da explosão. Consegui virar a câmera e fotografar”.
Coragem, concentração e conhecimento dos fatos são indispensáveis na busca por uma grande foto. “Você precisa estar preparado para o front, saber bastante sobre a realidade do que está cobrindo e não deixar passar a oportunidade de fazer uma foto importante. O fotógrafo está sempre em busca de sua grande foto”. Além das imagens feitas na Líbia, ele destaca as crianças brincando na piscina da casa de chefes do tráfico no Rio e o guerrilheiro das Farc que acabou morto como algumas de suas fotos preferidas.
Futebol, política, celebridades: a (não) rotina fotojornalística
Para boa parte dos fotojornalistas que trabalham para veículos de imprensa, a rotina é não saber muito bem o que vai acontecer ao longo do dia. Do momento em que chega na redação até voltar para casa, o fotógrafo Ricardo Matsukawa, 39 anos, do Portal Terra, está sujeito a fazer fotos de chuva, futebol, política, celebridades, maquiagem, shows. Difícil planejar a jornada com muita antecedência. Algumas pautas caem, outras mais importantes surgem com a velocidade dos fatos: incêndio na favela, congestionamento na marginal, famoso dando entrevista na redação. Na era dos portais de notícias e da informação rápida, o fotojornalista precisa fazer um pouco de tudo, buscando o seu melhor olhar para coisas das quais nem sempre gosta.
Durante a apresentação das novas dançarinas do grupo É o Tchan, por exemplo, driblou a direção do assessor de imprensa e comandou seu próprio ensaio com as meninas. Deitou no chão, combinou poses e olhares, pediu para o grupo se abraçar e voltou para a redação com material diferente dos seus colegas. “Em qualquer pauta você precisa tentar o melhor. É preciso fugir do óbvio, mesmo quando você fotografa celebridades. Até fotos de maquiagem podem servir mais tarde, durante uma cobertura sobre feridos num hospital, por exemplo. Os aprendizados se conectam”.
A cobertura do tsunami que atingiu o Japão, em 2011, é a maior experiência profissional de Matsukawa.
“É fotojornalismo puro, é adrenalina na veia. Cidades arrasadas, riscos de contaminação por radiação, falta de combustível. Para onde eu olhava tinha notícia e fotos boas”.
Ele diz que a missão do profissional numa grande cobertura é denunciar, mostrar o que ninguém costuma mostrar, desvendar olhares inéditos sem perder o compromisso com a verdade.
Às vésperas de aumentar seu portfólio de grandes coberturas com as Olimpíadas de Londres e as eleições municipais brasileiras, Matsukawa espera pela oportunidade de, um dia, também cobrir uma guerra. “Sei que ainda não é a hora certa. Há pautas importantes a serem feitas aqui no Brasil, como em Belo Monte. Mas todo fotojornalista sonha em estar num conflito, em viajar em busca do lado B das histórias que conhecemos, em mostrar olhares diferentes sobre a fome e outras causas humanitárias, em entrar nos países mais fechados do mundo”.
Mesmo longe das pautas, Matsukawa enxerga o mundo com olhar de fotógrafo. Busca inspiração no cinema para desenvolver um trabalho autoral nas fotos, uma linguagem que funcione como sua assinatura.
“Fotojornalismo é viciante. É meu ganha-pão, mas é também minha maneira de olhar. O diferencial do fotojornalista diante das fotos de amadores é justamente a sensibilidade de encontrar o melhor ângulo, a melhor lente, a melhor luz e a melhor composição. Eu ando na rua pensando nas fotos que poderia fazer dos lugares”.
Aos 35 anos, o fotógrafo Léo Pinheiro, da agência FotoArena, também vive o dia a dia das pautas variadas que a cidade de São Paulo tem a oferecer. Futebol, trânsito, alagamentos, shows, teatro. Um mar de possibilidades em busca do prazer de ter uma foto publicada. “É muito bom saber que sua foto é capa de um portal, que está sendo vista por milhões de pessoas nas poucas horas que fica em destaque”. O sentimento, no entanto, é efêmero. “Fotografar é igual a fazer a barba. Todo dia tem que fazer de novo. Foto tem vencimento. É preciso buscar coisas novas”.
Recentemente, Léo Pinheiro teve duas fotos selecionadas para mostra com as melhores imagens de 2011. Dividiu espaço com Juca Varella, Joel Silva e outras feras do fotojornalismo paulista. Ainda é jovem na profissão, mas já pensa na cobertura de guerra como a “cereja no bolo” de qualquer carreira. Para ele, fotojornalista não pode perder o “olhar de fora”, precisa enxergar os fatos com frieza. “Não vejo fotojornalismo como arte. Eu vejo momento, sorte de estar no lugar certo, de registrar algo importante”. Sabendo que ainda tem muitas histórias pela frente, o fotógrafo resume o que pensa de si mesmo: “sou um caçador”.
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