"Toda semana eu ganho um dólar, e eu tenho que escolher em qual seção coloco esse dólar. existem quatro seções: gastar, guardar, doar ou investir. Se eu investir, meus pais me dão dois centavos extras no fim de cada mês. eu só coloquei dinheiro na seção 'gastar' duas vezes! eu tenho mais de dez dólares na seção 'investir'. eu tinha mais, mas peguei um pouco de dinheiro e coloquei na seção 'doar'. Utilizei esse dinheiro para comprar comida para quem não tem muito dinheiro na seção 'gastar'"

Esse trechinho, precioso, foi retirado do @humansofnewyork.

Tem tanta riqueza aí, tanto conceito importante, que corre o risco da gente ler, achar incrível, dar um suspiro, compartilhar no Facebook e… nada. 

Finanças para crianças é um tema recorrente, mas pouca gente aborda o assunto de um jeito aplicável, que favoreça a continuidade e que vá além do "será que eu devo dar mesada?". 

Esse texto é um pitaco despretensioso de como a brincadeira descrita acima pode funcionar, na prática, considerando o pouco que sabemos sobre educação financeira.

Antes de entrarmos na dinâmica, porém, precisamos falar sobre o porquinho.

Por que o porquinho pode não ser uma boa ideia?

Ajudar uma criança a gerir algum dinheiro utilizando um cofrinho é um ideia (no mínimo) questionável, porque ela carece de um dos fatores mais importantes de todo e qualquer planejamento financeiro: a clareza. 

Todo planejamento precisa ser simples, visual e extremamente intuitivo. Caso contrário, ele é abandonado no primeiro – e inevitável – tropeço. 

Quando colocamos moedas ou notas dentro de um receptáculo fosco, sem saída, inacessível, estamos reiterando uma cultura que repete, feito mantra, que dinheiro é algo que macula, que precisa ser discutido com muita discrição, que não faz parte do dia a dia. Estamos incentivando o acúmulo, o represamento e rejeitando a ideia, extremamente saudável, de que o dinheiro pode servir como um viabilizador, como um suporte.

Já adultos, de personalidade formada, forjada na base do sacolejo e do trauma, fica bem difícil dissolver essas crenças. 

Se o mecanismo mais requintado que estamos oferecendo as crianças é o porquinho, como esperar que nós, os adultos, entendamos o que é liquidez, rentabilidade, volatilidade? 

Crescemos sem base.

Educação financeira para crianças dá certo?

Seguindo a linha da última discussão que tivemos por aqui, sobre educação financeira nas escolas, a ideia aqui não é apresentar um método empacotado (eu nem teria cancha para isso – mas conto com os pais, com os pedagogos e com quem se interessa pelo assunto). É só uma proposta, uma sugestão de como começar, tomando por base o pequeno método do pai(zão) citado logo acima.

Como estamos lidando com crianças, a repetição e a disciplina são fatores chave, então, antes de propor o começo da brincadeira, é fundamental que haja uma preparação.

Vamos lá.

A preparação

Primeiro, para aumentar as chances de sucesso da empreitada, ao menos no começo, sugiro reduzir ao máximo a complexidade. Para este exemplo, trabalharemos exclusivamente com duas moedas: a de 1 real e a de 25 centavos.

Nossa brincadeira será semanal (e não mensal) e, portanto, é muito importante que a criança sinta essa cadência e rotina. Se deixamos uma semana passar, há chances grandes de retomada ser bem difícil.

Utilizaremos semanas como base porque o mês é grande demais. Nossa cabeça tem dificuldade de planejar três refeições pro dia seguinte, esperar que a gente consiga pensar daqui 30 dias é muita pretensão. Um passo de cada vez. 

Para evitar furos, é uma boa ideia pegar 50 reais e trocar por moedas de 25 centavos e de 1 real. Assim a gente mitiga o risco da "semanada" não acontecer por falta de troco. 

Além disso, antes de introduzir a dinâmica do tabuleiro (explico logo mais!), é importante que a criança comece a entrar em contato com a ideia de preço. Quanto mais suave for a apresentação, melhor.

Passeios envolvendo objetos de desejo costumam funcionar bem. Uma loja de doces, uma loja de brinquedos simples, uma padaria, um parque que venda pipoca. O objetivo é que a criança perceba que 3 moedas de 1 real resultam em um saco de pipoca, que 15 moedas de um real resultam em um carrinho. É só um começo. 

Se você acha que isso não vai acontecer, ou que é algo avançado demais, eu sugiro dar uma chance, os pequenos aprendem assustadoramente rápido.

Com essa noção pacientemente explicada, vamos à dinâmica.

A dinâmica

É bem simples, vamos trabalhar com um pequeno tabuleiro (que pode ser uma superfície qualquer, de qualquer tipo. Eu fiz em casa utilizando o verso de uma gaveta, e refiz aqui no Papo de Homem, utilizando uma lousa. São três áreas, delimitadas: guardar, gastar e doar.

É uma excelente ideia pedir para que a criança "personalize" o tabuleiro. Serve de reforço a ideia de que quem cuida do nosso dinheiro somos nós, e não o banco, nem o consultor financeiro (quanto antes a gente aprende isso, menos a gente apanha). 

A cada semana, em um dia pre-determinado, a criança recebe um valor fixo, sempre dado em moedas de 1 real. No meu exemplo, eu defini que a semanada seria de 2 reais. É fundamental que isso se torne um grande evento. A criança poderá manipular o tabuleiro em qualquer dia, mas receberá a semanada sempre no mesmo dia.

Ao receber o dinheiro, a criança pode escolher em qual das seções colocar. Se ela coloca na seção "gastar", ele tem acesso a esse dinheiro imediatamente e pode gastá-lo da maneira que quiser. 

Se ela optar por manter o dinheiro na seção "guardar", porém, ela não pode gastá-lo, mas, em compensação, na semana seguinte, além de receber os dois reais da semanada, ela recebe uma moeda de 25 centavos para cada moeda de 1 real que guardou.

Essa seria a segunda semana de quem optou por guardar:

Ela tem:

  • 2 moedas de 1 real, referentes à primeira semana (acompanhados das duas moedas de 25 centavos, que representam o que esses 2 reais renderam); 
  • 2 moedas de 1 real referentes à segunda semana;

Ponto importante #1: acredite, é mais fácil explicar essa dinâmica a uma criança do que explicar como os juros funcionam a um adulto. 

A próxima semana vai passar e, se a criança optar por manter o dinheiro guardado, ela terá algo algo parecido com isso:

Ponto importante #2: Temos pouquíssima chance de aprender como o longo prazo funciona, no geral a gente surta de ansiedade. Note que a primeira e a segunda fileira de moedas estão maiores do que as outras. Oportunidade de ouro de perceber, na prática, que o dinheiro que permanece investido por mais tempo rende mais.  

Leia também  Como botar ordem na sua vida financeira – mesmo em tempos difíceis

É muito natural que surja a vontade de gastar, de realizar pequenos desejos, de consumir, e a ideia da brincadeira não é, nem de longe, incentivar o pão-durismo. Mas nem sempre podemos consumir quando desejamos, e é melhor aprender no tabuleiro, com as moedinhas, do que na vida real, com o cartão de crédito estourado. 

Por isso, o dinheiro antes de permitir que a criança gaste o dinheiro guardado (na seção "guardar"), ela tem, necessariamente, que movê-lo para a seção "gastar". E isso só é feito de um dia para o outro. 

Ponto importante #3: Com essa manobra, batemos com muita força em dois conceitos chave para uma vida financeira saudável: o planejamento (afinal, para gastar o dinheiro na quarta-feira, a criança terá que resgatá-lo na terça), e o entendimento de liquidez (por mais que o dinheiro esteja ali, nem sempre temos acesso irrestrito a ele). É melhor aprender o conceito de liquidez dessa forma do que escutando o gerente do banco dizendo que "esse maravilhoso fundo tem liquidez D+1 para cotização e D+2 para resgate".

Dessa forma, é possível que tenhamos algo assim:

Com a prática, é bem possível que a criança se sinta bastante incomodada com o fato de, em uma semana, receber 4 moedas, e em outra, apenas 2. É uma ótima hora para explicar que 4 moedas de 25 centavos equivalem a uma moeda de 1 real. Quanto mais visual, melhor:

Ponto importante #4: Essa conversão é bem importante de ser entendida, porque, na nossa brincadeira, apenas moedas de 1 real geram rentabilidade. Então, ao converter 4 moedas de 25 centavos em 1 moeda de um real, é como se ele estivesse reinvestindo o lucro que obteve por ter mantido o dinheiro guardado. É mais fácil entender dessa forma, do que na vida adulta, com o gerente ligando pra perguntar "se pode reinvestir os juros semestrais dos títulos do tesouro direto que estão parados na conta".  

A dona e cuidadora do dinheiro é a criança, claro, mas é bem importante que sejam apresentadas a ela maneiras interessantes de empregá-lo.

É fundamental que ela perceba a versatilidade: ele pode comprar uma bala (que dura algumas horas), uma bola de handball de futebol não pode(que é mais cara que a bala, mas dura mais tempo) ou uma ida no Hopi Hari (que não é algo de pegar, nem de por no bolso, mas que faz as vezes de objeto de desejo – bem importante dar um jeito de deixar isso claro: existem coisas que não são de pegar, mas que custam dinheiro).

Além das numerosas possibilidades atreladas ao consumo e a satisfação dos próprios desejos, surge aqui uma chance preciosa de mostrar à criança alternativas que extrapolam seu próprio universo. Surge aqui a seção "doar".

É possível transformar as moedinhas em um presente para alguém, em um auxílio "para crianças que não recebem semanada", em uma ajuda para alguém que pede dinheiro pela rua, em uma pequena compra de agasalho para quem está passando frio, em uma compra de mercado para alguém. Não há problemas em apoiar (com dinheiro) as doações.

Ponto importante #5: Enfiados nas nossas bolhas, ficamos cascudos e esquecemos do tanto que isso é poderoso. A criança, com a mente infinitamente mais livre que a nossa, menos enviesada, facilmente deixa com a relação dela com o dinheiro seja fortemente impactada por este fato. É para isso que serve a seção de doação, para que a criança olhe para fora. É fundamental fazermos com que nossa relação com o dinheiro reflita nossa generosidade.

Ponto importante #6: Quando apoiamos a doação ("para cada um real que você der, eu coloco mais um real"), estamos apresentando o conceito de matching, muito comum nas previdências privadas oferecidas pelas grandes empresas (para cada 1 real que o funcionário destinar à previdência, a empresa coloca 1 real). 

Depois que a criança entendeu bem a mecânica, é importante mostrar, também, manobras possíveis, com os respectivos desdobramentos.

No exemplo da foto acima, por exemplo, caberia uma fala do tipo: "olha que coisa maluca, fulaninho, você tem um monte de dinheiro para gastar, mas continua com tudo que eu te dei guardado. Legal isso, né?".

Possibilidades infinitas. 

Sofisticando a brincadeira

Algumas sugestões interessantes, para quando a dinâmica usual estiver bem clara e o valor das moedas já tiver sido bem entendido:

  • "Fulaninho, se você me der duas moedas de 1 real e uma moeda de 25 centavos eu te dou uma nota de 2 reais. Essa nota vale menos do que as moedas que você me deu, mas, em compensação, para cada nota de 2 reais que você tiver guardada, você recebe 4 moedas de 25 centavos, toda semana";
  • "Fulaninho, se você me contar, no começo do mês, quando acha que vai ter guardado no final do mês, e acertar, você recebe 4 moedas de 25 centavos extras";
  • "Fulaninho, durante esse mês, ao invés de 1 moeda de 25 centavos para cada moeda de 1 real, você vai receber uma moeda de 25 centavos para cada duas moedas de 1 real";
  • "Fulaninho, no mês do seu aniversário, você recebe 3 moedas de 25 centavos para cada moeda de 1 real que você tiver guardado, toda semana".

Vamos para a prática

A ideia do texto é ser um guia, uma base, para quem quer colocar esse assunto na mesa dos pequenos, mas não sabe bem como. Então, mais importante do que qualquer instrução, contida nesse ou em qualquer outro texto, é começar, o quanto antes.

Além do espaço precioso de formação, os encontros semanais servem de desculpa para a criação de um espaço de diálogo com os pequenos: o que estão querendo? quais são os medos? quais são os desejos mais superficiais? e os mais profundos?

Se falamos pouquíssimo sobre a nossa própria vida financeira, falamos menos ainda da formação financeira das crianças com as quais temos contato e esse é, sem dúvida, um dos motivos pelos quais temos uma relação tão conturbada com o dinheiro, anos depois, na vida adulta. 

Quanto mais presente o assunto estiver, melhor.

O que tem funcionado por aí? O que você já testou e deu errado? Como você tem lidado com esse assunto?

Pais, mães, pedagogos, psicólogos, educadores, interessados no assunto, o pitaco de vocês é imensamente bem-vindo.

Seguimos o papo nos comentários. 

Eduardo Amuri

Autor do livro <a>Dinheiro Sem Medo</a>. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças