Recentemente quando explicamos o conceito de Paradoxo Sorites acabamos explicando também o que a comunicação chama de 'signos', ou seja, a representação de coisas – podendo ser uma palavra, uma imagem, um som etc… – que todos os interlocutores de uma conversa compreendem o que é.

Na ocasião, porém, também explicamos que essa compreensão do que eles representam pode variar e acabar gerando problemas de comunicação que, por sua vez, comumente se tornam problemas maiores. O conceito de hoje trata exatamente desses problemas, afinal, como nossas interpretações difusas acabam reforçando nossas opiniões ou desentendimentos e criando polarizações que por sua vez causam mais desentendimentos.

O conceito de hoje chama-se Estética da Recepção ou Teoria da Recepção.

O que somos

Formulado na década de 1960 pelo crítico literário alemão Hans Robert Jauss e posteriormente desenvolvido pelo sociólogo e teórico cultural jamaicano Stuart Hall, a teoria consiste numa mudança de perspectiva de análise de obras literárias e artísticas: saímos da análise da intenção do autor para a análise da real recepção do espectador.

Quando seu professor de artes ou de literatura tentava te explicar o que um determinado artista quis dizer com sua arte ele não está usando estética da recepção. Mas quando seu professor de história te explica a importância das pinturas rupestres para hominídios que ainda não sabiam desenhar, aí sim, ele está usando estética da recepção. O primeiro caso parte da premissa do autor. Já o segundo analisa simplesmente o ponto de vista do espectador e, por consequência, o que aquela obra foi capaz de gerar impacto dado todos os contextos envolvidos nela.

Para não ficar só na teoria, vamos a dois exemplos recentes e bastante conhecidos:

Quando José Padilha e o resto de sua equipe resolveram produzir Tropa de Elite 1 e seu Capitão Nascimento, a real intenção era mostrar a brutalidade e a violência com que o BOPE atuava no Rio de Janeiro. Mas ao contrário do efeito esperado pelos autores, o Capitão Nascimento virou um símbolo de 'bom policial' e reforçou justamente aquilo que Padilha não queria: de maneira beeem simplista, a ideia de que bandido bom é bandido morto.

Herói ou vilão?

Da mesma foma, quando Kleber Mendonça Filho, muito mais recentemente, resolveu produzir Aquarius [este parágrafo pode conter spoilers do filme, quem ainda não assistiu e pretende, pule para o próximo], é provável que sua intenção era fazer críticas às contradições da classe média pernambucana, mas pela maneira como o filme foi construído e também por fatores externos, a obra se tornou bandeira de uma classe que ele pretendia criticar.

Heroína ou vilã?

Tanto um como o outro são exemplos claros de quando analisar o que uma obra pretendia ser não basta para tirar conclusões. É preciso usar a Estética da Recepção para entender de fato o que aquela obra foi e só fazemos isso entendendo o contexto e as influências que as pessoas que consumiram tal obra têm/tinham. 

Pelo fato do conceito não ser exatamente novo, é brilhante o domínio desse conhecimento que alguns artistas demonstram quando usam esse recurso para criar histórias ainda mais incríveis do que antes. Da mesma forma, porém, artistas que não dominam este conceito correm o sério risco de que 'o tiro saia pela culatra' e sua obra seja totalmente ressignificada. Quer ver mais um exemplo?

O que queremos ser

Arturo Di Modica é um escultor italiano que, certa vez, em 1989 teve uma ideia. Depois da crise financeira de 1987 e sucessiva recuperação da bolsa de Nova Iorque, ele investiu US$ 350 mil para produzir um touro de bronze de 3,2 toneladas, levá-lo e instalá-lo clandestinamente em Wall Street de baixo de uma árvore de natal como se fosse um presente para a cidade.

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O touro vem de uma analogia conhecida no mercado financeiro da briga entre um urso e um touro. Enquanto o urso briga dando patadas de cima pra baixo, o touro dá chifradas de baixo pra cima, por isso a expressão bull market é usada para um mercado de ações em alta e por isso o touro foi o animal escolhido para representar "a força e a prosperidade da América".

Herói ou vilão?

Representando isso, o Charging Bull ganhou popularidade mundial e se tornou o segundo ponto turístico mais visitado de Nova Iorque, perdendo apenas para a Estátua da Liberdade. Tudo ia muito bem até que em 2017, o touro ganhou companhia e as tretas começaram.

Uma grande empresa de investimentos do país chamada Street Global Advisors teve uma ideia para fazer uma ação publicitária de guerrilha para o Dia das Mulheres, em 8 de março. Eles contrataram a escultora uruguaia radicada nos Estados Unidos, Kristen Visbal, e pediram que ela esculpisse uma estátua também de bronze para acompanhar o touro na semana da mulher.

A artista topou e se inspirou na sua filha de 7 anos e numa amiguinha de 9 para criar The Fearless Girl, uma estátua de 127 centímetros e que não pesa mais do que alguns quilos mas que foi capaz de causar uma tremenda euforia. Colocada em frente à estátua original do touro, a garota agora queria chamar atenção para a necessidade de aumentar o número de mulheres na direção das empresas dos Estados Unidos.

Heroína ou vilã?

A ideia foi amplamente aprovada, tanto que a prefeitura que já tinha autorizado a ação temporária, resolveu prorrogar o prazo depois de campanhas favoráveis na internet e tudo indica que a estátua agora terá vida longa. O autor, no caso, parece ter sido um dos poucos que não ficou nada feliz com a mudança do significado de sua obra que, agora, está sendo associado ao machismo nas corporações.

Osso do ofício que a estética da recepção prevê: as pessoas faram da sua obra a interpretação que elas quiserem a partir de seus respectivos contextos.

O que seremos

Mas pedindo licença aos estudiosos, não é só nas artes que a estética da recepção surte efeito. Fazendo um rápido exercício, não é difícil imaginar exemplos nos quais uma imagem, vídeo, texto ou qualquer coisa que pretenda transmitir uma mensagem é interpretada de n maneiras diferentes pelas pessoas.

Na política, o exemplo mais óbvio, isso é absurdamente notável. Mas isso pode ser aplicado a tudo, inclusive, sua própria imagem pessoal: importa sim, e muito, como as pessoas te vêem. Mais até do que como você se mostra.

Não é, portanto, apenas um efeito das redes sociais que estão nos polarizando. Não é necessário que criemos pós-verdades ou mensagens diferentes segmentadas para cada público. Com os devidos ajustes, um mesmíssimo conteúdo pode (e provavelmente irá) causar resultados bem distintos nas pessoas. Isto porque essas pessoas vem de lugares diferentes, famílias diferentes, costumes diferentes ou simplesmente SÃO diferentes. E entender isso é profundamente transformador.

Como sempre digo ao final dos textos, o conceito puro e simples não pode ser classificável como positivo ou negativo, benéfico ou maléfico, mas sim o que faremos com ele. Ou será que é o que os outros pensam que estamos fazendo com ele?

Eita…

Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a <a>Jornalismo Júnior</a>