Saúde mental é um problema sério e sabemos que uma pessoa que está em sofrimento pode ter dificuldades em se cuidar e em ver perspectivas e saídas. Ter apoio da família e amigos, assim como ter acesso a recursos de saúde para cuidar de si é super importante nestes momentos.
Nesse texto, queremos olhar para um tipo de relato, que se cruza com questões de masculinidades, responsabilidade e o senso de cuidado que masculino. Não é raro escutar relatos cansados de parceiras e parceiros de um homem que está passando por sofrimento emocional grande (assim também como mães, irmãs, filhas e outras pessoas que convivem de perto e tem uma relação de cuidado). Esse cansaço nasce de um cenário em que a pessoa que oferece apoio sente que aquele que está sofrendo não está disposto a se cuidar, a ser parte da sua própria melhora.
Vamos a alguns relatos reais:
“Ele espera que eu o acolha, que eu o escute. Quando estamos num evento social, frequentemente ele acaba ficando mal e aí eu vou tentar acalmá-lo, cuidar dele, vou embora com ele. Eu faço isso de coração, porque eu amo muito, mas eu não gosto de vê-lo assim. Fazem uns dois anos desde que isso começou e eu gostaria muito de vê-lo bem, mas ele não quer buscar terapia (e ele teria condições de pagar).” – F. C. 26 anos.
“Ele saiu do emprego dele porque estava adoecendo… realmente, o jeito que tratavam ele tava muito errado, eu apoiei que ele saísse. Desde então ele não arrumou outra coisa… Ele às vezes começa a procurar emprego, mas eu vejo também que ele perde prazo de mandar documento, fazer teste…Eu vejo que ele está doente mesmo, depressão é doença, mas tá cada dia mais dificil… A gente não tem dinheiro pra terapia, mas assim, eu consegui marcar uma consulta com psiquiatra, e ele não foi. Ele não se ajuda nem comendo o que eu deixo na geladeira. Na igreja que a gente vai tem o grupo de casais e aí a cada 15 dias tem uma roda de conversa só pros homens e uma só pras mulheres, bem ou mal é um espaço para ele desabafar, fazer como se fosse uma terapia em grupo… mas ele nunca está bem para ir. Está pesado pra mim. Eu sinto que eu tenho que cuidar o tempo todo, se não ele vai se acabar e fazer alguma besteira.” R. B. 35 anos
Chamamos a psicóloga e mestre em Psicologia Clínica pela USP, Aline Redressa, para falar um pouco sobre como criar uma relação de cuidado com pessoas que estejam num processo depressivo que também olhe com carinho para essa pessoa que está cuidado, compartilhando quais são as responsabilidades e limites de cada um:
“Hoje a depressão é um termo comumente utilizado, e muitas vezes para falar de sintomas comuns a todos nós, como apatia, desânimo ou tristeza, que podemos sentir em vários momentos da nossa vida, e não necessariamente estarmos num quadro depressivo. Então é importante um diagnóstico clínico para diferenciar se a pessoa está em uma fase difícil da vida ou se ela realmente está depressiva. Em linhas gerais, a principal diferença é entender se esse desânimo, tristeza, falta de energia, é algo que acontece em momentos específicos da rotina ou se são sintomas constantes, que permanecem por um tempo significativo, comprometendo de forma importante as atividades essenciais da vida dessa pessoa.”
Pensando nos padrões de masculinidades e na saúde mental dos homens, existe uma tendência ao fechamento que faz com que os homens demorem mais a pedir ou a buscar ajuda. Por mais que tenham pessoas dispostas a ajudar e de fato ajudando, um dos padrões culturais da masculinidade é que esse cara sente ainda mais dificuldade para falar sobre o que sente. Diante da dificuldade de lidar com os sentimentos complexos e de colocar isso em palavras, somados aos próprios efeitos da depressão, é comum que os homens evitem ou posterguem processos de cuidado, de tratamento da saúde mental (seja uma terapia, seja um grupo de apoio ou seja o contato com amigos e pessoas queridas):
“Parte da sensação de não conseguir se movimentar é um sintoma gerado pela depressão, porque como com o tempo a pessoa vai se desconectando de tarefas, muitas vezes das relações, e de ações de autocuidado importantes, o corpo deixa de receber e produzir estímulos essenciais para a saúde, como nutrientes, hormônios, e então a energia para fazer coisas que antes eram importantes ou prazerosa diminui ainda mais. É um ciclo que se retroalimenta, por isso a importância de buscar pequenos movimentos na rotina que podem fornecer esses estímulos aos poucos novamente.
É um desafio duplo. É importante entender que a depressão provoca a falta de vontade, entendida como baixa energia – mental, emocional e química – não adianta falar “levanta que vai te fazer bem” e esperar que a pessoa levante e se sinta melhor. A pessoa realmente não tem energia. Porém, quanto mais a gente permanece nesse ciclo de deixar de fazer coisas importantes para nosso cuidado, essa sensação de apatia se intensifica e a pessoa vai ficando cada vez mais distante de uma rotina importante para ela e que possibilite um cenário de melhora. O caminho é a permanência em pequenos passos importantes para o cuidado, e a expectativa deve ser identificar mudanças coerentes aos pequenos passos, e não uma melhora total de uma hora para outra, esse pensamento é inclusive prejudicial, tanto para a pessoa depressiva, quanto para quem está ao lado dando algum suporte”. Aline Redressa – Psicóloga
Amor, sobrecarga e culpa: como o adoecimento pode afetar também as pessoas à volta?
Quais as responsabilidades e os limites de quem está por perto, tentando cuidar?
A.R – “Ajudar alguém significa dar suporte para que aquela pessoa tenha mais ferramentas pra cuidar de si ou da situação que está passando, mas isso também vai depender de como a pessoa que fornece ajuda está.
É preciso reconhecer os limites e necessidades pessoais das duas partes para que a ajuda que um dá ao outro não se torne exaustiva a ponto de quem ajuda se sentir responsável por resolver o problema do outro, assim como para que a pessoa que recebe a ajuda não se sinta incapaz de cuidar de si mesmo.
E essa ideia é muito importante, a de que dar suporte e ajudar alguém não é resolver as questões do outro, mas estar ao lado para acompanhar o processo do outro, colaborando em ações de cuidado. ” Aline Redressa – Psicóloga
IMPORTANTE:
A.R -“Se a pessoa que ajuda não estiver conseguindo cuidar e atender suas necessidades próprias, provavelmente ela vai adoecer e também não vai conseguir mais dar suporte pra quem precisa. Então ter limites pessoais não significa ser negligente. Reconhecer e colocar seus limites em uma relação com alguém em depressão, é tentar garantir que o cuidador tenha disponibilidade pra continuar ajudando, e que a pessoa em depressão tenha a possibilidade de sentir que é capaz de cuidar de si e se movimentar. ”
Mas como faço para saber o limite saudável de cobrança para que essa pessoa com depressão se movimente com mais autonomia?
A.R – “É um limite realmente difícil de perceber, o quanto posso fazer pela pessoa que está em depressão, e o quanto cobrar ou insistir com ela pra que ela se movimente. Uma forma é tentar sempre que possível conversar com o outro sobre expectativas, possibilidades, sobre o porque estamos fazendo algo ou deixando de fazer, sobre nossos limites e também ouvir do outro.
Identificar se a pessoa depressiva consegue considerar nossas orientações, se aos poucos, no ritmo dela, ainda que devagar, ela se movimenta na direção de ações e cuidados importantes para si, também pode ajudar. Aqui é um bom parâmetro, observar se com o passar do tempo o indivíduo em depressão vai conseguindo se movimentar com mais frequência, mesmo que com altos em baixos, afinal tratar a depressão pode ser um processo de altos e baixos e que leva tempo. Mas manter os pequenos passos é fundamental para esse processo.”
Quais são as diferenças entre ajudar e resolver as questões do outro?
A.R. “Culturamente, aprendemos que quando uma pessoa está doente, essa pessoa precisa de ajuda e cuidados, e que cuidar é resolver e “fazer pela pessoa aquilo que ela não está conseguindo fazer”. Mas todo indivíduo adulto é responsável por atender suas necessidades, inclusive quando doente. A diferença é que quando falamos de uma pessoa doente, algumas ações vão ficar mais difíceis, e o mesmo acontece com a pessoa em depressão: suas necessidades ficam mais difíceis de serem atendidas, mas isso não significa abrir mão completamente de realizá-las, mesmo que em menor intensidade ou num ritmo mais lento.
(Claro, aqui não estamos falando de depressão num grau elevado de comprometimento, nesse caso, possivelmente, ela vai precisar de medicação para ter o mínimo de energia e fazer essas pequenas coisas.)
Mas existe um limite das coisas que a gente pode fazer para ajudar o outro. Podemos diferenciar o que é ajudar e o que é resolver:
- Ajudar é dar suporte, sendo importante continuar atendendo nossas próprias necessidades. Eu preciso manter limites sobre o cuidado que eu dou ao outro para que eu não negligencie meu próprio autocuidado e adoeça no processo.
- Esses limites também vão depender de como a outra pessoa está respondendo, ela consegue se engajar em pequenos passos para se movimentar de acordo com o suporte que eu estou dando? Esses passos vão ficando mais estáveis e mais frequentes com o tempo, mesmo com possíveis altos e baixos?
- Cuidar é tentar dar suporte ao outro, a tarefas que talvez o outro não esteja conseguindo dar conta, mas não é resolver ou fazer pela pessoa o tempo todo sem nenhuma conversa ou negociação. A expectativa não deve ser a de conseguir fazer a pessoa retomar sua rotina e atividades importantes de uma hora pra outra.
- E resolução significa tentar de tudo até eu resolver, e aí se eu não conseguir, ou se o meu parceiro não aceita, provavelmente eu vou me sentir incapaz e isso alimenta outra frustração.
Ajudar a pessoa e dar suporte então, não é aceitar todas as condições daquela pessoa que não quer ou não consegue sair, ou que não consegue tomar banho às vezes, sintomas que podem ser da depressão.
Aqui é importante encontrar um limite na relação: até que ponto tá tudo bem a pessoa não ir, mas que é importante que ela vá conseguindo dar um passo após o outro, e ir entendendo como aquela frequência de comportamento está aumentando: por exemplo, um dia ela vai até o portão, leva o cachorro na praça… outro dia ela não tá afim e tudo bem.”
Aline reforça a importância de ajudar dentro dos seus limites e cuidando primeiro de si e depois do outro. Mas e quando essa pessoa que cuida já está exausta? Seria negligência dela deixar de fazer pelo outro o que ela não está conseguindo fazer por si?
A.R. “Eu não posso ser negligente com uma pessoa, se ela também é responsável por ela. Por isso que tem que estar clara a responsabilidade de cada um. Uma vez que eu dou esse suporte, mas eu também tenho limites, espero movimentação, eu também me cuido mim. Os meus limites não são uma negligência. Na verdade, é uma forma importante de oferecer ajuda e cuidar do outro, senão tiramos a responsabilidade da pessoa e não deixamos ela caminhar com suas próprias pernas. Tirar toda a autonomia da pessoa é, de certa forma, contribuir para manter o ciclo de vários sintomas e sentimentos depressivos”.
E quais são as responsabilidades que podemos esperar que a pessoa em depressão tenha no cuidado de si?
A.R. “É importante saber que quando falamos de saúde mental precisamos considerar questões de classe, raça, gênero e acesso a serviços básicos, porque sem um contexto que possibilite acesso às estruturas essenciais (como emprego, casa, saúde, segurança, respeito etc), é difícil pensar em saúde mental.
A depressão é uma doença multifatorial, ou seja, pode envolver alguns fatores no seu desenvolvimento, como fatores genéticos, uso de substâncias, contextos ambientais, história do indivíduo. Então, pensar nas responsabilidades de uma pessoa em depressão envolve considerar todo esse quadro para entender que condições essa pessoa tem para se cuidar.
De forma geral, a depressão é um diagnóstico incapacitante, ou seja, a pessoa vai deixando de realizar uma série de atividades importantes. Pode ficar difícil trabalhar, se relacionar e manter autocuidados diários (como comer, tomar banho ou exercitar-se).
É mais difícil para uma pessoa em depressão atender a essas responsabilidades, mas isso não significa abrir mão completamente de realizá-las. Então, podemos pensar que é importante a pessoa em depressão tentar manter ou restabelecer aos poucos cuidados ou tarefas que pode ter abandonado, seja se alimentar, se exercitar, se relacionar ou trabalhar, movimentos que estimulam nosso corpo, fisiológica e psicologicamente. Além disso, tentar comunicar-se com as pessoas ao seu redor também pode ajudar a entender quais os limites de cada um e como se quer ser ajudado, além de como o outro pode ajudar.”
Se tiver acesso, faça o tratamento:
A.R.”A depressão é uma doença e como toda doença precisa de tratamento. O cenário ideal é a terapia associada ao tratamento psiquiátrico (sejam particulares ou pelo SUS). Podemos pensar em baixa responsabilização da pessoa depressiva quando, mesmo diante de um cenário de baixa energia para se movimentar, ela resiste em considerar pequenos passos, tentar algumas mudanças, ou quando tem a possibilidade de um tratamento e ela não se implica.
Eu posso e devo pedir ajuda, mas é importante tentar mostrar para as pessoas que estão me ajudando que eu também estou tentando me movimentar, que eu estou dando passos, fazendo esforços, mesmo que a condição faça você não ter vontade. De certa forma, tentar romper esse ciclo de rebaixamento emocional e desconexão com as atividades é um caminho muito importante, e saber que é um sintoma e não uma condição perene, pode ajudar a tentar romper esse ciclo. “
E quando essa pessoa buscar ajuda, o problema vai ser resolvido rapidamente?
“É importante também que as pessoas entendam que o suporte não é resolução, tanto o suporte da parceira, quanto de uma terapia. É um processo e um conjunto de coisas que ao longo do tempo sendo feitas vai provavelmente produzir um efeito que possibilita sentir alguma melhora.”
publicado em 03 de Outubro de 2023, 19:17
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