Seria deselegante iniciar sem as devidas apresentações e uma explicação sobre como esse texto surgiu.
Sou acadêmico do 5º ano de Medicina da Universidade de Itaúna (MG) e recentemente acompanhei o Serviço em Cuidados Paliativos do Hospice Jaçanã, do HC da FMUSP. Durante o período em São Paulo, aproveitei para participar de um workshop de TaKeTiNa, com Gustavo Gitti, com quem já mantinha um contato há algum tempo. Comentei com ele sobre minhas andanças, marcamos um café e surgiu o convite pra divulgar esse tipo de abordagem ainda bastante incipiente no Brasil.
O que são Cuidados Paliativos?
Calha bem aqui uma tradução livre da definição da World Health Organization para começarmos:
“Cuidados Paliativos podem ser entendidos como ações voltadas para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes e familiares que enfrentam problemas associados a doenças [graves, incuráveis, sem possibilidade de tratamento] que ameacem a continuidade da vida através da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação correta e garantindo de maneira impecável a avaliação e o controle da dor, alívio de outros problemas, físicos, psíquico-sociais e espirituais.”
Para quem não sabe, hospice não significa exatamente um local, mas uma filosofia que reconhece e cuida com respeito dos sofrimentos humanos — do corpo e da mente. A prática dos Cuidados Paliativos, originado do modelo de assistência inglesa (por Cicely Saunders, em 1967), se inspirou nos antigos hospices medievais, instituições que assistiam e hospedavam os monges e peregrinos.
A palavra hospice significa originalmente hospedagem. Esta forma de hospitalidade tinha como característica o acolhimento, a proteção, o alívio de todas as dimensões do sofrimento, mais do que a busca pela cura.
O Hospice Jaçanã tem como médica responsável a Dra. Ana Claudia Quintana Arantes. Nessa palestra para o TEDxFMUSP, ela quem define muito melhor que eu do que se trata esse serviço.
Link YouTube | “Todo mundo aqui já sacou que a gente vai morrer né? Alguém tá chocado com isso?”
Após ver esse vídeo, tive a certeza de que essa mensagem precisaria ser difundida o mais rápido possível. Depois de muita insistência consegui convencer a Dra Ana Claudia a dar uma palestra em um dos maiores eventos acadêmicos realizado anualmente em Minas, a Jornada Acadêmica de Medicina da Universidade de Itaúna, e foi um sucesso.
De pronto, houve uma identificação muito grande com a doutora, nos tornamos amigos. Em parceria com uma amiga, fiz a transcrição e a tradução da palestra do TED para o inglês. Meses mais tarde acompanharia a Dra Ana no serviço em que ela é a médica responsável. Poucos acontecimentos seriam tão marcantes em toda a minha vida, muito além da acadêmica.
A experiência acadêmica
Fazia pouco tempo que tinha descoberto em que consistia, de fato, os Cuidados Paliativos na saúde, apesar de, desde o início da faculdade, ter conhecimento de que essa abordagem em medicina já existisse. Há, porém, uma distância entre saber que existe e conhecer teoricamente do que se trata o assunto, além de um abismo ainda maior entre o conhecimento teórico e a prática viva da rotina em Paliativos.
Tive a boa sorte de ser recebido em um estágio no Hospice do Jaçanã do HCFMUSP para perceber como a abordagem do paciente em fim de vida pode ser absolutamente diferente de tudo que que é considerado “cuidados médicos de qualidade a partir de altos recursos tecnológicos”.
Quando se trata de uma doença em progressão, grave, incurável e fora de possibilidade terapêutica, percebi que a presença humana é o que passa a ser realmente significativo no fim de vida até a morte. Ouvir, estabelecer laços de confiança, treinar empatia são processos benéficos tanto para quem fala quanto pra quem ouve.
Logo nos primeiros contatos com a equipe multidisciplinar, vi um time muito coeso e cordial entre si, o que nem sempre rola em outros serviços de saúde. Pude perceber que, quando há uma equipe conectada com as necessidades particulares de cada paciente, o cuidado fica mais natural e o ambiente fica excepcionalmente tranquilo e agradável — perde aquela carga de hospital.
Assim como em um time de futebol, quando um membro da equipe falha, o grupo inteiro falha e pode levar um gol. Portanto, há uma necessidade frequente de treinamentos da equipe multidiscipilinar para reduzir todas as eventuais falhas. O paciente que recebe Cuidados Paliativos não tem, definitivamente, tempo nenhum a perder.
O processo meditativo e “medicativo”
Tenho verdadeiro apreço por outras áreas do conhecimento humano, como a linguística. Não raro me pego vidrado em textos do Eduardo Pinheiro aqui no PapodeHomem. Numa dessas incursões etimológicas procurei o significado de “médico” e descobri que o termo vem do verbo latino medeor, do qual meditari é uma forma frequentemente derivada e possuem ambas o radical grego μέδω (medomai: pensar, cuidar, meditar etc).
Partindo de um dos significados de medeor, e de como outras significações vem logo em seguida, como “cuidar” e “pensar”, talvez seja razoável concluir, de cara, que essa validação ou identificação não ocorre apenas no léxico, mas que ocorre até mesmo em uma perspectiva experimental.
O doente espera do médico que seu sofrimento se converta em um tema de meditação, de reflexão. E é exatamente aí que surge a real empatia e fé do doente no médico. O médico que medita o caso se preocupa com seu paciente. Parece redundante isso, mas não é. Ou pelo menos não é hoje em dia.
Durante o tempo em que fiz o estágio, a reflexão tinha lugar cativo em minha rotina. Creio que seja impossível não colocar em xeque tantas condutas que temos como corretas e que muito difundidas, como o clássico “não se envolver com o paciente”, não escutá-lo sobre seus sonhos, preferências e inquietações, não discutir algo dito polêmico, amistosamente com o paciente, somente porque os livros de Semiologia Médica assim orientam.
Essa perda da capacidade de tocar o paciente ou mesmo de poder desenvolver conversas que tocam o chão com ele se desenvolveu por um mau hábito de incorporar e absorver aquilo que é mais cômodo. É mais fácil não se envolver e focar apenas nos sintomas físicos. É mais fácil olhar a pessoa apenas como paciente, não como ser humano.
A reflexão se estendeu também ao questionamento do modelo de ensino vigente nas escolas médicas e de como esse tipo de experiência tão significativa não é contemplada não só pelo modelo de ensino, mas também pelos próprios professores que se endureceram ao longo do tempo e se limitaram a ministrar o conteúdo sob um viés quase que estritamente técnico — temperado, às vezes, com um ajinomoto piegas e sentimentalóide, sem contudo abordar do modo como deveria ser abordado.
O conteúdo de Psicologia Médica, por exemplo, é bastante reduzido na grande maioria dos cursos, e não tem o mesmo prestígio de disciplinas como Anatomia, Cirurgia ou Clínica Médica. A repercussão disso é um espelho do relacionamento que o médico tem com seus pacientes. Em geral, quem ensina também não teve uma formação psicológica adequada em sua graduação.
A maior das reflexões me propiciou a possibilidade de ouvir os sons e o silêncio do mundo dos outros — e do meu. Quando foi e por que que minha sensibilidade deixou de ser importante? Quando passei a incorporar hábitos de escuta mecânicos e não da mais autêntica e genuína empatia não só com meus pacientes mas também com meus pares?
Ainda estou debruçado sobre essas questões.
“Ser bom ouvinte é uma prática que fortalecerá sua compaixão, acalmará suas paixões desenfreadas e lhe permitirá ajudar os outros em todos os seus relacionamentos […] Como meditar, ouvir atentamente significa desacelerar, por de lado distrações e compromissos. O que essa pessoa está me dizendo?”
— Gyalwang Drukpa (no livro Iluminação Diária)
Os laços e a experiência nos Cuidados Paliativos
Aprendemos nos bancos das escolas médicas que não devemos “nos envolver” com os pacientes. Não sei exatamente o que os livros de semiologia médica querem de fato dizer com isso. Na verdade, essas afirmações nunca me inspiraram nem um pingo de confiança. E se o envolvimento for benéfico para o paciente? Isso é fundamentalmente Hipocrático, mas solenemente ignorado nos dias que correm. Não por acaso, há uma crescente antipatia em relação à categoria na sociedade. O hábito faz o monge.
O trabalho em Paliativos propicia as mais ricas e belas experiências. O paciente no fim da vida se revela e deixa que toda a sua beleza humana floresça de uma forma que o indivíduo nunca poderia ter se expressado antes.
Durante a estada no hospice, pude perceber que os livros de medicina deveriam ficar entrincheirados do lado de fora, já que muito do que acontece ali definitivamente não corresponde a essas “sagradas escrituras”.
Vejam só os casos vividos pela Dra Ana Cláudia no Hospice Jaçanã, relatados por ela mesmo:
Dona Linda:
Visita multiprofissional do Hospice, toda a equipe reunida. A nossa super nutricionista relata: “A sra. Linda tem aceitado muito bem a dieta e hoje pediu peixe frito. Já estou providenciando para o almoço.”
Acontece que a sra. Linda, de 87 anos, tem diagnóstico de câncer gástrico localmente avançado com total impedimento de passagem de sonda enteral (da boca para o estômago). Aí ninguém mais acredita que ela tem câncer, nem ela. Peixe frito para uma senhora muito linda com um câncer de estômago muito avançado, é isso que a gente tem pra hoje.
O senhor incrível:
Ele chegou ontem no Hospice. Diagnóstico de câncer cerebral, 75 anos, casado, 3 filhas. Na admissão feita, parece não fazer nenhum contato. Mesmo assim, a médica o chama… e ele responde! A médica pergunta:
— Sr. Incrível, o sr gostaria de me pedir alguma coisa?
— Sim, champagne, por favor.
— Oi?
— Champagne, doutora. Mas tudo bem, acho que não tem, né? Aqui é hospital..eu entendo…
Em menos de uma hora, a mensagem da Nutricionista: “Dra., a champagne do Sr. Incrível já está gelando! Mas não tenho taças…”
Mais tarde a residente e a terapeuta ocupacional trazem taças. Ele não estava confuso e desorientado quando pediu a champagne. Naquele dia ele e sua esposa completavam 50 anos de casados. E toda a equipe do Sr. Incrível por aqui brinda, sorrindo um sorriso inebriant
Dona Aurora
A paciente chega totalmente dobrada em si mesma. Demência avançada. Não abre os olhos. Ao chamado, se encolhe ainda mais. Sem contato algum, segundo familiares.
— Ela não consegue esticar os braços e as pernas?
— Não doutora, ela está assim desde que foi internada.
Respeitando o tamanho da dor da luta inglória pela “sobrevida”, analgesia à altura de grandes guerreiros. Doze horas de relógio. Hoje cedo, a cena. Espreguiçando-se, ela me sorri e fala:
— Bom dia!
Dona Rosa
A Dona Rosa, por exemplo, não era exatamente uma senhora que, a princípio, seria fácil de gostar. Era daquele tipo de pessoa que num primeiro momento elogiava tudo muito docemente para logo em seguida fazer suas exigências. Para ela tudo estava fora daquilo que considerava adequado. O arroz empapado, o feijão sem sal, o macarrão sem molho, o travesseiro no lugar errado, a cama dura…
Até mesmo quando ela pedia, ordenava: “Não aperrrrte no meio, aperrrrte em baixo”, no momento em que pedia que passasse a saliva artificial em sua boca, e falava um R em tepe típico dos italianos, o que dava ainda mais austeridade àquele “pedido”.
Dona Rosa tinha uma relação tumultuada com seu único filho, ele não era exatamente educado com ela. Mas, enfim, nunca saberemos como foi a relação de ambos durante toda uma vida.
Vão-se os anéis, ficam os dedos… aprendi muito com a Dona Rosa. Percebi o tanto que ela era uma pessoa adorável. O convívio com ela me ensinou que não devemos julgar as relações interpessoais, que tomar partido pode ser algo temerário e me ensinou que há três verdades: “a minha, a sua e a verdade”.
Me ensinou ainda a enxergar a beleza única de cada personalidade humana; ensinou que, na verdade, toda essa percepção já estava em mim, mas ela foi se tornando um pouco opaca e embaçada até ela me emprestar uma flanela.
* * *
Faltam palavras para descrever a constatação dos familiares daqueles que partem em relação ao Hospice e ao Serviço de Cuidados Paliativos, como a esposa de um paciente nos disse com a melhor e mais bonita curva nos lábios:
“Vou ser sincera, não dormi esta noite. Não por preocupação ou por medo. Não dormi porque passei a noite agradecendo. Eu abro e fecho os olhos e penso: a gente deve estar no céu, no céu…”
Você sabia dos hospices e dos Cuidados Paliativos?
O objetivo desse texto sempre foi o de jogar luz sobre tema aparentemente pouco conhecido.Cuidados Paliativos é uma especialidade médica nos Estados Unidos e em muitos países europeus.
Anualmente, morrem no Brasil (de morte anunciada) cerca de 800.000 pessoas, segundo dados de 2010. Isso corresponde a mais de 80% das mortes do país. “Coincidentemente”, essas pessoas preenchem os requisitos mínimos para que possam ser candidatos aos cuidados paliativos. Acredito que você gostaria de morrer com qualidade de vida, acredito que você desejaria que seu pai, sua mãe seus avós, suas pessoas mais queridas morressem de maneira digna e com esse tipo de tratamento de qualidade.
No Brasil, infelizmente, ainda há um enorme desconhecimento do que seja cuidado paliativo e quando se tem ideia do que seja há sempre um quê preconceituoso de que se trata de uma “onda new wave-hiponga-tilêlê de morrer”. E muito desse preconceito vem de dentro da própria categoria médica. O que é, no mínimo, paradoxal.
Penso que quanto mais a sociedade tomar conhecimento sobre o que se trata esse tipo de serviço de saúde, maior seria a cobrança para que seja oferecido, seja pelo SUS ou pela iniciativa privada. Acredite, dificilmente a comunidade médica auxiliará, de um modo coeso, à propagação e à implantação dessa proposta, mais por desconhecimento e preconceito que por qualquer outra coisa.
Faço votos de que esse tipo de experiência seja disseminada, que esse tipo de estágio seja formalizado e que seja repassada a mensagem de que é possível transformar em céu os ambientes de serviços em saúde para os pacientes, familiares e para todos aqueles que trabalhem nestes serviços.
Que a proposta do tipo de cuidado executado no serviço em Cuidados Paliativos, passe, de agora em diante, a ser um objetivo.
Toda a gratidão do mundo à Dra Ana Claudia, Dra Rebeca, Dra Thays e à equipe do hospice. Ser subversivo e despraticar as normas e as escrituras nunca foi tão estimulante. Toda a gratidão do mundo também aos pacientes — seres humanos em extinção, como diria a doutora Ana Claudia, que possibilitaram que eu me conectasse com aquela sensação tão evidente, mas tão misteriosa, de estar vivo.
Agora sim começo a entender Guimarães Rosa:
“O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas.”
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