Nota do editor: considerando ser hoje, 17/04, a votação do impeachment de Dilma na Câmara, resolvemos recolocar esse artigo em destaque na capa.
Sugerimos ainda escutar a opinião recém colhida de 17 intelectuais brasileiros sobre o atual estado de nossa democracia.
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As eleições são um período particularmente tenso para mim. Não me refiro à obrigação de fazer escolhas conscientes, que eu levo bem a sério, mas às inevitáveis discussões com amigos / colegas / conhecidos / taxistas / pessoas aleatórias no ônibus e na vida.
São em momentos como esses que eu percebo como estamos longe de uma verdadeira cidadania e como parte da responsabilidade pela zoeira em que vivemos é nossa.
Explico. Ao começar uma discussão política, é inevitável que eu traga no discurso argumentos de minha formação jurídica: distribuição de competências, distinção entre legalidade e moralidade, direitos humanos, divisão de poderes e por aí vai.
E, exceto quando discuto com colegas de faculdade e profissão, desanimo logo de cara quando a boa pessoa não entende que Presidente não prende criminoso, que Governador não tem nada a ver com a Petrobrás e que a discussão do sistema educacional demanda coordenação entre municípios, estados e União.
Claro que juristas têm uma certa vantagem nesse sentido, mas não deveríamos todos entender um pouco mais das instituições do país em que vivemos?
Confesso que a ideia de escrever esta série de textos veio primeiro do ímpeto egoístico de me economizar tempo nas discussões que se aproximam, mas, pensando bem, até que é bem legal tentar explicar conceitos jurídicos importantes de forma simples. Lembro que política pode e deve ser analisada sob diversos aspectos; este texto trata somente do ponto de vista jurídico.
Comecemos pelo começo, que, juridicamente, é a Constituição Federal (“CF” para os íntimos).
Manja o Contrato Social, do Rousseau, de quem você ouviu falar na aula de história da sétima série quando sua professora falou do iluminismo? Então, é ela.
É o pacto social, o acordo a que todos nós teoricamente nos submetemos em troca de uma ordem social organizada e que traz os fundamentos desse Estado chamado República Federativa do Brasil.
Quando você lê que algo é inconstitucional, é porque esse algo vai contra esse documento basilar do nosso ordenamento jurídico e deve ser inutilizado. Esse algo – que pode ser uma lei ordinária, um decreto, ou mesmo uma emenda constitucional – deve estar muito errado, porque a Constituição Federal trata de assuntos ligados à essência do Estado, como os direitos fundamentais dos cidadãos, a organização do Estado e princípios norteadores de sua ação. Acredite, isso acontece com mais frequência do que imagina.
A ideia de um conjunto normativo ao qual todos os cidadãos estão submetidos – eu disse todos, inclusive políticos, magistrados, policiais, eu, você – nasceu como forma de organizar o barraco e limitar um poder governante que já foi absoluto e que carecia de legitimidade. Se devo obedecer a algo, que pelo menos eu participe na sua gênese; se devo me submeter a normas, que todos meus pares também se submetam.
A participação na condução política do país contribui para a legitimidade das normas, e a submissão de todos ao ordenamento jurídico, sem exceção, garante um Estado regido pelo direito, e não por pessoas potencialmente arbitrárias.
Além da legitimidade, o legal de ter um documento com todos os princípios básicos do Estado é que você, com uma dose de boa vontade, pode sentar e se inteirar sobre eles. Antes de começar a ler a Constituição, contudo, peço que pare um minuto e pense no que ela significa.
Lembre que a proteção de um sistema jurídico e a possibilidade de influenciar a vida política dos vários níveis de sua comunidade foram conquistadas a duras penas.
Sério, cabeças rolaram, e ainda rolam, para que pudéssemos fazer isso. Humanize a luta política e talvez você comece a entender porque gente como eu acha o exercício de direitos um dever moral em memória àqueles que morreram para que os tivéssemos.
Enfim, dramas à parte, abra a Constituição Federal aqui. Já esclareço que ninguém está lhe pedindo um parecer jurídico sobre uma questão de alta indagação; estou lhe sugerindo que conheça a Constituição, e para isso não é necessária formação em direito. Juro.
A linguagem pode ser diferente daquela com que está acostumado, mas vou guiá-lo nesse seu primeiro contato. Eu sei, prometi falarmos de política, mas, acredite, tudo sobre o que estamos conversando tem a ver com política.
Este texto vai se restringir aos primeiros artigos, que são quase poéticos (não estou sendo sarcástico!) e que dão pano para bastante manga.
O artigo 1º
Logo no primeiro artigo, tem-se que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”.
Veja que interessante: quando falamos em termos nacionais, sempre nos referimos à União, que é literalmente a união de Estados, Municípios e Distrito Federal (onde a sede da União fica, já que ela não teria um território próprio), que são esferas federativas independentes.
O artigo 1º também traz a expressão “Estado Democrático de Direito“, que merece ser esmiuçada. Estado de Direito significa que o poder político está subordinado a normas (direito), e democrático, claro, é o adjetivo derivado de democracia, palavra de origem grega composta pelos termos gregos “demos” e “kratos”, que significam, respectivamente, povo e poder. Resumindo, o Brasil é um Estado em que o poder político deriva do povo e é regido por normas objetivas.
Continuando, o parágrafo único do artigo 1º ratifica o que disse até o momento e insere a forma como o poder político é exercido:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”
Soberania popular, bebê, ou seja:
(i) o “poder”, o “sistema político”, “eles”, tudo isso brota de nós: povo;
(ii) a participação política se dá indiretamente, por meio de representantes eleitos, ou diretamente, como ocorre nos casos de plebiscitos e referendos;
(iii) tudo está sujeito aos termos da Constituição.
Poxa, você poderia ter começado logo por aí, então. Sim, poderia, mas não teria graça.
O artigo 2º
Sigamos. O art. 2º diz que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Não existe hierarquia entre eles, o que me permite pensar que superestimar o Poder Executivo e subestimar os demais, tanto em suas capacidades quanto em suas responsabilidades, é um tiro no pé – todos nós já cometemos esse erro, acredite.
Assim como o Presidente da República não tem competência para exigir a aprovação de determinada norma pelo Congresso Nacional, este não pode se imiscuir em julgamentos técnicos pelo Supremo Tribunal Federal, por exemplo. Cada um dos Poderes deve ficar em seus respectivos quadrados e agir com eficiência em suas funções, em um sistema de pesos e contrapesos que impede o acúmulo de um poder absoluto em qualquer um deles.
A separação dos Poderes é um assunto extenso que será tratado em um texto separado, mas, por ora, quero que você se acostume com a ideia de que atuação política extrapola, e muito, a discussão de plano de governo e definição do Presidente da República (e também do Governador e do Prefeito, claro, mas me mantive no plano da União porque é do que o art. 2º trata).
Pulando para o artigo 5º, se for ler apenas um, que seja esse
Os artigos 3º e 4º tratam dos objetivos do país e dos princípios que regem suas relações internacionais, respectivamente. Interessantíssimos, mas assunto para um outro momento.
Estou ansioso para chegar na vedete da Constituição, o famoso, belo (e tantas vezes desrespeitado) artigo 5º, que trata das liberdades individuais. Se você já se cansou deste texto, que talvez seja mais longo do que previa quando começou a ler sem rolar a tela até o final, aguente pelo menos até o próximo parágrafo.
O artigo 5º é importante para sua vida, e, se você quiser fazer o rebelde, ir contra a tudo o que eu disse neste artigo e ler um único artigo da Constituição, que seja este artigo 5o.
As garantias individuais são sua proteção e ninguém pode tirá-las de você. Basta estar vivo para tê-las, e algumas são até aplicáveis a gente morta.
Ninguém, nem mesmo, e especialmente, o Estado, em qualquer nível federativo, em qualquer Poder, pode desrespeitá-las. Conhecê-las é sua arma contra arbitrariedades, sua afirmação como cidadão, sua chance de melhorar seu julgamento e revisar suas atitudes e opiniões.
Pincemos algumas garantias que têm relação mais clara com o pensamento político:
(i) Princípio da legalidade, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Lei, aqui, deve ser entendida em sentido amplo: Constituição Federal, Constituição Estadual, lei complementar, lei ordinária, lei delegada, etc. É com base neste princípio que você pode se negar a cumprir determinada ordem que não tenha respaldo legal, como, por exemplo, negar o acesso da polícia a sua casa sem mandado judicial.
Ao mesmo tempo, é com base nele que você não tem o direito de exigir de outras pessoas comportamentos de cunho meramente moral, religiosos ou de boas maneiras (na verdade, nada impede de exigi-los, já que isso não está prescrito em lei, mas você deve, pelo menos, suportar seu descumprimento).
(ii) Direito de manifestação do pensamento, segundo o qual “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Essa vedação ao anonimato dá muita discussão – por exemplo, usar máscaras torna um manifestante anônimo, ou seria uma expressão individual de identidade política ou ideológica? A ideia nesse artigo é que a liberdade de se manifestar caminha junto com a possível responsabilização por seus atos.
(iii) Liberdade de manifestação, que garante “a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Portanto, você é livre para divulgar suas ideias, opiniões e tudo o mais que você quiser. Esta liberdade, porém, não é uma carta branca para sair bradando impropérios ou inventando boatos: nenhuma garantia individual é absoluta, e seu exercício deve ser ponderado e limitado pelas demais liberdades e proteções. Lembre que o cidadão é livre, mas também responsável por seus atos.
(iv) Direito de receber informação de interesse particular, coletivo ou geral dos órgãos públicos, salvo em caso de segurança da sociedade e do Estado. Acesso à informação, meus caros: se o órgão é público, as informações que tramitam dentro dele também devem ser.
(v) Direito de petição aos Poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.
Você tem o direito de peticionar diretamente às autoridades políticas para reclamar ou denunciar ilegalidades. Talvez uma petição individual se perca na barafunda burocrática tão comum de órgãos públicos, mas este direito mobilizado pode se tornar um grande fator de pressão pública. Um exemplo de que isso funciona foi a criação do Parque Augusta, em São Paulo, que teve grande mobilização popular.
Como você vai perceber da leitura do artigo 5º, há outros direitos que podem ser usados no contexto político, e todos eles são cruciais para o exercício da cidadania plena. Ao se deparar, por exemplo, com o inciso XII, que diz:
“É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial.”
Você pode se questionar sobre a prática banalizada de obter informações de mensagens eletrônicas para formação de publicidade direcionada. Ou, ainda, duvidar do caráter da mídia sensacionalista que não hesita em rotular como bandidos pessoas que sequer foram julgadas, em completo desrespeito ao princípio de que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória – o que aconteceu no caso da Escola Base é exemplo do que o desrespeito à presunção de inocência pode causar.
A ideia deste texto, contudo, não é esgotar o assunto e nem entrar em detalhes, mas instigar o cidadão a entrar em contato com o coração (ou a alma?) do nosso país. Se chegar ao final do artigo 5° inspirado, prossiga – talvez encontre bons argumentos para reivindicar algo de seu chefe nos artigos seguintes.
Se não rolar, espera um pouquinho pelo próximo texto, onde pretendo tratar especificamente dos direitos políticos previstos na Constituição.
Nesse meio tempo, seria muito saudável conversarmos e aprimorarmos conjuntamente nossas noções políticas. Deixem suas dúvidas e críticas nos comentários para seguirmos.
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Nota do editor: esse é o primeiro texto da série “Para entender política“, por meio da qual pretendemos elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando. Sugestões para a série são extremamente bem-vindas.
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