"Fred,
Acho que o espírito de lutar contra injustiças foi um dos fatores que me levou a advogar. O problema aqui é a dimensão subjetiva da injustiça. Nos degladiamos contra as grandes injustiças da humanidade e nos esquecemos muitas vezes das injustiças cotidianas. Quando se trata de relações pessoais, não há nenhuma lei regulando o que é justo. Parece não haver um fiel da balança capaz de equilibrar duas pessoas.
Particularmente, eu me sinto constantemente injustiçado quando me dedico no trabalho e acabo sendo criticado ao invés de ser valorizado; me sinto injustiçado quando minha esposa desconfia da minha fidelidade sem nenhuma prova, por pura insegurança; me sinto injustiçado quando sou solidário com um amigo e, quando preciso, ele está ocupado demais com seus próprios problemas; me sinto injustiçado até no Natal, quando compro um presente especial e ganho uma bugiganga qualquer (rs).
Esta virtude [reciprocidade] está cada vez mais escassa na sociedade, todavia, é fundamental para garantir que exista um mínimo justiça nas relações pessoais.
Como tratar dessas injustiças no dia-a-dia sem se fazer de vítima (numa posição de inferioridade ou coitadinho) ou acabar retribuindo a injustiça num ciclo vicioso?
Vejo que, por vezes, a vítima da injustiça acaba sendo vista com pena por seu próprio algoz.
Como não deixar que a reciprocidade se confunda com a caridade, como se a justiça fosse um favor e não um dever?
Visto diariamente minha armadura de cavaleiro andante e quando vou me defender de qualquer injustiça, acabo caindo nessa condição.
Ass: Dom Quixote”
* * *
Caro Quixote,
Sua questão é tão importante e dá margem a tantos caminhos que nem sei por onde começar.
Bem, pode não ser uma novidade o que vou dizer, mas o mundo não é naturalmente justo. Digo, na natureza selvagem, da qual somos herdeiros, os mais fracos ou menos letais são abocanhados pelos mais fortes.
Com esse legado, temos enquanto espécie, um duro caminho pela frente para produzir justiça num mundo com todas as tendências à injustiça.
Ainda assim, temos inúmeras regras que surgiram da necessidade de arbitrar a convivência entre as pessoas, pois num território inóspito, como nos tempos quando éramos nômades, era pouco urgente ter noções muito sofisticadas de justiça. Sobreviver era mais importante.
Vamos nos debruçar sobre o processo que você narra dando primeiro alguns passos atrás.
Regras são para crianças
Sei que há toda uma discussão social e política a respeito disso, mas vou trazer a coisa um pouco mais pros nossos tempos e pra nós, como indivíduos.
Existem três esferas no campo da convivência das quais vamos perdendo clareza, a das regras, da moral e dos princípios.
Minha filha pequena, por exemplo, precisa de ação externa para se proteger de perigos que ela própria se expõe por não entender a letalidade de alguns objetos, lugares e pessoas.
Com o tempo, as regras darão lugar a um conjunto de entendimentos que poderíamos chamar de moral. Mas o que está por trás disso tudo, em última instância são princípios.
Quando carecemos da noção de princípios, as regras são usadas para que as crianças que persistimos em ser não machuquem a si próprias ou aos outros.
Esse entendimento é importante:
As regras deveriam ser uma construção temporária para uma vida ética e não o seu resultado final.
Quando uma regra que você cultivou se torna uma parte de você é fácil entender que, pra citar um exemplo comum, não posso roubar. No máximo, posso pedir emprestado e a outra parte decide se empresta ou não.
A regra tem uma função de controle funcional de nossa imaturidade moral, delimita nossas ações por meio de punições potenciais. Mas também poderia denotar um outro aspecto mais sofisticado. Ela garantiria, num nível ideal, o nosso desejo por seguirmos conectados, vivendo bem entre nós.
A batalha entre o egocentrismo e a generosidade
Seguindo o raciocínio, podemos agora entrar em outro dilema. A genética nos preparou para defender nossa integridade física e a consequência psíquica disso é uma tendência moral para o egocentrismo. O paradoxo é que a generosidade também surge como uma função adaptativa importante na evolução da espécie. Estamos há milênios tentando equilibrar a balança entre destruir os oponentes ou beneficiar os estranhos.
E, ao contrário do que querem pensar os pessimistas, o egoísmo não está ganhando de lavada. A batalha é dura.
As pessoas que se diferenciam moralmente da grande massa são pontas de lança, resultantes e ao mesmo tempo co-criadoras de movimentos revolucionários. Elas se antecipam ao seu tempo até que os seus seguidores/propagadores sedimentam o seu legado. Inevitavelmente, essa luz inicial que desponta acaba decantando e se firmando em progressos morais. Estamos falando em séculos, milênios… uma geração quase nunca se beneficia das lutas que empreendeu.
Agora voltamos ao seu ponto. Se o mundo não é naturalmente justo e a justiça é uma construção humana, precisamos trabalhar sem a afobação de colher os seus frutos, seja na esfera pessoal ou na coletiva. Enquanto artifício emocional, colocamos todo o nosso empenho na vã esperança de sermos recompensados pelos esforços que fazemos. É até uma ingenuidade.
Uma distinção a se fazer: Vitimizante vs Vitimizado
Temos, então, duas posturas a distinguirmos.
No que tange às semelhanças, tanto vitimizado quanto vitimizante estão em uma condição de passividade em relação a um ato abusivo, que teve por consequência uma mudança considerada não-natural e que, em algum nível, deformou suas identidades.
Vale ressaltar novamente que essa é uma simplificação.
Não é nada fácil tomar uma lavada da vida, em especial quando isso surge de pessoas que deveriam nos tratar bem, como pais, parceiros amorosos, amigos, colegas de trabalho.
Quando isso acontece, viramos quase que bandalheiros. Qualquer briga, por qualquer causa se torna a nossa, pois queremos a catarse emocional, lutar contra um inimigo real ou imaginário que nos feriu.
Aqui vai, então, a primeira distinção: a pessoa vitimizada, diferente da vitimizante, não perpetua sua condição de vítima. Apesar do tamanho do abalo, ela o transcende em etapas.
Na fase inicial, ela convulsiona. Assim, manifesta o seu mal-estar, raiva, tristeza, medo, desconfiança, desejo de vingança… quase todas essas reações intensas, catárticas, podem ser atribuídas a essa fase primária.
Uma fase seguinte é a de se recompor, deixar os restos do incêndio se revelarem úteis ou descartáveis, mexer e remexer em feridas.
Essa etapa é marcada por uma certa confusão. Não se sabe se a atual identidade dará lugar ao que já se foi, por conta da luta interna e saudosista de querer resgatar a pureza original não-machucada. Nessa fase é que a aproximação com os seus pares sequelados parece fazer sentido para que cada um apoie o outro no apaziguamento das feridas. A empatia com aqueles que estão machucados ainda é forte, mas vai apresentando uma falência.
Como decorrência dessa recomposição, surge uma identidade vitimizada, de quem foi vítima, que perpetua as próprias dores.
A pessoa em situação vitimizante é aquela que, por falta de vontade ou condições emocionais, se fundiu com a sua dor e permaneceu num lugar infantilizado.
Ela é boa e o mundo é mau e injusto, ela merece tudo e os outros nada, ela só quer recompensas e para os outros só punição. Ela não consegue—e é bem compreensível em muitos casos—ascender de seu machucado. Adotou uma perspectiva meio paranóica da vida, por ser esse o jeito simplificado no qual consegue operar. Entender que a vida não é binária, que temos vários matizes, que operamos por condicionamentos pessoais e estruturais míopes, enfim, sustentar ambiguidades emocionais e paradoxos existenciais seria, quando se está nessa postura, muito difícil.
A verdade é que é muito delicado reconhecer que nem todas as empreitadas quixotescas que uma pessoa entra são mobilizadas por justiça. Algumas são motivadas por uma natureza revanchista e até perversa.
Apesar de não assumir, a pessoa vitimizante em última instância também se debate pelos mesmos dilemas morais que os seus inimigos injustos.
A vítima perpétua teme as áreas cinzentas da vida, em que não é possível se localizar com clareza nesse ou naquele clubinho. Ter essa clareza seria uma condição adulta bem diferente da qual ela se encontra.
A pessoa vitimizada consegue ter mais liberdade frente ao que sofreu pois entende com mais facilidade que não está brigando com a Maria ou o José, mas com questões que carregamos há muito tempo. Sua militância, se existir, é mais lúcida e menos afetada por convulsões morais.
"Como não deixar que a reciprocidade se confunda com a caridade, como se a justiça fosse um favor e não um dever? "
Vamos, então, responder à sua pergunta.
Bem, se a reciprocidade estiver na sua pauta, inevitavelmente você agirá como alguém que precisa que o outro valide o seu bem agir.
A justiça é um favor, tendo em vista que não é natural, e precisa ser uma escolha de cada um.
Qualquer justiça que parta da premissa de ser um dever de todos e não uma construção constante será falida e emocionalmente debilitante para o justiceiro (sem contar que é potencializadora de desejos totalitaristas). A justiça sofisticada precisa nascer menos do desejo de ordem e controle (que são consequências e não fundamentos da boa convivência) e mais de conexão e compaixão.
Estamos todos cegos e desamparados no mesmo barco, alguns se agarrando em condições de mais poder que outros, mas todos desmoronando na empreitada humana de construir felicidade genuína e inclusiva.
O impasse que o nosso egoísmo tem enfrentado é que num mundo descaradamente globalizado não podemos sobreviver enquanto espécie se não considerarmos o coletivo como nossa prioridade. Do ponto de vista individual perdemos algumas concessões e facilidades, mas do ponto de vista sistêmico ganhamos mais alguns séculos para os nossos filhos e netos (mesmo para quem não os tem).
Mas não se iluda, Quixote, você não precisa carregar o mundo nas suas costas.
Mesmo que conseguisse, não seria bom, pois depois de sua morte ninguém teria introjedado efetivamente o seu legado de mártir isolado. É só na esfera das movimentações coletivas que podemos mudar alguma coisa no nosso quintalzão chamado planeta Terra.
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Nota da edição: a coluna ID não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.
A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.
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