O documentário está disponível na Plataforma HBO Max

O documentário Pacto Brutal, disponível na HBO Max, remonta a história do assassinato de Daniella Perez, a atriz protagonista da novela “De corpo e alma” que, em 1992 foi morta com 18 punhaladas por outro membro do elenco, Guilherme de Pádua, e pela a esposa dele, Paula Thomaz. 

Daniella, filha da autora da novela, Glória Perez, estava sendo perseguida, assediada e pressionada por Guilherme. A hipótese mais convincente é a de que o assassino desejava ampliar a relevância de seu personagem e pressionava Daniella pedindo que ela convencesse a mãe dramaturga a a rever o final.

O crime chocou o Brasil e, 30 anos atrás, ganhou inúmeras versões na mídia sensacionalista. Muitas difamaram e até culpabilizaram a atriz assassinada. Daniella era casada com o ator Raul Gazolla e diversos tablóides sugeriram que ela e Guilherme de Pádua, tal como na novela, tinham um caso passional. 

A série documental de 200 reconta a história a partir da versão embasada em evidências, provas e depoimentos. Os registros e laudos mostram que o crime foi cruelmente premeditado pelo casal, incluindo características ritualísticas. 

Ao contar a ordem dos acontecimentos, “Pacto Brutal” nos ajuda a pensar algumas questões sobre violência contra mulheres e sobre o papel das pessoas ao redor, que enxergam indícios de violência mas não sabem como intervir, na prevenção de futuros casos.

Para fazer essa análise, vamos recapitular um pouco da história (e dar alguns possíveis spoilers):

Um crime premeditado, mas não sem testemunhas.

Daniella Perez com a sua mãe, Glória Perez

Quando Daniella sai do estúdio de gravação, Guilherme de Pádua e Paula Thomaz seguem a atriz de carro e a interceptam quando ela pára num posto de gasolina. No posto, espaço público e com trabalhadores ao redor, o ator fecha a saída da atriz com o carro dele, iniciando uma discussão com Daniella. Com ambos fora do carro, Guilherme desfere um soco no rosto da atriz, seguido de uma chave de braço que a desmaiada. 

Daniella foi agredida em público. Pessoas presenciaram quando ela, desacordada foi colocada dentro do carro do ator. Ainda assim não houve tentativas de intervenção e nem de denúncia posterior.

Por que ninguém fez nada? Por um lado existe o receio social de interferir numa briga que “não lhes diz respeito”. Muitas vezes esse receio é acompanhado da crença (machista) de que, se aquelas duas pessoas são um casal, é direito do homem perder a calma, e se uma agressão ocorre em decorrência disso, ele não deve ser recriminado publicamente por isso. 

Por outro lado, mesmo que a pessoa não concorde com essa lógica, a intervenção não é tão simples assim.

Diante de um homem que age com violência, existe o medo legítimos – por parte das testemunhas – de também serem agredidos. Esse  medo e é atravessado por outras questões: e se o agressor tiver uma arma? E se aquele homem tiver outras formas de relatiar quem interferiu? Afinal, ele era um ator global, e as testemunhas eram trabalhadores, garotos de 19 anos, frentistas de um posto de gasolina. E se resultar numa briga, a polícia chegar e a corda arrebentar para o lado mais fraco? 

Mais rastros

Em outro posto, um funcionário foi pago por Guilherme para lavar o carro. O homem que nada sabia, viu, ao enxaguar o estofado, que saiam manchas de sangue. 

No desdobramento do caso, os trabalhadores do posto se tornaram testemunhas essenciais para a condenação de Guilherme de Pádua e Paula Thomaz. No entanto, o caminho para conseguir convencê-los a dar um testemunho é tortuoso e mostra as nuances dos problemas de injustiça que enfrentamos. 

Os frentistas temem denunciar.

Quando a dramaturga Glória Perez começa a buscá-los para serem testemunhas, todos os que presenciaram a agressão são demitidos do posto. Percebam como a diferença de classe atravessa esse problema: só por terem presenciado o crime, esses trabalhadores já estavam sendo prejudicados. 

A dramaturga, após organizar uma força tarefa entre amigos (se tornando uma investigadora mais ferranha que a polícia) encontra a casa de um dos rapazes que presenciou a agressão.

A mãe do rapaz fecha as portas para não deixar que seu filho, um jovem rapaz negro, testemunhe. O medo da mãe era que o jovem de 19 anos sofresse retaliações da parte dos assassinos:

“Vão fazer com o meu [filho] pior do que fizeram com a sua [filha] e não vai sair nem no jornal”

O medo de interferir no momento da agressão é somado agora ao medo dos jovens de classe baixa sofrerem retaliação, de não serem protegidos como testemunhas, da justiça não ser eficaz, das instituições os tratarem com hostilidade, entre outras coisas. E tudo isso atravessa os processos do caso. 

Somando tudo isso vemos que, em uma sociedade desigual, o medo se espalha em diferentes níveis, para diferentes pessoas envolvidas numa situação. Manter esses medos só beneficia a impunidade, a noção de que não há consequências em violar o direito dos outros (como das mulheres) porque não haverão interferências externas. E essas interferências externas são desencorajadas pela falta de segurança física ou financeira de quem está ao redor. 

Tem como mudar esse ciclo?

Sim, evidentemente.  Desde a data do crime até aqui, muita coisa mudou sobre direito das mulheres. 

O caso impactou diretamente a legislação brasileira: quando Daniella Perez foi assassinada, homicídio não era considerado crime hediondo.

Glória Perez iniciou uma mobilização nacional que reuniu 1.3 milhões de assinaturas para alterar a legislação, permitindo penas mais rígidas para futuros casos de assassinatos. A mudança alcançada não afetaria o julgamento dos assassinos da sua filha, mas traria mais justiça para os casos futuros de assassinato.

Na década seguinte, outras lutas mudaram o cenário: a Lei Maria da Penha, por exemplo, foi assinada em 2006 (o que nos leva a perceber quão recentes são alguns direitos das mulheres).

E assim, mobilizações frequentes, puxadas pelos movimentos feminista, movimento negro, movimento pelos direitos humanos, tem nos ajudado a avançar (a duras penas) em direção a uma sociedade que, ainda que não chegue a ser justa, tire as violências de um lugar de permissividade, de quase naturalidade.

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Coletivamente podemos sempre nos informar e apoiar essas movimentações para garantir mudanças.

Nosso voto é uma ferramenta poderosa nesse sentido, podemos escolher pessoas que tenham propostas, projetos de políticas públicas, que sejam capazes de proteger e garantir os Direitos Humanos de cada um e de todas as pessoas.

O que eu, como homem, posso fazer sobre isso?

Usando um dos 5 Ds para interromper ciclos de violência

Ao revisitar o passado, por vezes ficamos tentando elaborar o que poderia ter sido feito para evitar uma dada tragédia. Diante impossibilidade de mudar o passado, é sempre mais interessante focar nas coisas que podemos fazer para que tragédias assim não se repitam. 

E pensando no dia a dia, não é só sobre evitar casos horrendos de feminicídio. É sobre evitar e ir contra as pequenas violências que vemos todos os dias. A maioria dos casos de feminício acontecem depois de uma escalada de violência: depois que um apertão foi negligênciado, que um tapa foi perdoado, que um espancamento foi escondido. 

Todas as pessoas podem ter um papel na prevenção das violências de diferentes formas, entendendo contextos e possibildiades. Aqui vamos sugerir então 5 abordagens possíveis para ser um homem aliado.

Estas cinco abordagens, os 5 Ds, são formas de quebrar o efeito espectador (bystander effect). O efeito espectador é o que acontece quando vemos um crime ou uma injustiça acontecer e, diante da presença de mais pessoas que também estão assistindo a cena, ocorre uma diluição da responsabilidade: por que, dentre essas pessoas, eu sou a pessoa que deveria fazer algo?

Além disso, ainda existe um fenômeno social que, quando uma pessoa percebe que as outras não estão se mobilizando, esta tende a interpretar que, nesse contexto, agir seria desnecessário ou até inadequado.

A depender da cena em que vemos um tipo de violência ocorrer, poderemos nos sentir confortáveis com diferentes níveis de intervenção.

Em dado momento, pode ser que uma pessoa prefira interferir, interromper diretamente. No entanto, se essa não for uma opção que pareça segura ou viável no momento, existem outras formas de dar apoio e não corroborar com a continuidade das violências.

A cada uma das formas de intervenção atribuímos um D. 

1. Direta

Quando a pessoa decide, diretamente, interferir, interromper a briga, questionar a pessoa que agride (física ou verbalmente)

(Imaginando uma cena de agressão num posto de gasolina, a abordagem direta seria alguém apartar a agressão diretamente)

2. Distração

Nesse caso a pessoa não se coloca no meio do conflito, mas tenta direcionar a atenção dos envolvidos para outras ações, interrompendo o processo de violência indiretamente.

(Na cena do posto de gasolina, a distração seria alguém do posto afastar a Daniella do conflito por alguma suposta falha no pagamento, falta de assinatura no cheque, qualquer artifício que funcione para separar a vítima da situação de violência)

3. Delegar

Não se sentindo à vontade para interferir de nenhuma forma, você pode pedir ajuda para alguém mais capacitado a agir com segurança. Seria como chamar um segurança diante uma agressão num shopping, ou chamar seu superior para uma violência no ambiente de trabalho, ligar para a polícia dando detalhes de onde estão vindo os barulhos de discussão.

(Na cena do posto, o que poderia acontecer seria ligar para a polícia, informar a placa e a direção para a qual seguiu o carro.

A abordagem de delegar foi feita por um senhor que, na cena do crime, ao ver dois carros parados cerca de um matagal, anotou as placas e informou a polícia. Ele não conseguiu evitar o crime, mas foi essencial para identificação e condenação dos assassinos.)

4. Documentar

Hoje em dia essa abordagem é mais fácil do que no início dos anos 1990. Muitas vezes, as vítimas têm dificuldades de prosseguir com denúncias de violência pela falta de provas. Nesse sentido, se uma pessoa não se sentir confortável para intervir de nenhuma forma, pode ser útil filmar, fotografar, gravar áudios, registrar horários, guardar comprovantes de presença. 

Principalmente em casos de violência que não terminam em feminicídio, mas que são recorrentes, ter provas e registros é uma forma de ajudar a vítima caso ela decida seguir com a denúncia.

(Considerando que a agressão no posto em 1992, os frentistas poderiam ter anotado a placa do carro, horário, detalhes das feições de cada um dos presentes, para que direção os carros seguiram, detalhes assim. Se a mesma cena fosse hoje em dia, fotos e gravações seriam úteis)

5. Depois

Essa abordagem só é possível em casos de violências não-letais. Quando, depois de ver alguém ser agredido (seja física ou verbalmente), principalmente pessoas conhecidas, você espera até que esta pessoa esteja distante do agressor para oferecer suporte e cuidado que ela venha a precisar: apoio para buscar ajuda, para cuidar da saúde física e mental, apoio para denunciar, para tentar encontrar uma forma segura de evitar que aquela forma de agressão se repita e se agrave.

No caso de Daniella, como a violência foi letal, a única possibilidade de agir depois, é justamente fazer o que os frentistas vieram a fazer: testemunhar, depor para que haja responsabilização dos autores do crime.

Para saber mais sobre como ser um homem aliado no enfrentamento as violências contra as mulheres, leia nosso e-book

COMO CONVERSAR COM HOMENS SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES

Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro <a href="https://www.amazon.com.br/Amulherar-se-repert%C3%B3rio-constru%C3%A7%C3%A3o-sexualidade-feminina-ebook/dp/B07GBSNST1">Amulherar-se" </a>. Atualmente também sou mestranda da ECA USP