“Há uma miséria no Brasil violenta. Uma pobreza gigantesca que não se resolve com dinheiro. Para superar a pobreza e a miséria, é (preciso) muito mais do que isso. É a consciência, a capacidade de se organizar, a capacidade de conseguir trabalho, o desejo de ganhar a vida”.
A frase acima é de um banqueiro, mas não parece. Também pudera: foi dita por alguém que, embora coordene uma instituição financeira, passa longe de ser dono, acionista ou um obcecado por lucros.
A frase é de Joaquim Melo, Coordenador Geral do Instituto Banco Palmas — primeiro e maior banco popular comunitário do Brasil, situado na periferia de Fortaleza.
A história do Banco Palmas é indissociável da história do Conjunto Palmeiras.
Em 1973, a Prefeitura de Fortaleza desapropriou mil e quinhentas famílias de suas casas na zona costeira da capital. Removidas do lugar onde hoje fica a Avenida Beira Mar e colocadas a mais de 20 km dali, as pessoas tiveram um mês para construir seus barracos em um terreno que não tinha água, eletricidade, telefones, escola ou posto de saúde. Unidos em mutirão para colocar as casas de pé, os moradores do Conjunto começaram, desde então, uma história pautada por indignação, suor, organização e luta.
Mesmo depois de conquistar o acesso a água e outros itens básicos para a sobrevivência, os moradores sofriam com as condições da comunidade.
Para escapar do roteiro comum a favelas e outros bairros pobres do Brasil, em janeiro de 1990 articularam o primeiro seminário “Habitando o Inabitável”.
Chegaram à resolução de que eles mesmos organizariam a urbanização do Palmeiras, e fixaram um prazo de 10 anos. Joaquim conta que o período foi marcado por mutirões para o estabelecimento do canal de drenagem, a construção da pracinha e outras necessidades elencadas por quem vivia ali.
“Em janeiro de 97, o segundo seminário “Habitando o Inabitável” chega a duas conclusões: a primeira que a gente tinha urbanizado o bairro em menos de 10 anos, em 8 anos; a segunda conclusão é que os moradores eram pobres. O bairro tinha se urbanizado, as ruas tinham melhorado, mas os barracos ainda eram muito pobres porque as pessoas não tinham renda. E que, portanto, a grande decisão era que a partir de 1997 e pelos próximos 10 anos o foco da Associação de Moradores não seria mais a urbanização, e sim um projeto de geração de trabalho e renda”.
A cena já seria insólita hoje. Imagine, então no fim da década de 90.
Uma comunidade, na periferia do Nordeste brasileiro, se reunindo a cada semana na praça do bairro, sob o sol, para discutir porque eles são pobres e como reverter essa situação na prática. Nesse processo surgiu o primeiro mapa de renda e dos hábitos de consumo de quem vivia região.
"Por que nós somos pobres?" foi a pergunta que norteou a criação do banco comunitário.
"Quando a gente fez o primeiro mapeamento, tava lá a resposta. Existiam 20% de pessoas que compravam dentro do bairro e 80% compravam fora. Circulavam R$ 1,2 milhão. E como é que um bairro que tem 1 milhão e 200 mil de renda é pobre?”, diz Joaquim. A gente era pobre porque perdia nossas poupanças. E perdia por que a gente comprava tudo fora do bairro”.
Depois de desconstruir a noção de que a pobreza existia apenas porque não havia dinheiro disponível, o próximo passo foi criar alternativas para que uma fatia maior do montante que eles já tinham passasse a ficar ali.
Para que um tecido econômico local se desenvolvesse em um local em que a maioria das pessoas tinham menos de quatro anos de escolaridade, a grande maioria estava desempregada e boa parte constava da lista do SPC, as principais respostas encontradas foram o incentivo à produção e negócios locais (com vistas à geração de emprego e renda) e o estímulo ao consumo.
Criar um banco foi a maneira que encontraram de fazer isso.
Em um País em que 40% da população com 18 anos ou mais ainda não possui acesso ao sistema financeiro, oferecer às pessoas a oportunidade de pagar as contas, depositar, receber ou pegar linhas de crédito de uma maneira não abusiva significa, na prática, oferecer cidadania.
De acordo com uma pesquisa feita entre o Instituto Banco Palmas e o NESOL-USP para o livro comemorativo do aniversário de 15 anos da instituição, 78% dos clientes do Banco buscam obter crédito — destes, 90% possuem renda per capita média menor do que 1 salário mínimo, sendo que 11% têm renda abaixo de R$ 70,00 (abaixo da linha da miséria).
“Dos clientes de crédito que possuem negócio, 29% indicam ter iniciado o negócio por conta do crédito do Banco Palmas, corroborando sua atuação direta no fomento à economia local”.
Resistência e Inovação
Desde os primeiros empréstimos realizados com os dois mil reais que tinham em caixa, o Instituto Banco Palmas passou por uma série de desafios: conquistar a confiança dos vizinhos e comerciantes, ganhar escala sem perder o propósito e aprender na prática como estruturar uma organização financeira que passou das linhas de crédito em uma caderneta para um moeda própria.
Um dos maiores entraves, no entanto, foi o Banco Central do Brasil.
Em 2003, depois de cinco anos com as portas abertas, o Banco Palmas foi acusado de cometer um crime contra o Estado brasileiro por falsificação de moeda — o BC entende que, de acordo com a Constituição, só ele poderia fabricar dinheiro. E que, como os moradores do Conjunto Palmas podiam comprar e vender localmente com a moeda social que eles mesmos inventaram e pegavam emprestada, aquilo era dinheiro.
O Ministério Público acatou a denúncia e o caso foi a julgamento. Mesmo sem advogados e enfrentando a equipe jurídica do BC, os cearenses conseguiram explicar que as Palmas eram o que se entende como uma moeda complementar — de circulação restrita, com livre aceitação, lastreada e indexada com câmbio em reais.
Afinal, apesar de aceitarem o pagamento feitos com Palmas por seus clientes que recorrem aos empréstimos do Banco, os empreendedores continuam precisando trocar isso para reais quando desejam trazer equipamentos e tecnologia de fora da comunidade ou pagar a conta de luz.
No mesmo ano, com a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária pelo governo Lula e o posterior reconhecimento da metodologia dos bancos comunitários, o trabalho desenvolvido ganhou escala. Acordos de cooperação técnica foram firmados e o Palmas passou a receber apoio por meio de parcerias para crédito e outros serviços financeiros oferecidos por órgãos públicos como Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil (em 2012, fez mais de R$ 3 milhões em empréstimos para microcrédito produtivo).
O apoio e reconhecimento de prefeituras e governos de estado resultaram também na expansão da experiência de Fortaleza para todo o Brasil. O Palmas segue sendo pioneiro e referência — atende entre 9 e 10 mil pessoas ao mês —, mas a Rede Brasileira de Bancos Comunitários já possui mais de 100 instituições.
Agora, a nova fronteira para multiplicar o impacto dos bancos comunitários é digital.
O PalmasLab (Laboratório de Inovação e Pesquisa em Finanças Solidárias) foi criado e encampa a ideia do banco comunitário digital, que já funciona via aplicativo — o Palmas e-Dinheiro já tem mais de 50 bancos comunitários cadastrados e uns 25 destes utilizam a plataforma com frequência.
“A estratégia não muda, o que muda são as ferramentas. O protagonismo continua sendo da comunidade. Para desenvolver um local você precisa criar redes fortes, e se você prioriza o consumo e a produção local, você vai gerar outro tipo de mercado e oportunidades”, diz Asier Ansorena, economista espanhol que veio ao Banco para um intercâmbio de seis meses e já trabalha nele há sete anos.
Ex-coordenador de Microcrédito no Instituto Banco Palmas, atual coordenador do PalmasLab e participante do programa de Democracia Econômica do MIT, Asier ressalta que a tecnologia e a inovação também têm significado no contexto social.
O Conjunto Palmeiras tem mais de 40 mil habitantes, e recebeu muitos assentamentos novos nos últimos cinco, seis anos. O Banco é a principal referência para pagar as contas, pegar crédito e para a parte financeira em geral, mas também porque promove mudanças no vácuo do poder público (a criação de espaços WiFi é um exemplo) e oferece cursos como corte e costura, culinária, música e, mais recentemente, programação.
Asier nos explicou o contexto:
“A situação é tensa. Fortaleza é a quinta cidade em desigualdade do mundo e está entre as mais violentas. A gente começou criando uma ferramenta para substituir os mapas de consumo e produção que eram feitos em papel, mas rapidamente a gente percebeu que pra fazer isso com pessoas da comunidade (só 10% dos 40 funcionários do Banco são de fora da região) a gente ia ter que treinar uma nova geração de programadores.
Não é apenas um projeto para pensar tecnologia de pesquisa para bancos comunitários, mas um projeto para democratizar o desenvolvimento e acesso de software, a produção de pesquisas nas periferias urbanas e o empoderamento juvenil”.
(N.E.: algumas das pesquisas são públicas, e podem ser vistas nessa plataforma: http://palmap.social/)
A frase que abre o site do Instituto Banco Palmas não poderia resumir a iniciativa de maneira melhor. É mais que um banco: é um sistema integrado de crédito, produção, comércio, consumo e felicidade humana.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.