Que pesadelo seria isso.

Tem um monte de problemas com o conceito de termos uma alma-gêmea única. Como Tim Minchin canta, em sua música “If I Didn’t Have You“:

Your love is one in a million
You couldn’t buy it at any price.
But of the 9.999 hundred thousand other loves,
Statistically, some of them would be equally nice.

Tradução:

Seu amor é um em um milhão
Não está à venda por dinheiro nenhum.
Mas dos 999.999 outros amores,
Estatisticamente, alguns seriam tão bons quanto.

Mas e se tivéssemos uma alma-gêmea perfeita, determinada ao acaso, e não pudéssemos ser felizes com mais ninguém? Como encontraríamos um ao outro?

Vamos supor que a sua alma-gêmea seja determinada ao acaso no momento em que você nasce. Você não sabe nada a respeito dela, ou onde ela está, mas – de acordo com o clichê romântico – vocês se reconhecerão à primeira vista.

Logo de cara, isso levanta algumas questões. Para começo de conversa, será que a sua alma-gêmea ainda está viva? Mais de cem bilhões de humanos já viveram, mas apenas um pouco mais do que sete bilhões estão vivos neste momento (o que dá à raça humana uma taxa de mortalidade de 93%, aliás). Se formos todos pareados ao acaso, 90% das nossas almas-gêmeas já estão mortas.

Horrível, né? Mas espere que fica pior: um argumento simples mostraria que não podemos nos limitar apenas aos humanos do passado; precisamos incluir também um número desconhecido de humanos do futuro também. Se é possível que a sua alma-gêmea tenha vivido no passado distante, também precisa ser possível que ela viva no futuro distante.

Mas suponhamos que a sua alma-gêmea viva na mesma época que você. Indo além, pra isso não ficar estranho demais, vamos supor que ela tenha uma idade próxima à sua. (Isso é mais estrito do que a minha fórmula padrão para determinar estranheza em diferenças de idade para casais, mas se supormos que uma pessoa de 30 anos pode ser alma-gêmea de uma pessoa de 40, a regra da estranheza é violada se eles acidentalmente se conhecerem 15 anos antes.) Com essa restrição de idade, todos nós teremos um grupo de cerca de meio bilhão de potenciais almas-gêmeas.

Ah, mas e o sexo e a orientação sexual? E a cultura? E o idioma? A gente poderia ficar aqui um tempão usando demografias para afunilar a coisa, mas aí estaríamos nos afastando da questão, que fala sobre uma alma-gêmea aleatória. No nosso cenário, você não faz ideia de quem a sua alma-gêmea será até olhar nos olhos dela. E todos só têm a mesma orientação sexual: são atraídas pela sua alma-gêmea.

A probabilidade de encontrá-la na rua é incrivelmente baixa. O número de estranhos com quem fazemos contato visual na rua a cada dia é difícil de estimar, mas pode variar de quase nenhum (pessoas introspectivas e isoladas, ou moradores de cidades muito pequenas) a milhares (um policial na Times Square).

Vamos então supor que você faz contato visual com uma dúzia de novas pessoas por dia. (Eu sou bastante introvertido, então no meu caso seria uma estimativa generosíssima.) Se 10% dessas pessoas são próximas à sua idade, isso dá cerca de 50.000 em toda a sua vida. Estabelecido que você tem cerca de 500.000.000 potenciais almas-gêmeas, isso significa que você só vai encontrar amor verdadeiro uma vez a cada dez mil vidas.

Com tão grande risco de morrer sozinho, a sociedade se reestruturaria de modo a incentivar o contato visual ao máximo. Poderíamos construir esteiras gigantescas nas quais duas fileiras de pessoas passariam uma na frente da outra…

…ou, se o lance do contato visual funcionar via webcam, poderíamos usar uma versão modificada do ChatRoulette.

Se todos usassem o sistema por oito horas todos os dias, sete dias por semana, e se demorasse uns dois segundos para perceber se alguém é a sua alma-gêmea, este sistema poderia – em teoria – demorar “apenas” algumas décadas para encontrar a alma-gêmea de todas as pessoas. (Eu modelei alguns sistemas simples para estimar a velocidade em que as pessoas se encontrariam e se subtrairiam do grupo de solteiras. Se você quiser trabalhar na matemática envolvida nessa situação em particular, pode começar estudando problemas de desarranjo.)

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No mundo real, muitas pessoas não conseguem tirar tempo algum para se dedicar a romance – pouquíssimas devotariam décadas a isso. Por isso, talvez apenas a galerinha cheia de grana poderia sentar a bunda na frente do SoulMateRoulette. Infelizmente para o proverbial 1%, a maioria das suas almas-gêmeas estariam naqueles 99% sem acesso. Se só 1% das pessoas usasse o serviço, apenas 1% desse 1% encontraria ali a sua alma-gêmea – uma pessoa a cada dez mil.

Os outros 99% daquele 1% (“Nós somos o 0.99%!”) teria um incentivo para trazer mais pessoas ao sistema. Eles poderiam financiar projetos como o One Laptop Per Child (mas com uma vibe mais errada). Empregos como “caixa de mercado” e “policial em Times Square” se tornariam prêmios de altíssimo status, graças ao potencial de contato visual com muitas pessoas diferentes. As pessoas se amontoariam em eventos nas grandes cidades para encontrar o amor – exatamente como já acontece.

Mas mesmo que muitos de nós passassem anos no SoulMateRoulette, e outra penca de pessoas conseguisse empregos com muito contato visual com estranhos, e outros ainda ficassem só esperando pela sorte, apenas uma minoria muito pequena encontraria o amor. O resto de nós estaria fodido.

Considerando o stress e a pressão social, algumas pessoas fingiriam. Elas iriam querer entrar para o clube dos amados, então combinariam com outra pessoa solitária e encenariam todo um ritual que simboliza o encontro do amor eterno. Eles se casariam, esconderiam os problemas do seu relacionamento e lutariam para apresentar uma cara feliz aos amigos e à família. Já pensou que ruim? Ainda bem que isso não acontece na realidade.

No fim das contas, esse mundo de almas-gêmeas únicas e aleatórias é um mundo ainda mais solitário que o nosso. Eu prefiro a visão do Tim Minchin sobre isso:

Link YouTube | Tem legenda, clique no botão

With all my heart and all my mind I know one thing is true:
I have just one life and just one love and, my love, that love is you.
And if it wasn’t for you, baby,
I really think that I would
have somebody else.

Tradução:

Com todo o meu coração e a minha mente eu sei que uma coisa é verdade:
Eu só tenho uma vida e um amor e, meu amor, esse amor é você.
E se não fosse por você, baby,
Eu realmente acho
que eu teria outra pessoa.

Este texto é uma tradução.
Original: Soul Mates, no what-if.xkcd.com 

Randall Munroe

Autor do webcomic <a>xkcd.com</a> e do seu sub-site <a href="http://what-if.xkcd.com/">What If</a>