"Meu amigo não tinha dinheiro para montar o próprio negócio, mas estava apaixonado pela ideia, esse era o propósito dele, era a missão de vida. Ele resolveu começar de qualquer jeito. Cara, quem quer fazer, arruma um jeito. Ele mandou 20 cheques sem fundo pra começar a girar o negócio e hoje está aí, com três lojas."

Escutei essa história no intervalo de uma roda de papo sobre dinheiro que conduzi recentemente, mas enredos parecidos estampam a página principal das maiores publicações de empreendedorismo do país.

Que discurso sedutor – enquanto escrevo esse texto, tento contabilizar a quantidade de palestras sobre empresas de sucesso meteórico que assisti nos últimos tempos (são tantas que até perco a conta).

Vamos admitir: o sucesso do obstinado é uma delícia de tragar. Dá vontade de comprar uma pipoca e um lenço só pra escutar o cara dizendo "eu não deixei planejamento nenhum me parar, porque eu queria muito, de coração, é isso que a gente precisa para empreender: querer de coração".

A gente gosta de acreditar que dá pra levar só no peito, na raça, na coragem, sem precisar esperar, planejar, replanejar, adiar e repensar, porque essa crença afaga nossa mente ansiosa e imediatista.

Vivemos uma época de romantização do caos, é chique empreender no estilo vida loka. Vira livro, vira filme, vira palestra, vende ingresso. E vira estatística também: no Brasil, metade das empresas fecha as portas em até quatro anos de atividade, e eu arriscaria dizer que a maior parte da outra metade vive respirando com o auxílio de aparelhos, lutando por crédito bancário e pagando um rio de juros por conta disso.

Cada caso de sucesso ofusca alguns milhares de casos de fracasso, e alimenta nossa ignorância a respeito do que é, de fato, gerir uma empresa.

É só fazermos o exercício: qual a principal causa do fechamento das empresas? Falta de planejamento e gestão. E por que falta planejamento e gestão? Porque, de alguma forma, somos levados a acreditar que não são irreversivelmente necessários. E por que somos levados a pensar assim? Porque somos bombardeados por histórias de sucesso apaixonado todos os dias.

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"Essa empresa não emplacou porque faltou tesão! Faltou estar realmente apaixonado!". Não, amigo, faltou fluxo de caixa mesmo. Faltou analisar o mercado, faltou coragem e realismo para mudar o modelo de negócio, faltou fazer curso no Sebrae, faltou enfiar a cara numas dúzias de livros.

Muitos fatores contribuem para que esse cenário empreendedor apocalíptico se estabeleça, alguns estão totalmente fora do nosso controle – dificilmente conseguiremos, no curto prazo, reduzir a taxa de juros. Outros não, fazem parte do nosso dia a dia. Somos diretamente responsáveis pelo impacto e repercussão que os casos de sucesso repentinos e acidentais têm, porque eles se alimentam de um dos recursos mais preciosos que possuímos: nossa atenção.

Se endossamos iniciativas sólidas – que normalmente surgem depois de um bocado de trabalho, planejamento e estudo –, se transformamos essas iniciativas benéficas e bem pensadas em referências, se elas passam a ser admiradas pelos que almejam empreender, elas automaticamente passam a moldar nossa cultura. Mudamos nosso norte, e toda a base muda junto.  As empresas meteoro – acasos do mercado, acidentes, agulhas no palheiro – perdem espaço.

Cada like, cada compartilhamento, cada palma que a gente bate, cada minutinho de vida que a gente cede, cada caso que nos move, tudo isso conta.

O ponto negativo disso tudo é que provavelmente o empreendedorismo pé no chão vai vender bem menos ingresso de cinema. Mas tudo bem, né? Tem hora que o que a gente precisa mesmo é esfregar a cara na realidade.

Eduardo Amuri

Autor do livro <a>Dinheiro Sem Medo</a>. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças