"Eu e minha esposa temos por volta de 40 anos. Somos casados há mais de uma década e temos filhos. Vivemos muito bem e nossa família parece comercial de margarina. Somos bem felizes (ou éramos).

Minha esposa é professora desde quando a conheci. Esse ano (2017), no primeiro semestre, ela foi trabalhar em uma escola longe de casa. Foi bem nesse período que ela começou com umas histórias que soaram estranhas para mim, sobre um colega de trabalho, que ele era jovem, trabalhador…

Com o passar do tempo, percebi que ela conversava muito com ele, como dois bons amigos. Porém, quando fala dele muda o olhar, se embaraça nas falas, e, às vezes, baixa a cabeça ou desvia o olhar de mim. Viraram amigos de redes sociais e ela parecia cada vez mais encantada e, ao mesmo tempo, com raiva de mim, sem paciência.

Ela parou de trabalhar lá e tudo tinha voltado ao normal. Até que fui bisbilhotar o WhatsApp dela e vi que tinha voltado a conversar com aquele rapaz. Não tinha nada demais na conversa, mas percebi que ela voltou ao comportamento de antes, mudou de humor novamente, estava estranha e com raiva sem motivo aparente.

Não acho que minha esposa seja traidora, ela tem uma moral muito forte. Mas acho, sinceramente, que ela está apaixonada por aquele rapaz e, como não pode fazer nada com ele por ser casada, se frustra, fica irada e desconta tudo em mim, como seu eu fosse culpado de alguma coisa.

Como conduzo esta situação? Não quero perder a família, mas também não quero ter sócio ou alguém sempre descontando sua raiva em mim."

Caro Desconfiado,

Que bela jornada vocês tem vivido por todos esses anos, não? Quantas crises devem ter surgido nesses altos e baixos que um relacionamento passa, com todos mudando de interesses, vivências, locais de trabalho e aspirações pessoais.

Não é raro que surjam problemas em campos onde um laço amoroso inconscientemente se vulnerabilizou.

Você deve estar se perguntando "será que eu deveria fazer alguma coisa pra ter certeza?"; "será que seria bom conversar melhor sobre o assunto?"; "será que eu precisa me abrir à possibilidade da traição?" ou "será que é melhor jogar a toalha e assumir que não tem mais nada na relação?".

Tudo que falarei aqui se refere a alguém que agiu como uma exceção à regra e não como se sua esposa fosse uma traidora inveterada.

Vamos imaginar que, sim, houve uma traição. Porém, no campo emocional. Afinal, se ela for realmente dura consigo mesma como você diz, talvez nada tenha ultrapassado o campo dos devaneios.

Para a maior parte dos casais que passam por isso, é comum e mais fácil adotar uma perspectiva moralista, pois afaga o coração pensar "essa pessoa cruel está colocando um chifre em mim! Que desrespeito!". Esse pensamento simplifica a situação, nos coloca do lado do bem e a outra pessoa do lado do mal. Nesse contexto, embalamos nossas justificativas numa trouxinha bem endereçada para família e amigos. Porém, não parece ser o seu caso. Você está curioso, fazendo perguntas, tateando o cenário.

Estralar o chicote em cima de si mesmo também não ajuda. Imaginar que a culpa é toda sua, que foi negligente ou pouco romântico acaba não sendo muito útil.

Goste ou não, a monogamia afetiva não é uma sequência binária de ações e também não vem com manual de instruções. Existem muitos percursos emocionais, variáveis internas e externas que podem colaborar para que um casal perca o engajamento e coloque em risco uma história que até então parecia sólida.

A verdade dolorosa é que a fidelidade vai na contramão de uma perspectiva consumista e volúvel que adotamos nos últimos cinquenta anos, na qual homens e mulheres se sentem obrigados a buscar a sua própria felicidade, às vezes de forma impulsiva e egoísta. Também não parece o seu caso. Você considera sua esposa uma rocha sólida.

A apatia dentro da relação

Muitos homens seguem se relacionando como se estivessem em 1900. Existe uma crença danosa de que basta estar ali, morando junto, pagando contas em conjunto e tendo filhos para a fidelidade afetiva estar garantida. Isso pode até não recair em traição sexual, mas está longe de manter a dança da motivação pelo relacionamento estável.

Isso não quer dizer também que é preciso fazer malabarismos para entreter o parceiro como um macaco de circo, mas deixar a inércia conduzir o destino de um relacionamento acreditando no "até que a morte nos separe" é de uma certa  ingenuidade. O relacionamento é como um terreno que precisa ser cultivado, adubado, cuidado. É preciso refrescar a perspectiva, fazer a própria vida evoluir para criar impacto indireto no relacionamento.

A maior parte das pessoas se acostuma a viver uma vida desconectada e distraída dos próprios valores, desejos e sonhos. Isso, associado à uma rotina profissional infeliz, causa um impacto direto no clima emocional do casal. Imagina chegar em casa todo dia e ver uma pessoa ranzinza que só reclama do que faz? Não é de se impressionar a falta de admiração, desejo ou vontade de compartilhar histórias juntos.

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O outro é tão melhor assim?

Descobrir detalhes sobre a traição costuma acalmar uma sede obsessiva por comparações (e o nosso senso de inferioridade). O Ricardão não é necessariamente um gigante, o homem perfeito. Mas talvez seja uma pessoa que aparenta ser entusiasmada pela própria vida. Não é isso que nos encanta em livros, filmes e nos põe adiante?

Nosso amor se alimenta de uma vontade de voar mais alto. Alguém que se arrasta é a antítese disso. Nesse quesito, a rotina distraída e arrastada perde muito em comparação com alguém com essa chama interna.

Então, o que fazer? Restringir o acesso a ela por todo o mundo? Criar uma bolha na qual só vocês dois existam?

Isso com certeza não ajudará em nada o processo de reencantamento. Lembre-se que o que nutre o amor tem alguns ingredientes como surpresa, enlevamento de espírito (ao fazer o outro se sentir melhor), quebra de expectativas, brilho no olho e—bem importante—uma grande dose de liberdade. Portanto, aprisionar sua parceira em culpa, constrangimento moral e comportamento robótico (para acalmar o seu ciúme) não adiantará.

Pergunta honesta: você simboliza o melhor que ela quer ver perto de si? Com isso não quero atribuir nenhuma culpa a você. No entanto, é importante olhar o quadro geral e decifrar qual é a sua posição no tédio que vocês criaram para que qualquer conversa aconteça.

Puxe pela memória o que aproximou vocês, o dia que se deu conta que se apaixonaram. Quais eram as virtudes envolvidas? Agora analise o tipo de pessoa que ela é hoje, se mudaram os paradigmas e valores dela, ou simplesmente o rumo que quer dar à própria vida.

Pensando nisso, a coisa menos importante é você saber se houve uma traição ou não, mas sim se acha que a relação tem consistência para seguir em frente. Sabendo ou não sobre a traição isso muda muito pouco sobre o que você precisa fazer. É sobre a sua vida que precisa refletir, sobre o impacto da relação em sua vida.

A conversa difícil

Com isso em mente você pode puxar uma conversa, sem cobrança. O tom poderia ser do tipo:

"Sabe, eu fiquei me questionando esses dias sobre como estamos seguindo nossa relação. Lembro que nossa história sempre foi marcada por A, B e C e que agora já não me vejo mais empenhado nisso e nem com brilho nos olhos. O maluco é que até já me ocorreram umas vontades estranhas e uma outra pessoa já me brilhou os olhos. Imagino que isso possa ter acontecido com você.

Queria abrir o coração e colocar todas essas coisas na mesa, afinal, estamos juntos nessa e acho que seria muito honesto com tudo o que já vivemos se tivéssemos mais clareza sobre o que queremos daqui para a frente."

Veja, não há uma acusação.

Há abertura de suas próprias fragilidades, da possibilidade de ter uma performance duvidosa. Existe um espaço aberto de empatia sem julgamento. Tudo para que realmente ela se sinta impelida a entender o que se passa com ela.

Pode não parecer, mas nos colocamos numa espiral de confusão emocional em que nem sabemos o que estamos, de fato, fazendo.

O importante é que nada será resolvido da noite para o dia, nenhuma certeza virá dessa conversa, nenhuma raiva ou briga ajudará muito. Pode ser que ela se cale, pode ser que você perca o controle, pode ser que tudo fique nebuloso por um tempo. O importante é que vocês ganharam território para dialogar e encontrar possibilidades efetivas. Até mesmo para chegar a uma conclusão se seguem ou não juntos.

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Nota da edição: a coluna ID está de volta. Ela não é terapia (que deve ser buscada em situações mais delicadas). É apenas um apoio, um incentivo, um caminho, uma provocação, um aconselhamento, uma proposta. Não espere precisão cirúrgica e não condene por generalizações. Sua vida não pode ser resumida em algumas linhas, e minha resposta não abrangerá tudo.

A ideia é que possamos nos comunicar a partir de uma dimensão ampla, de ferocidade saudável. Não enrole ou justifique desnecessariamente, apenas relate sua questão da forma mais honesta possível.

Antes de enviar sua pergunta, leia as outras respostas da coluna ID  e veja se sua questão é parecida com a de outra pessoa. Se ainda assim considerar sua dúvida benéfica, envie para id@papodehomem.com.br. A casa agradece.

Frederico Mattos

Sonhador, psicólogo provocador, é autor do <a>Sobre a vida</a> e dos livros <a href="https://amzn.to/39azDR6">Relacionamento para Leigos"</a> e <a href="https://amzn.to/2BbUMhg">"Como se libertar do ex"</a>. Adora contar e ouvir histórias de vida no instagram <a href="https://instagram.com/fredmattos/">@fredmattos</a>. Nas demais horas cultiva a felicidade