Escrevo estas linhas ainda sob forte impacto dos fatos ocorridos no dia 22/1/10 e do brainstorm gerado por toda uma conjunção de fatores que explico abaixo.

Os fatos

Em mais um tedioso plantão da vida, atendendo milhares de tendinites e lombalgias e preenchendo seus respectivos atestados, eis que chamo mais uma paciente. Ela chega trazendo exames, algo que já não é muito legal. Quando o paciente vem com exames, normalmente é caso de ambulatório: ele não deveria estar numa consulta de emergência. Acaba indo porque sabe que na emergência vai ser atendido no mesmo dia, ao contrário da marcação ambulatorial. Malandragem que prejudica o atendimento ideal.

Já com o pensamento a mil, sou desarmado pela seguinte frase: “Lembra de mim, doutor?”. Atendendo cerca de 50 a 100 pessoas por dia, provavelmente não. Mas era só puxar o histórico dela no computador. Pronto!

Essa paciente foi atendida por mim no primeiro dia deste ano, quando mais uma vez guiado pelas primeiras impressões e pela tediosidade dos diagnósticos mais comuns, achei que era uma tendinite. Tratava-se de uma arrumadeira que estava com forte dor no braço esquerdo. “Tendinite”, pensei logo, e já puxava o receituário quando ela me diz que havia sofrido um trauma. Nesse caso, a radiografia é mandatória. Pedi o exame e a encaminhei para o setor.

radio
É aí que fica a cabeça do rádio, mas infelizmente essa história não é apenas sobre um osso…

Ao receber o exame, não constatei fratura. Porém, o rádio (um dos ossos do antebraço) tinha algo de estranho. Em vez da densidade normal, apresentava cistos no seu interior. E no nível do cotovelo, onde a cabeça deste osso se articula com o osso do braço, permitindo que possamos fazer os movimentos de pronação (colocar a palma da mão para baixo) e supinação (palma da mão para cima), havia algo mais estranho ainda: a cabeça do rádio simplesmente estava deformada e totalmente desconectada do osso do braço. As evidências apontavam que a referida alteração era crônica, de longa data, e não fora ocasionada pelo trauma recente. Inicialmente deduzi uma malformação congênita.

Como ela apresentava muita dor, não havia como examinar adequadamente. Coloquei uma imobilização e a encaminhei ao meu ambulatório, para uma reavaliação na semana seguinte. Mas ela não compareceu e eu esqueci do caso. Uma pena, adoro casos interessantes.

O plano terapêutico até então

Analisando a radiografia, a posição do osso anômalo bloqueava os movimentos do cotovelo da paciente. Ela vivia com o cotovelo dobrado e não conseguia virar a palma da mão. Imaginei que a resseção da cabeça do rádio eliminaria o fator mecânico causador do bloqueio e, com isso, eu conseguiria reconquistar o arco do movimento. Não acho que completamente, pois a lesão era muito antiga e nesses casos sempre fica alguma rigidez articular. Mas isso permitiria um cotovelo indolor e a permitiria pegar a filha no colo, coisa que disse não poder fazer.

Planejei então uma cupulectomia, nome da cirurgia na qual se resseca a cabeça do rádio. Mas precisava que ela comparecesse ao ambulatório para eu solicitar uma tomografia computadorizada, para que eu pudesse analisar melhor e fazer o planejamento operatório. Também pediria os exames pré-operatórios. Finalmente um caso interessante!

Drama

Voltando à consulta de hoje, naturalmente questionei o porquê do não comparecimento. Ela me disse que tivera vários problemas, inclusive com o falecimento recente de sua mãe. Disse a ela que, por estarmos na emergência, eu não tinha o timbrado que me permitiria solicitar os exames e que ela teria que me procurar no ambulatório. Ela havia esquecido o dia do meu ambulatório e voltou na emergência porque estava com muita dor.

Passei medicação, forneci um atestado e novamente encaminhei ao meu ambulatório, para recomeçar o processo. Achei que a consulta estava encerrada…

Confissão

“Doutor, preciso lhe dizer uma coisa”

Assenti e ela prosseguiu:

“Antes de morrer, minha mãe me fez uma confissão. Disse que quando eu era criança, uma vez meu padrasto me bateu com um pedaço de pau justamente no cotovelo esquerdo e que foi isso que causou a lesão.”

Um absurdo. Mas antes que eu pudesse perguntar por que o cotovelo havia ficado desse jeito (afinal, se essa foi a causa da lesão, era perfeitamente tratável)…

pau
Eu avisei que essa história não era sobre ossos…

Bomba atômica

Minha mãe não me levou no hospital porque ficou com medo que pudessem prender meu padrasto”

Ah, meus caros, isso choca até um ogro machista e insensível como eu. Temos aqui então um padrasto que quebra o cotovelo de uma criança e a mãe, para proteger seu homem, sequer provê tratamento à filha.

Por mais que se tente levar o contexto da época do ocorrido, por volta de 1985, quando não havia tanta proteção a mulheres e crianças como há hoje (ainda que insuficiente), aquelas clássicas inseguranças que muita mulher tem sobre ser abandonada pelo companheiro, ou mesmo o famoso clichê “Ele é boa pessoa, tenho certeza que vai mudar”, a situação continua absurda!

Leia também  Exercícios que o mundo esqueceu: o método natural de George Hébert

Resumindo, a criança teve uma lesão óssea que foi negligenciada e transformou-se numa sequela. Não era algo congênito!

Mal sabia a mãe da paciente do sofrimento que isso traria a sua filha. Não digo pela incapacidade física e a consequente dificuldade no trabalho, mas pela próxima confissão da paciente ao doutor aqui…

Esperança

“Doutor, eu vou ao ambulatório sim, quero muito ficar livre dessas dores e voltar a mexer o cotovelo. Mas meu maior sonho é poder pegar minha filha no colo!

O ogro machista sem coração aqui ficou foi sem palavras!

Tenho convicção que o cotovelo dela nunca ficará zero quilômetro, mas alguma coisa pode ser feita ainda. Não prometi muita coisa, até porque tratar sequela é uma caixinha de surpresas. Nos despedimos.

Meu momento atual

Essa história toda acontece justamente num momento conturbado da vida deste que vos fala. Justamente no momento em que procuro alternativas à Medicina, mesmo atualmente sendo dono de uma clínica. Estou formando uma empresa em ramo totalmente distinto e também em breve inicio treinamento em coaching e programação neurolinguística. Pretendo trabalhar com isso futuramente, tanto personal e life coaching, como coaching executivo. Parei de investir na formação médica continuada. Trabalho para me sustentar e pagar minha nova educação.

castaway
Cena do filme Cast Away | A encruzilhada está em qualquer ponto da estrada, basta abrir os olhos

Minha atual profissão me gerou muita coisa boa, especialmente as histórias e experiências de vida, mas uma coisa é fato: nós médicos somos bitolados ao extremo. Há pouca vida fora da Medicina. Uma coisa fundamental, que me levou até onde estou, foi o convívio com o pessoal da equipe PapodeHomem.

Hoje posso dizer que tenho uma visão de estilo e qualidade de vida que 99% dos médicos não possuem, fruto da amizade e convivência com pessoas tão diferentes e de áreas distintas. E o fato de enxergar que qualidade de vida e medicina são coisas que não combinam, na imensa maioria dos casos, me motivou a procurar alternativas. Médico pode ter qualidade de vida, sim, mas quando consegue já está velho demais para aproveitar!

Por causa desse convívio saudável, adquiri novas paixões como marketing, empreendedorismo, educação financeira… A ciência médica é linda, mas essas novas opções me dão um tesão infinitamente maior.

Ontem mesmo no evento de lançamento do livro PapodeHomem no Rio, encontrei um amigo, advogado, que pouco antes de casar fora demitido do escritório que trabalhava. Perguntei o que ele estava fazendo e disse que resolvera trabalhar num antigo sonho, algo nada a ver com o Direito. Altamente inspirador nesse momento!

Mas por que “A última missão”?

Nunca deixarei de ser médico. Apenas vou diminuir o espaço que a Medicina ocupa em minha vida – num prazo de 2 a 3 anos.

Utopicamente, quero ser apenas consultor, especialmente aqui. Não, o Dr. Health não vai morrer tão cedo e segue firme e forte aqui no PdH. Tenho uma clínica que, quando entrei de sócio, passávamos por sérias dificuldades, e juntos, botamos as coisas no azul. Não vou deixar minha clínica.

Quero exercer a Medicina sem as coisas que me deixaram esmorecer. Por isso ela há de se tornar minha atividade secundária, dando lugar ao estilo de vida que almejo. Infelizmente, a compatibilidade é zero.

Justamente nesse momento aparece uma história de uma paciente como essa. Já operei muita gente, já consertei bandido, já ajudei muito a quem precisa, mas sempre encarando isso como parte do ofício. Mas desta vez é diferente.

Promessa

O que farei na Medicina daqui em diante serão ossos do ofício. Mas eu quero fazer a diferença para essa paciente. Após atendê-la, fiquei uns 4 minutos parado, mesmo com outros doentes para ver, perplexo com sua situação. Um ato egoísta de sua mãe lhe privou de uma coisa aparentemente simples.

E decidi: vai ser a minha “última missão” na Medicina. Digo missão de coração mesmo. Vou levar a cabo o seu tratamento. Apesar de não poder garantir sucesso, espero um dia poder vê-la segurando sua filha nos braços.

Não digo “Torçam por mim”, mas torçam por ela! Estou eu aqui cheio de planos egoístas, em contraste a uma mulher simples que quer apenas poder segurar a filha nos braços.

Dr Health (mesmo os ogros tem coração de vez em quando)

Mauricio Garcia

Flamenguista ortodoxo, toca bateria e ama cerveja e mulher (nessa ordem). Nas horas vagas, é médico e o nosso grande Dr. Health.