A prostituição ainda está entalada na garganta do Brasil.
Que moças pobres e sem instrução tenham outra opção de atividade profissional que não seja limpar as latrinas e lavar as cuecas das bem-nascidas, que essa opção inclua tomar posse plena de seus corpos para poder, como diz minha amiga Paula Lee, alugá-los às suas clientes; que, ainda por cima, essa atividade seja perfeitamente legal apesar de ir contra toda a moral cristã, uau, deve ser mesmo difícil de engolir.
Mais ainda, a prostituição foi uma das profissões de fato revolucionadas pela internet, ao permitir que as trabalhadoras do sexo criassem seus próprios sites e escolhessem clientes livremente, diminuindo ou eliminando a necessidade de cafetinas, bordéis ou intermediárias, e tornando-se assim verdadeiras profissionais liberais.
Não estou celebrando a prostituição como carreira. Me parece uma profissão desagradável – mas não mais desagradável do que tantas outras carreiras que também me parecem desagradáveis, humildes como carvoeira e faxineira, e não-humildes como advogada de divórcio e relações públicas.
(O que importa não é qual profissão você escolheria para sua irmã ou filha. Mais sobre isso abaixo.)
Ao manter essas carreiras legalizadas, o governo pode ter uma medida de controle sobre sua prática e dar treino, auxílio e suporte específico às suas profissionais. Além disso, nos países onde a prostituição é proibida, acaba-se gastando precioso tempo e dinheiro, da polícia e dos tribunais, para perseguir e prender as próprias profissionais do sexo – que seriam, de acordo com o espírito da lei, as vítimas da prostituição mas tornam-se na prática as vítimas da justiça, sendo assim duplamente vitimizadas. (Nos Estados Unidos, onde a prostituição é ilegal em quase todos os estados, esse modelo começa a ser questionado.)
Já ouvi muita gente comparando a prostituição ao uso de drogas – uma atividade viciante, da qual geralmente não se pode sair sem intervenção médica e internação prolongada, que destrói o corpo e mata o usuário em pouco tempo! É ofensivo, e olha que quem diz isso são as suas bem-intencionadas defensoras!
Em 2008, na Praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, funcionárias da prefeitura estavam tocaiando as prostitutas, tirando fotos delas e das clientes que as abordavam. Sem poder proibir as meninas de exercer legalmente sua atividade em local público, a equipe do prefeito Eduardo Paes decidiu persegui-las e afugentar suas clientes.
Não sei quanto tempo durou a operação, nem o que aconteceu. Conheço Eduardo Paes há 15 anos, sei que muitas das suas operações duram apenas o tempo no qual as câmeras estão rodando – depois, poof! Mas, em um país um pouco mais civilizado, as prostitutas teriam entrado com uma ação contra a prefeitura.
De qualquer modo, o importante era tirar as prostitutas dali. Elas são uma ameaça a todo um estilo de vida.
As prostitutas, o bicho-papão da classe média
Não podemos expor os pobres pais e filhos de família, que naturalmente não têm auto-controle algum, a tamanha apetitosa e pecaminosa tentação.
Não podemos lembrar às donas-de-casa de meia-idade, mal-amadas e frustradas sexualmente, que a prostituição só existe e só está ali porque homens como o seu marido, que já não transam mais com as próprias esposas, ainda vão atrás de putas e são os principais responsáveis por manter essa profissão viva e próspera.
Não podemos lembrar às jovens da classe média escorchada de impostos, bem alimentadas mas falidas, que elas podem ganhar numa trepada o mesmo salário que o estágio paga em um mês, ainda mais se forem universitárias, falarem inglês e tiverem todos os dentes.
Não podemos lembrar às domésticas que pode valer a pena (e ser mais digno e libertador) transar com uma ou duas pessoas em uma tarde pra ganhar o mesmo valor pelo qual hoje trabalham o mês inteiro, dezoito horas por dia, com folgas em domingos alternados, sem nem poder trazer a namorada evangélica pro seu quartinho sem janela.
A prostituição é de fato um perigo para toda a família. Ela ameaça expor todas as pequenas hipocrisias que nos mantém juntos apesar de tudo. Não é a toa que são todos contra ela. Resta saber como conseguiu ficar legalizada tanto tempo.
E o turismo sexual?
Há de se dar valor às reacionárias direitistas religiosas pequeno-burguesas assumidas. Uma das coisas mais engraçadas dessa turma moderninha e pós-moderna, liberal e liberada, acadêmica e psicanalisada, politicamente correta e relativista, é que são todas muito modernas e coisa e tal, mas só até certo ponto: quando você lhes cutuca um dos seus tabus, reagem como verdadeiros talibãs.
(Nunca esqueço do furor moralista causado, em plena festa de fetiche, todo mundo de couro e máscara, gente sendo pisada e chicoteada pelo chão, por um simples beijo entre duas meninas.)
Como disse meu amigo Alessandro Martins:
Somos muito liberais até o primeiro vislumbre de uma individualidade e de um estilo de vida com o qual não sabemos lidar, principalmente no que diz respeito a pessoas próximas e que supostamente amamos. Nesse momento, até filhos são negados.
Outro dia, uma amiga descolada, pós-doutora em Antropologia e que adora ter seus pés lambidos, moça moderna a toda prova, veio me dizer que estava preparando uma palestra sobre a “questão do turismo sexual”. E eu perguntei:
“‘Questão’?!” Isso não é meio que como falar da ‘Questão Judaica’ ou ‘Questão Negra’, ou seja, um termo que já de cara direciona a discussão?”
“Mas, Alex, o turismo sexual é um grave problema do Brasil de hoje!”
“Hmm. É? Não sabia, não. Por quê?”
Aí ela começou a falar de pedofilia e aliciamento de menores, contando mil casos escabrosos:
“Tem gringo vindo pra cá só pra comer menininhos de oito anos!”
“Sim, mas veja: o problema então não é o turismo sexual, é pedofilia e aliciamento de menores. São coisas completamente diferentes. Ser contra o turismo sexual por causa da pedofilia é como ser contra o sexo por causa dos estupros.”
“Uma coisa é sexo entre pessoas adultas e outra aliciamento de menores,” disse ela.
“Então, vamos discutir a “questão da pedofilia” e a “questão do aliciamento de menores”, que são crimes sérios que devem ser combatidos, e não a “questão do turismo sexual”, senão parece que o problema são os gringos adultos estarem vindo contratar consensualmente os serviços das nossas prostitutas adultas ou, pior, nossas prostitutas estarem seduzindo os pobres gringos.”
“Muita gente começa com os maiores e passa pros menores…”
“Mas será válido criminalizar ou problematizar uma atividade perfeitamente legal, como a prostituição, só porque ela *PODE* levar a uma outra ilegal? Deveríamos então proibir o sexo, porque todo estuprador começa transando consensualmente e só depois começa a estuprar…?”
Turismo sexual é uma coisa, prostituição é outra
Minha amiga, apesar de acadêmica, moderninha e liberal, claramente tem alguma questão mal-resolvida com a prostituição. Independente do que diga ou do que pretenda, ao falar de “questão do turismo sexual” ela está se posicionando não contra a pedofilia ou contra o aliciamento de menores, mas contra nossas profissionais do sexo atenderem pessoas estrangeiras.
Seu argumento bola de neve (“quem começa com um passa pra outro”) é figurinha fácil na boca das piores reacionárias, coringão que serve pra tudo, desde maconheiras que se graduam em cheiradoras até gamers que se tornam ladras de carro. Literalmente, todo mundo que faz uma coisa pode passar a fazer alguma outra coisa: praticamente todo homem que já espancou uma mulher já mamou no peito de outra. A questão é se as duas coisas são relacionadas.
E eu pergunto: coloquemos de lado tanto nosso falso moralismo quanto a falácia bola de neve do turismo sexual, qual é exatamente a diferença qualitativa entre pessoas estrangeiras viajarem ao nosso país pelos serviços das nossas profissionais da cirurgia plástica ou das nossas profissionais do sexo?
Por que um é um orgulho e o outro é “uma questão”?
A objetificação da faxineira
Algumas pessoas criticam a prostituição por objetificar a trabalhadora do sexo.
Eu concordo.
Mas trabalhar fritando hamburguer no McDonald’s ou girando manivela numa linha de produção também objetifica a trabalhadora. Ela, ali, não é nada: só um corpo, contratado por uma soma pífia, para fazer alguns poucos gestos repetidas vezes, sem que ninguém ligue para sua opinião, podendo ser facilmente substituído por outro corpo que realize a mesma tarefa repetitiva.
Quem nos objetifica é o sistema capitalista.
A questão é outra: por que ganhar a vida girando o pulso em uma manivela de fábrica é digno e lindo (“o trabalho enobrece!”), mas girar o pulso masturbando uma cliente é indigno e sujo? Por que temos tanto medo de sexo?
Me lembro do depoimento de uma prostituta:
“Se eu tivesse sabido mais cedo que poderia ganhar a vida fazendo o que já fazia de graça, meu filho nunca teria passado fome.”
Vamos interpelar não as moças que estão fazendo o melhor que podem com as poucas oportunidades que receberam, e sim o sistema capitalista desigual que reserva festas de debutantes para umas e boquetes de cinco reais para outras.
As cartilhas das prostitutas
Muitas brasileiras (e não só as reacionárias direitistas religiosas pequeno-burguesas etc) parecem estar com a prostituição entalada na garganta, como se viver em um país onde essa atividade é legal fosse um incômodo constante, e tentam frequentemente estigmatizá-la ou criminalizá-la pelas bordas. Aceitam muito a contragosto que a prostituição exista, mas querem proibir as meninas de ter sites, de anunciar em jornais, de ficar em pé na rua pegando cliente, de se organizarem coletivamente, de trabalharem em bordéis e mesmo de tirar a roupa pela internet via webcam. Ou seja, poder pode, desde que eu não veja, desde que não possa nada.
(Perdoem uma digressão desse historiador especializado em século XIX, mas isso me faz lembrar a liberdade religiosa no Império. O estado era laico e havia liberdade de religião – mas só privadamente! A cidadã podia ser judia na sua própria casa, mas nada de ter uma sinagoga com letreiro em hebraico na porta! Seu direito de praticar o judaísmo era garantido pela Constituição de 1824, imagina!, nosso império era democrático!, mas como *todos* os registros de nascimento e morte eram feitos pela Igreja Católica, que também controlava quase todos os cemitérios, a pessoa judia não dispunha de uma série de documentos cuja falta o impedia, entre outras coisas, de trabalhar pro governo ou ser eleita para cargos públicos. Aliás, essa cidadã brasileira judia – cuja liberdade religiosa era constitucionalmente garantida! – não podia nem mesmo morrer, pois o cemitério católico não a aceitaria, a lei não permitia que fosse enterrada no quintal e a família quase nunca tinha dinheiro para enviar o corpo até o cemitério laico mais próximo, muitas vezes a milhares de quilômetros de distância, somente em algumas grandes cidades. Assim é fácil garantir a liberdade de religião, né?)
Quando o Ministério da Saúde faz campanhas para informar as garotas de programa sobre doenças venéreas, ou quando o Ministério do Trabalho produz cartilhas detalhando as atribuições profissionais das prostitutas em seu catálogo oficial de ocupações, a grande imprensa sempre noticia o fato como se fosse uma grande piada de mau-gosto ou alguma bizarrice burocrática.
As cartilhas, por exemplo, acabaram sendo tiradas do ar, por estimular a prostituição (que não seria um trabalho honesto!) e por ferir a dignidade da mulher. A oposição conservadora, de pau duro por mais um “escândalo”, aproveitou até pra meter o Lula no meio.
Faz pouco tempo, em junho de 2013, o Ministério da Saúde lançou uma campanha educativa para reduzir o estigma da prostituição. A campanha também celebrava o dia internacional da prostituta e contava com frases reais, criadas pelas próprias prostitutas durante um workshop. Uma das frases gerou polêmica e explodiu nas redes sociais no mesmo dia em que a campanha foi lançada:
Sou feliz sendo prostituta.
Aí, já é demais, né? Vivas e saudáveis, ok. Legalizadas, até aturamos. Mas se as prostitutas quiserem ousar ser e se dizer felizes, então a sociedade brasileira vem abaixo. A peça foi retirada do ar no mesmo dia, o responsável foi demitido e o ministro teve que dar explicações:
Enquanto for ministro da Saúde do país a assinatura do Ministério da Saúde não vai entrar em um cartaz que diz, “Sou feliz sendo prostituta”. Porque não cabe ao Ministério da Saúde priorizar nas suas campanhas de saúde algo que é uma percepção individual. A frase não é nem dialogando com o fato de se existe prostituta feliz ou se existe prostituta triste. A frase é inversa, inclusive, fala que o motivo da felicidade é ser prostituta. Acho que há varias prostitutas que são felizes e várias outras prostitutas que são tristes. Como qualquer outra pessoa, prostituta fica triste e fica feliz. … E aqui não tem nenhum conteúdo moral. Tem o fato de que não cabe ao Ministério da Saúde entrar na ala do que é percepção individual. E as prostitutas que não são felizes sendo prostitutas? Eu não vou dialogar com elas? Qual a mensagem que eu estou passando de proteção do corpo, de cuidado ao corpo?
(Quando ele diz que sua decisão não tem conteúdo moral, como não lembrar do texto “você é aquilo que diz não ser“?)
Na verdade, considerando essa tamanha reação social, chega a ser espantoso a manutenção dessa lei por parte da burocracia estatal. Mas não é nada que um punhado de deputados e senadores evangélicos não resolva.
A profissão da minha irmã
Sempre que escrevo sobre prostituição, escuto uma variação do comentário abaixo:
“Acabo de perceber o qt sou moralista… Me pareceu extremamente absurdo alguem gostar da ideia de ter fama de produzir boas prostitutas. Devo ser mto conservador para logo imaginar se blogueiros tem mães,irmãs ou qualquer outra mulher que amem. Hoje se diz “sou brasileiro” e ouve “carnaval, ronaldinho, kaka”… vai ser legal ouvir “samba, ronaldinho, putas quentes” Ou sera soh a busca da fama virtual que parece ser a moda da decada? Bota a mãe em site gringo anunciando os serviços, ai sim vai ser possivel acreditar nessas ideias alienadas de que turismo sexual eh bom. E se nao pensa isso entao redigiu mto mal o texto.”
Pra começar, sim, a pessoa que fez o comentário é muito moralista e conservadora.
Mas a resposta à sua provocação é bastante óbvia: não, eu não gostaria que minha filha fosse prostituta, mas também não gostaria que fosse enfermeira, faxineira, engenheira, seringueira, advogada, pagodeira ou pianista.
A diferença é isso não quer dizer que eu ache que essas atividades sejam imorais, repreensíveis e que devam ser proibidas.
O mundo seria um lugar bastante inviável se as pessoas quisessem criminalizar todas as profissões que não desejassem para suas mães!
Onde você guarda seu moralismo?
Uma vez, me perguntaram qual era minha opinião sobre quem pagava por sexo. E respondi:
Pra mim, quem paga por sexo é exatamente igual a quem paga por comida ao invés de caçar, plantar e preparar a sua.
Para terminar
O lindo, forte, belíssimo prefácio do romance Os Miseráveis, de Victor Hugo:
Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade,um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis.
Duas perguntas sobre a prostituição
Por que as trabalhadoras do sexo são tratadas como decaídas, incapazes de falar por si mesmas, ignoradas quando falam, e invisíveis enquanto membros da sociedade?
Por que a maioria das iniciativas governamentais tem como foco controlar e regulamentar essas pessoas estigmatizadas ao invés de reconhecer sua autonomia?
Os textos abaixo, todos em inglês, infelizmente, dão prosseguimento à essa discussão interessante e necessária:
- Prostitution law and the death of whores
- Why Is Prostitution Illegal?
- Porn vs. Prostitution: Why is it legal to pay someone for sex on camera?
- Hookers.com: How e-commerce is transforming the oldest profession
- Why are we imprisoning prostitutes?
Saber perguntar & saber ouvir, saber ler & saber se abrir
Conhecer de verdade as outras pessoas, conversar com elas, ler seus textos, ouvir suas histórias, é a melhor maneira de entrar em contato com a humanidade dessas pessoas e de extirpar seus próprios preconceitos.
Sempre que alguém me chega com o discurso anti-prostituição, eu pergunto: quantas amigas prostitutas você têm? Você conhece as vidas, os dilemas, as questões dessas pessoas? De onde está tirando suas informações?
Então, para vocês começarem o processo de se abrir para o mundo onde existem pessoas que são prostitutas, pessoas que não são nem monstras, nem decaídas, nem bichos-papões, sugiro acompanhar a Monique Prada. Mulher, brasileira, cidadã, inteligente, prostituta. Ela já escreveu um texto lindo aqui para o Papodehomem (“As prostitutas e o direito de existir“) e também tem site, facebook, twitter, tumblr & blog.
As prostitutas são gente como eu e você: cidadãs, inteligentes, articuladas. Elas dispõem de entidades de classe, fundadas e organizadas por elas, que lutam por seus direitos e por seus interesses.
Ninguém precisa perder o sono divagando sobre como “resolver a questão das prostitutas”, ou sobre qual é a melhor postura pessoal e governamental em relação às prostitutas, ou sobre como tratá-las, ou sobre como ajudá-las.
Basta perguntar a elas.
Comecem por aqui: Rede Brasileira de Prostitutas
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Para chamar atenção para o sexismo da nossa língua, esse texto usa o feminino como gênero neutro.
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.