Quando a gente vence, solta o grito entalado na garganta. E nem sempre o grito é bonito. Isso é bem óbvio no futebol, que historicamente envolve variações de “chupa porcada/bambi/urubu”.

Mas não é só nos estádios ou na frente da TV que temos como primeiro impulso de “comemoração” fazer troça do adversário*. Mesmo quando são causas progressistas justas.

Isso são exemplos dos últimos dias. Mas, em qualquer evento, perceba quão comuns são expressões como “O choro é livre”, “chola mais”, “chora haters”, “chupa”, “toma essa, reaças/petralhas”, “isso foi um tapa na cara…” ou os mais antigos “essa é pra você…” ou “quero ver o que fulano vai dizer agora”.

O pior é que elas aparecem quando deveríamos estar, sobretudo, “felizes” por nós mesmos, ou por toda a sociedade.

#lovewins ≠ #choroelivre

Nos últimos dias históricos, após a decisão da Suprema Corte dos EUA de liberar o casamento gay para todos os estados do país, vi muitas variações disso no meu Facebook povoado por brasileiros. Os americanos, mais diretamente afetados, reagiram diferente, num primeiro impulso.

O sentimento que percebi aqui nos EUA, onde moro há seis meses, era primordialmente de comemoração, e não de desforra.

Fui ao histórico Stonewall Inn com a minha esposa depois da decisão, na sexta, e pelo caminho via-se a cidade em festa — fosse com bandeiras e buzinas, ou de forma mais discreta, com adesivos nas lojas. Era pura felicidade.

Lembro disso não para dizer que a sociedade americana é especialmente mais “civilizada” ou “tolerante” que a brasileira. Pela última pesquisa do Pew sobre o assunto, em 2014, pelo menos 40% da população dos EUA se diz contra leis que permitem o casamento gay. Em alguns grupos, como entre protestantes evangélicos ou batistas, o apoio à causa LGBT é até mais baixa que a média do Brasil. Há uma penca de pastores que são tão ou mais estridentes contra a decisão (os donos da Westboro Baptist Churchprovavelmente seriam presos no Brasil) — isso para não falar em candidatos presidenciais republicanos.

Mas a diferença é a seguinte: os haters foram uma nota de rodapé nas comemorações. Seja na grande mídia, no Twitter, ou nos cartazes. Na reação das celebridades militantes da causa, a mensagem uniforme é que o amor venceu, e não que “o choro é livre”.

Os EUA tem milhões de defeitos. Mas, nessa bandeira especificamente, me parece que a ênfase foi em lembrar que os contra e os a favor do casamento igualitário são um povo só, e a decisão vale para todos. Tanto no discurso de Obama quanto na decisão da Suprema Corte, há um reconhecimento de que os “perdedores” ainda estão aí, e não podemos tratá-los como perdedores. Veja o discurso do Obama, neste momento especificamente:

Eu sei que americanos bem intencionados continuam tendo uma gama de visões diferentes sobre essa questão. A oposição, em alguns casos, tem se baseado em crenças arraigadas. Todos nós que saúdam as notícias de hoje temos de ter esse fato em mente e reconhecer pontos de vista diferentes, ao mesmo tempo que reverenciamos o nosso profundo compromisso com a liberdade religiosa.

Mas o dia de hoje também nos dá esperança que em muitas questões em que nos digladiamos, às vezes de maneira dolorosa, mudanças reais são possíveis. Uma mudança nos corações e mentes é possível. E aqueles que chegaram tão longe na jornada pela igualdade têm a responsabilidade de estender a mão e ajudar outros a se juntarem a eles, porque apesar de todas as nossas diferenças, nós somos um só povo, mais forte juntos do que jamais poderíamos sozinhos. Essa tem sido a nossa história.

E no texto do juiz Kennedy, que escreveu a belíssima decisão da Suprema Corte:

“To them [who oppose gay marriage], it would demean a timeless institution if the concept and lawful status of marriage were extended to two persons of the same sex. Marriage, in their view, is by its nature a gender-differentiated union of man and woman. This view long has been held — and continues to be held — in good faith by reasonable and sincere people here and through- out the world.

The petitioners acknowledge this history but contend that these cases cannot end there. Were their intent to demean the revered idea and reality of marriage, the petitioners’ claims would be of a different order. But that is neither their purpose nor their submission. To the contrary, it is the enduring importance of marriage that underlies the petitioners’ contentions.

Não é mais elegante assim? Comemorar, lembrando de quem pensa diferente, mas sem xingá-los?

“Políticos precisam ser políticos”, você pode dizer. Mas eu acho que não faria mal a ninguém aqui se fôssemos todos mais políticos. O que Obama e Kennedy tentam aqui é não alienar as pessoas que eram a favor da causa “perdedora”, justamente explicando que entendem de onde elas vêm e que elas não “perderam”. Mas a sociedade, e o amor, venceram.

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O voto foi apertado, 5×4 (contra os 10×0 do STF no Brasil, em 2011). Mas outra parte da elegância na vitória, que reclamo que falta a muitos compatriotas, é tentar entender o mérito do voto contrário. E o voto dos juízes Scalia e Roberts, por exemplo, que foram contrários à união igualitária, têm uma certa lógica. Mesmo um editor de um site progressista pode reconhecer isso, como fez Ezra Klein no Vox.

Sinto muita falta desse tipo de comportamento, e acho que ele diz muito sobre nossos instintos agressivos no Brasil, de privilegiar o confronto como forma única de resolver conflitos.

Mas acho que a gente precisa construir mais pontes para avançar mais pautas. É brega, mas é sério.

#pontes

Eu entendo que os meus amigos que gritaram o “chora mais” são bem-intencionados, no sentido de quererem que a “causa certa” seja vencedora. 

Os argumentos usados pelos contrários ao casamento igualitário podem ser, como Obama disse, fundamentados em tradições e crenças religiosas legítimas. Mas a história recente mostra que não há o que “temer” ao expandir os direitos civis a um grupo historicamente oprimido.

E entendo também o argumento a favor da comemoração raivosa no Brasil de que o “conservadorismo está crescendo”. E que, portanto, precisamos lembrar disso, estar vigilante, “enfrentar”*. E, imagino, estão todos só mirando nos “grandes vilões”, e não em todo um grupo demográfico.

A questão é: quem estamos enfrentando exatamente? Ou melhor: qual é o nosso objetivo?

A lógica do “choro é livre” faz sentido no futebol, porque aprendi há muito tempo que não dá pra racionalizar paixões, e nenhum corintiano acha que deveria arregimentar alviverdes para a Gaviões. (Ainda que ache que dê para separar adversários de inimigos, mas isso é outro papo.)

Mas em questões políticas, eu acho que já está na hora de a gente despertar e ver que essa tática de xingar o outro, por mais boçal que a opinião do outro possa parecer, não faz a gente avançar, especialmente após vencer algumas batalhas. É claro que você vai conseguir ganhar likes e comentários encorajadores ao dar um “fatality” retórico no oponente. Mas no médio e longo prazo, a gente precisa de bem mais que isso.

Então, de novo: qual é o nosso objetivo?

Só para ficar em duas bandeiras que me são caras e que obtiveram “vitórias” recentes: na questão LGBT, bem mais do que aprovar novas leis no Brasil (estávamos até à frente dos EUA), precisamos educar a sociedade sobre as questões de gênero, algo bem mais complexo que aprovar uma lei. 

Na mobilidade urbana, precisamos convencer pessoas de que a ênfase no carro não é a melhor pra fazer as pessoas chegarem melhor e mais rápido onde querem. Mas precisamos reconhecer que muitas reclamações sobre a bicicleta são mais que legítimas também.

As conquistas recentes estão longe de garantir a vitória final. Não estamos brigando contra espantalhos, ou idiotas escolhidos a dedo. Estamos brigando por uma vida melhor para toda a sociedade. Para isso, precisamos chegar a pontos comuns com mais pessoas

Então, de que forma um prefeito dizer “um coxinha reclamou da ciclovia” ajuda a convencer a população que bicicletas podem ser importantes para a mobilidade urbana? Como o “vai procurar uma rola, Malafaia?” fará com que mais evangélicos entendam que o casamento igualitário não é uma imposição da sociedade ao seu modo de ver o mundo, mas simplesmente igualdade para todos?

Seria bom se fôssemos mais pragmáticos na hora de entrarmos em lutas ideológicas, e parar de pregar apenas para os convertidos. Ou, veja que doido, tentar até ouvir algumas das preocupações do outro lado — simplesmente reconhecer a existência delas como fizeram Kennedy e Obama, sem juntar um “obscurantista” no meio, já é um grande avanço.

Mas aí eu vejo coisas assim:


Essa é uma das páginas com quem eu compartilho diversas bandeiras. Mas por que achar que isso é ok? E não só eles. Leio os comentários. Os mais populares são de revolta contra a “censura” do Facebook. Há uma enormidade de curtidas sobre generalizações grotescas sobre evangélicos. E aí tenho poucas esperanças de ver algo mudando.

Porque a história nos ensina que só podemos esperar coisas terríveis quando criamos ou aumentamos as distinções entre nós e “os outros”. E nos últimos anos estamos criando vários “outros”, e jogando definições cada vez mais genéricas sobre o que é o outro. 

De tucano para coxinha, pra reaça, pra fascista, golpista, “dodói” e inimigo do país é um pulo. (E do outro lado, quando “de esquerda” vira esquerdopata e petista vira “petralha”, o inimigo está pintado, como bandido doente.)

Mas bem, se estamos mesmo do lado certo, acho que podemos tentar fazer um pouco mais e melhor. Parar de dar holofote aos malucos (mesmo que para expor as maluquices), pra começar. E depois diminuir os ataques pessoais, mesmo em momentos de vitória, onde queremos extravasar. 

Se a gente conseguir explicar as nossas causas sem jogar pedra no coleguinha, talvez tenhamos mais sucesso. Esse pessoal aqui fez isso durante anos, e parece que está dando certo.

PS: Tenho bem mais a dizer sobre “ativismo de resultados”, militância não-violenta e que tais. Mas acho que isso é um início de conversa. Se o que escrevi aqui te deixou inclinado a pensar ou responder, escreva aí que leio tudo. =)


Nota editorial: texto publicado originalmente no Medium de Pedro Burgos, que, aliás, recomendamos seguir. Textos excelentes por lá.

Pedro Burgos

Já escreveu para um monte de revistas, como Superinteressante, Galileu, Exame e VIP, e passou 3 anos como editor-chefe do Gizmodo Brasil. Atualmente, prefere compartilhar artigos conversando ao vivo, mas também seleciona boas leituras para estranhos na Newsletter do <a>Oene</a>. Lançou este ano seu primeiro livro