É comum que chegue mensagens nas redes do PdH pedindo referências de trabalhos com masculinidades. São estudantes desenvolvendo TCC, homens que querem começar um grupo de homens e outros interessados em saber mais sobre o tema.
Muitos, inclusive, contam que nos veem como uma referência. Por um lado é muito lisonjeiro saber que o nosso trabalho tem ajudado o tema chegar em mais pessoas e que isso nos coloque como referência.
Por outro lado, para nós do PdH, também é da maior importância que as pessoas conheçam aqueles que vieram antes de nós, assim como outros trabalhos e referências que estão sendo feitos atualmente e que dão sustentação para o nosso conteúdo.
O portal foi criado em 2007, mas nos anos 1990 havia professores, professoras, pesquisadores e ativistas que já estavam estudando questões de gênero e trabalhando com grupos de com homens para abrir portas a masculinidades menos presa à "caixa do homem".
Queremos que o nosso portal possa crescer como um "ponto de referência", um farol que ilumina várias rotas de conhecimentos que vão muito além do nosso trabalho. Queremos falar sobre masculinidades apresentando trabalhos anteriores, pesquisas científicas, saberes comunitários e tudo isso de um jeito acessível e compreensível para qualquer um que se interesse.
E qual nosso plano para isso?
Além do trabalho que já fazemos, queremos também trazer entrevistas e grandes textos explicativos sobre o trabalho de nomes importantes para a transformação das masculinidades.
Vamos ao primeiro deles!
A referência de hoje é: Benedito Medrado
Benedito Medrado é uma das principais referências quando o tema é trabalhos com homens e sobre masculinidades no Brasil.
Formado em psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, Benedito é também professor, doutor em psicologia social e pesquisador do GEMA (o Núcleo Feminista em Gênero e Masculinidades da UFPE), coordenando e colaborando com projetos nacionais e internacionais sobre masculinidades.
Mapeamento "Homens do Brasil 2020"
Em 2020, o Gema/UFPE, junto do Instituto PAPAI, IFF/Fiocruz, UFPA, UFMT e Margens/UFSC se articularam para realizar uma pesquisa inédita: mapear todos os trabalhos com homens que estejam sendo feitos no Brasil, seja focando na saúde do homem, paternidade, diversidade sexual, enfrentamento da violência de gênero, arte cultura, entre outras possibilidades.
Este mapeamento ainda está em andamento e será da maior importância para entender o alcance e extensão dos trabalhos com homens e masculinidades além de permitir novas articulações.
* * *
Não vamos nos alongar em ostentar o currículo do Profº Drº B. Medrado, porque ao longo da entrevista ele mesmo vai falar, de um jeito muito mais interessante, sobre sua trajetória e sobre alguns pontos importantes do tema.
Índice
- O trabalho com masculinidades é algo novo ou recente? Quando começou?
- O que as transformações das masculinidades tem a ver com o feminismo?
- Os anos 1990 e a estruturação do trabalho com homens
- Benedito e a fundação de projetos nacionais
- Reunindo todos os trabalhos sobre masculinidades que tem sido desenvolvidos nacionalmente
- Estamos vendo florescer novas masculinidades?
- Criando uma coalizão internacional entre trabalhos sobre masculinidades
- Dos anos 1990 para 2020, o que mudou em relação aos trabalhos com masculinidades?
- A interseccionalidade em debate
- Contradição entre privação e privilégio
- Podemos dizer que existe um movimento de transformação dos homens?
- Os encontros virtuais podem potencializar o movimento?
- No trabalho com masculinidades, como você tem visto a intensificação do conservadorismo?
- Quais os principais desafios de expandir o trabalho com masculinidades hoje?
- Como você vê todo o trabalho que você realizou nos últimos 30 anos?
- Qual o sonho para continuidade dos trabalhos com homens e masculinidades?
- Para conhecer os trabalhos acadêmicos de Benedito Medrado
Apresento a você agora, Benedito Medrado:
O trabalho com masculinidades é algo novo ou recente? Quando começou?
Pensar, estudar e refletir sobre os padrões de masculinidades não é um "modismo" recente. O tema vem sido estudado e trabalhado há décadas e Benedito conta como sua trajetória se mescla à história deste movimento.
"A minha trajetória nesse campo [estudo das masculinidades] coincide também com uma mudança da trajetória do próprio campo.
Intervenções com homens existem a mais de 30 anos (se você for pensar em atividades terapêuticas e atividades de grupos oferecidas em clínicas privadas em geral), particularmente no eixo sul-sudeste com psicoterapeutas e psicanalistas que trabalhavam com homens muito na perspectiva de uma demanda que vinha na clínica [de psicologia].
A demanda vinha da parte de alguns homens que se sentiam incomodados com a opressão que o modelo de masculinidade exercia na vida privada deles: na subjetividade, nas formas como ele lidava com o mundo e o os sofrimentos decorrente disso.
O trabalho com homens era muito associado ao que a gente poderia chamar de uma certa crise, não das masculinidades, mas dos homens em relação ao modelo de masculinidade. Se a gente for pensar na mídia, por exemplo, é na década de 80 que já começa discussão sobre novos modelos de homem, mas muito na perspectiva individual.
Há 30 anos atrás, era uma experiência clínica, pessoal, particular, de um certo sofrimento relacionado a um certo modelo social que determinava o como deveriam ser os homens. Naquele momento, inclusive, isso acontecia quase como um reflexo do deslocamento que aconteceu em relação a posição das mulheres na sociedade.
O que as transformações das masculinidades tem a ver com o feminismo?
"O feminismo é o movimento social que inaugura essa discussão de feminilidade e consequentemente de masculinidade, como contraponto.
De algum modo, se as mulheres saíram da casa, os homens passaram também a ter de repensar os seus lugares.
O movimento feminista quebra o lugar das mulheres como sendo o centro doméstico/privado, pensando que as mulheres poderiam também ocupar a ordem pública como lugares de poder. Quase como consequência deste movimento os homens passam também a rever os seus lugares.
No meu caso, quando eu começo a me aproximar desta temática [masculinidades] é por duas vias: eu entrei no mestrado ( na PUC-SP) em 1994. E em 1994, em Cairo, houve um evento internacional da ONU que foi uma conferência de população e desenvolvimento.
Em 1995 acontece a Conferência Internacional da Mulher, que foi em Pequim. Estes dois evento promoveram uma discussão que é de outra ordem.
Enquanto antes (final da década de 1980 começo da década de 1990) se pensava muito os homens a partir da experiência clínica, privava, a partir de 1995 a Organização das Nações Unidas vai dizer algo assim: 'olha precisamos pensar nos homens e nas masculinidades a partir de uma dimensão pública, não só da dimensão privada individual.'
Por exemplo, a gente tinha um número grande de casos naquela época de pessoas infectadas com HIV e ai os trabalhos todos de prevenção eram feito com as mulheres, raramente se trabalhava com os homens. Quando se trabalhava com os homens era apenas com os homens considerados homossexuais ou gays.
Ao mesmo tempo, outras questões relacionadas a saúde reprodutiva (planejamento familiar, a possibilidade do direito de decidir sobre a vida reprodutiva) era uma coisa que só se conversava com as mulheres.
Na conferência de 1995, a ONU começa a abrir o espaço para dialogar: naquele momento você tem várias representações de diferentes países (tanto dos governos quanto da sociedade civil) dizendo que a gente precisava pensar também formas de dialogar com os homens.
Pensando em saúde reprodutiva, por exemplo, se uma mulher tem a capacidade de reprodução que é cíclica (a cada mês é uma menstruação e se inicia um ciclo de possibilidade de reprodução) com os homens, não. Os homens potencialmente teriam possibilidade de se reproduzir a cada transa. A pergunta que se fazia era:
Como é que a gente não conversa com esse sujeito?"
Os anos 1990 e a estruturação do trabalho com homens
Considerando as discussões colocadas pelas conferências internacionais, como isto impacta o movimento de transformação dos homens?
"A ECOS (uma organização não governamental que trabalha em São Paulo no campo da sexualidade), em 1996, monta um grupo dentro que era um grupo de estudos sobre sexualidade masculina e paternidade.
Então ela trazia uma possibilidade da gente pensar coletivamente essas questões relacionadas aos homens, não só a partir das iniciativas privadas, de clínica e psicologia, mas a partir de uma perspectiva político social. Era um grupo de pessoas que estavam interessadas em pensar, estudar e em propor ações relacionadas às masculinidades.
Em 1998 a gente lançou um livro, produto deste grupo, que é o Homens e Masculinidades: outras palavras e este livro foi lançado em um evento que foi o primeiro encontro no Brasil de Homens e masculinidades dentro dessa perspectiva mais política e pensando tanto o privado quanto a dimensão pública.
Também neste evento, a gente lançou um livro e lançou um vídeo que era "homem.com.h" que também está disponível na internet. No vídeo era um homem que falava sobre essa crise relacionada a um modelo de masculinidade e que estava necessitando de alterações de diferentes ordens: da cultura, dos símbolos, mudanças mais amplas.
As pequenas revoluções começam com as pessoas, mas as grandes revoluções não param ai, tanto que as mulheres no movimento feminista começaram com o grupo de reflexão e ampliaram: começaram a perceber que havia um ponto de partida que continua sendo muito importante — a questão do empoderamento, da reflexão crítica das mulheres — mas que este deve ser o ponto de partida e não de chegada, por isso que elas foram pensar a inserção das mulheres no legislativo, no executivo, nos lugares de poder de um modo geral.
Quando eu começo a trabalhar neste campo, estava fervilhando esta discussão, então toda a minha trajetória acabou se estruturando a partir desta leitura, que tem uma herança no feminismo. A partir daí a gente passa a desenvolver várias ações."
Benedito e a fundação de projetos nacionais
"Em 1997 então, junto com o Jorge Lyra a gente fundou o Instituto Papai, que é uma ONG daqui de Recife que tem inserção nacional e internacional porque faz parte de uma rede Latino Americana que trabalha com homens e masculinidades.
O Instituto também faz parte de uma rede que chama MenEngage, que é uma representação de uma rede global que discute também o trabalho com os homens.
Dentro do Instituto PAPAI, em 1997, o principal trabalho era sobre paternidade na adolescência, mas tinham mais outros projetos articulados. Eram os 4 eixos temáticos do projetos:
- Sobre violência de gênero
- Saúde do homem
- Sobre diversidade sexual
- Sobre paternidade.
Em 2004 eu entrei para o corpo docente da Universidade Federal de Pernambuco e a partir de então eu comecei a ampliar o trabalho de pesquisa que a gente já fazia no Instituto PAPAI, mas que na universidade, através do grupo de pesquisa que é o GEMA (Grupo de estudos feministas de gênero e masculinidades) a gente acabou levando essa discussão a partir de projetos de pesquisa e de extensão, também.
Minha formação é em psicologia originalmente, e minha especialização é em psicologia social. Então as ações que a gente faz no Instituto PAPAI até hoje (Hoje eu não sou mais funcionário, me tornei voluntário mas continuo colaborando com o trabalho dele) é baseado no tripé pesquisa-formação-ações comunitárias.
Nas ações comunitárias a gente tem esse trabalho voltado para os homens através de grupos reflexivos, político-pedagógicos e de abordagem psicoterapêutica."
Reunindo todos os trabalhos sobre masculinidades que tem sido desenvolvidos nacionalmente
"O mapeamento "Homens do Brasil 2020" vem um pouco nessa perspectiva de pensar quais são as iniciativas que existem hoje, em 2020 no Brasil, considerando pesquisa com homens e sobre masculinidades em diferentes abordagens."
O levantamento estabelece 4 principais linhas de trabalhos com homens que serão mapeados:
- Pesquisa com homens e sobre masculinidades em diferentes abordagens
- Formação e capacitação para trabalho com homens
- Linhas de intervenção direta em campanhas comunitárias ou políticas públicas, por exemplo.
- Arte e cultura: produção de representações artísticas com literatura, música e outros, ou de uso da arte como forma de unir homens e repensar as masculinidades – como grupos de crochê entre homens e outras atividades.
"Na questão da arte e cultura, é impressionante como cresceu a produção das representações: tem desde produção literária, quanto por exemplo, oficinas de crochê pra homens.
Produzir a arte nessa via é também o que eu chamo de produzir as pequenas revoluções, que vão se juntando num campo maior de tensionamento e de produção de o que eu vou chamar de 'outras masculinidades'."
Estamos vendo florescer novas masculinidades?
"Eu não chamo de 'novas', porque muitas vezes elas já estavam aqui, a gente é que não via, né? Então dizer que é 'nova masculinidade', isso a gente falava na década de 1980…
Na minha produção de mestrado eu analisei mídia e masculinidade. E a propaganda na década de 1970, nos EUA, já começa a trazer fortemente os homens para o cenário da cozinha. Que é quando as mulheres começam a sair de casa, vai descolando este lugar e os homens tem que ir pra cozinha.
Este é o período que tem maior crescimento da tecnologia na cozinha e não é por acaso. E ai, nas propagandas, começam a aparecer essas associações das tecnologias com os homens na cozinha.
No Brasil as propagandas começam a mudar muito fortemente na década de 1980. Tem o Gelol que trouxe aquela propaganda 'não basta ser pai, tem que participar' enfatizando a ideia da propaganda masculina no cuidado."
Criando uma coalizão internacional entre trabalhos sobre masculinidades
"O MenEngage começou no Brasil a partir de uma iniciativa de 4 organizações: Instituto PAPAI, Instituto Promundo, ECOS, e uma organização Mexicana que chama Salud Y Genero.
Essas quatro organizações montaram um material voltado para homens (jovens particularmente) em temas relacionados a paternidade, saúde mental, HIV, saúde reprodutiva e violências.
Esses eram os 5 temas e a gente produziu 5 manuais e um vídeo para poder facilitar o trabalho educativo. A partir deste material a gente começou a fazer formação e capacitação em diferente países.
Começou no Brasil e depois a gente foi levando para outros países. A coordenação deste projeto era feita pelo Instituto Promundo, a partir do Gary Barker, que é um norte americano (a família dele é brasileira e hoje ele mora nos EUA). Hoje ele está na sede do Promundo, que eles abriram depois, em Washington, EUA.
Naquela época estes 4 institutos começaram a fazer capacitações. A gente foi pra América do Sul, depois para América Central (Jamaica), ai fomos pra região asiática. Trabalhamos na Índia e começamos a fazer trabalhos em alguns países africanos.
Esse processo de capacitação foi gerando o desejo na gente de gerar uma rede que mais do que apenas desenvolver material educativo, a gente pudesse criar de fato um espaço que pudesse ser uma rede de encontro entre diferentes experiências
Em 2002 a gente organizou um encontro global no Rio de Janeiro (que foi exatamente com as primeiras pessoas que estavam pensando estas questões) e de lá pra cá esta rede foi se ampliando, crescendo, e hoje tem representações em diferentes países. No total são 80 países e a central da rede está nos EUA. Eu sou o coordenador nacional da MenEngage no Brasil.
Como ficou uma estrutura muito grande, a gente trabalha também com as regionais. Eu faço parte da regional Brasil que integra a América Latina e o MenEngage Global."
Dos anos 1990 para 2020, o que mudou em relação aos trabalhos com masculinidades?
"O que há de comum é a possibilidade de escuta dos homens. Ainda hoje, infelizmente, a gente tem dificuldade e a nossa dificuldade não é só a da escuta, mas também a dificuldade da fala. Porque a fala estimulada aos homens é a fala objetiva, o trabalho, a fala mais operativa do que reflexiva.
Então, quando a gente abre um espaço os homens dizem: 'até que enfim a gente vai poder falar sobre isso' ou 'ah essa é a primeira vez que eu estou falando sobre isso". Isso mobiliza muito os homens.
Mesmo sendo uma coisa que já estamos fazendo há tanto tempo, ainda tem um caráter de novidade, o que significa que culturalmente a gente continua produzindo fórmulas de socializar os homens que afirmam esse modelo central de masculinidade. "
A intersecionalidade em debate
"O que tem de novo é que os grupos estão começando a prestar atenção e entender que é necessário dialogar para além do próprio umbigo. Infelizmente as experiências originais eram quase como se fossem autônomas, como se tivesse nascido do zero, como se tivessem inventado a roda e de uma hora pra outra 'agora vamos conversar sobre os homens'.
Acho que os grupos com os quais a gente tem conversado têm consciência da história e da necessidade, inclusive, de estudar mais, de aprender mais sobre a luta feminista e a luta das mulheres. Eu também tenho visto nos grupos uma maior preocupação com, por exemplo, com pauta relacionada ao racismo.
Quando a gente fala dos homens, a gente não pode ignorar que a principal causa de morte e adoecimento dos homens ainda são as causas externas, tem a ver com homicídio, com violência, com acidentes de carro. Mas quando a gente vai olhar para a população de homens negros, a gente percebe que esse número é bem maior. É expressivo.
Quando a gente olha para as prisões a gente encontra um contingente muito maior de homens do que de mulheres. São 97% de homens, mas dentro deste 97% de homens a grande maioria é de homens pardos e pretos. Estas questões do racismo também tem começado a aparecer nos grupos.
Tem uma novidade (que pra gente é novidade mas que pro mundo não é), que são as questões dos corpos trans. A possibilidade hoje de pensar a partir deste recorte entre cisgeneridade e transsexualidade tem aparecido também nos grupos.
Hoje quando a gente fala de homens a gente tem que lembrar que também têm homens que engravidam e que têm aparelho reprodutivo. É uma outra experiência de masculinidade que estão sendo incluídas neste campo.
Este é um novo desafio: pensar os marcadores sociais da diferença.
Antes a gente pensava mais a questão de gênero do que estas questões de raça, de sexualidade, de identidade de gênero, de território, etc.
Por exemplo, nesta pesquisa nacional de avaliação da política de saúde do homem, a gente vem trazendo muito a questão do território para pensar. Neste grupo tem um pessoal do Pará e eles falam: 'olha o sistema de saúde do Pará funciona muito a partir de transporte fluvial'.
Então a experiência de masculinidade com a qual a gente vai estar lidando, quando a gente fala em saúde do homem, é da saúde do homem ribeirinho, da saúde do homem indígena, da saúde do homem que está em outros territórios além do território urbano.
A novidade para mim é a possibilidade de ampliação do olhar para além do próprio umbigo, que é pensar que a pauta que a gente precisa defender é a possibilidade de homens e mulheres terem os mesmo direitos.
Socialmente e culturalmente as mulheres denunciaram a sua condição de opressão e a gente precisa entender essa condição para poder falar sobre sofrimento de alguns homens em relação aos modelos e também compreender os privilégios. "
Contradição entre privação e privilégio
"Esse também é um ponto que tem começado a aparecer mais nos grupos, essa contradição entre privação e privilégio: os homens são os que morrem mais por violência urbana e também são aqueles que mais matam na violência urbana. Na violência de gênero, se as mulheres são as que mais morrem, os homens são os que mais matam.
Na história da pandemia é impressionante. Nos momentos de maior pressão, de Lockdown ou de quarentena absoluta, as poucas pessoas que você via nas ruas resistindo, eram homens.
Nas ruas, as pessoas que estão circulando são homens, o governo federal hoje é protagonizado por homens.
Toda essa costura que desenha a trama que se configura neste momento de pandemia, se a gente prestar muita atenção ela tem linhas muito claras de construção dentro das masculinidades, não é?
Porque as mulheres que estão lá cuidando. Elas que estão a frente do serviço, porque, por exemplo, a grande maioria dos profissionais de enfermagem são mulheres, quando adoece alguém na família é uma mulher que vai cuidar, se é uma criança, uma mulher que vai cuidar."
Podemos dizer que existe um movimento de transformação dos homens?
"Movimento é um termo muito difícil. Porque a gente só nomeia um movimento quando ele está estruturado. Eu acho que a gente poderia dizer que estamos nos estruturando como movimento. Mas eu não consideraria ainda, porque são as conquistas e os avanços que vão dando visibilidade a esse movimento.
Para pensar um movimento precisaria, por exemplo, ter uma integração maior junto as forças institucionais. A política de saúde da mulher, por exemplo, foi uma conquista do movimento de mulheres organizado, com vários espaços, com discussão coletiva, assim como o movimento que estruturou a política de saúde da população negra. A política de saúde do homem não teve a mesma trajetória.
A política de saúde do homem é uma conquista muito de ativistas, de pesquisadores, mas não de uma forma estruturada em movimento, porque movimento precisaria pensar em diferentes instâncias e diferentes processos coletivos.
Inclusive esse mapeamento mais amplo [Homens do Brasil 2020] pode nos ajudar muito a sistematizar, a organizar a contribuir para que este movimento se organize de forma coletiva.
Para mim uma palavra fundamental para gente pensar em movimento é coalizão, quais são as coalizões que existem hoje nos trabalhos com os homens?
Enquanto não houver o coletivo, não tem como a gente falar em movimento, até porque boa parte destas experiências são experiências no campo da virtualidade (que do mesmo jeito que começam, terminam).
Eu entendo que o movimento é o movimento de promoção de direitos sexuais, ou movimento de igualdade racial, um movimento de equidade de gênero e ai a coisa existe como um movimento que tem coalizões e inclusive tensões sobre determinados pontos. Mas no caso dos homens ainda não tem estas coalizões porque não existe uma ação integrada coletiva."
Os encontros virtuais podem potencializar o movimento?
"Têm, por um lado, os grupos que já existiam presencialmente e passaram a existir no virtual porque não tinham condições de dar continuidade. Têm, por outro, os que deixaram de existir temporariamente porque a virtualidade desconfigurou o funcionamento do grupo. E também têm essas experiências novas que já começaram no processo de confinamento, então são desde sempre dentro da virtualidade
Acho que é muito cedo pra fazer uma avaliação. Mas neste momento eu vejo que a virtualidade trouxe oportunidades para outras pessoas — para mulheres, para população LGBT, que diante de questões que não poderiam ser tratadas em sua cidade (por segurança), na pandemia surgiram espaços virtuais de atendimento.
Agora pensando em movimento social, essa comunicação virtual não tem ajudado muito a gente, porque infelizmente essa comunicação virtual tem sido usada de formas muito pouco democráticas. Tem toda a questão das fakenews e do uso inadequado das questões públicas e políticas."
No trabalho com masculinidades, como você tem visto a intensificação do conservadorismo?
"Eu tenho dialogado muito com amigos historiadores que trabalham com uma perspectiva de movimentos de fluxos históricos. O que eles falam é que a gente vive a história mundial em ciclos e de fato a gente está vivendo na volta de um ciclo, no fundo de um looping em que a gente chegou no momento em que precisamos enfrentar aquilo que é humano – que Freud chamava de pulsão de morte – que tem a ver com algo que não é do monstro, não é do não-humano, é próprio do humano: o desejo de produzir violência, atrocidades, enfim, restrições aos direitos dos outros.
Só que ai a gente faz o que tem se falado sobre os pactos civilizatórios: você vai criando pactos para garantir que a gente não se transforme numa sociedade de barbárie, que a gente não perca as referências de possibilidade de continuidade e que não deixe que essa pulsão de morte tome conta da gente. Ela precisa ser negociada, mediada.
A violência, os crimes, tudo isso são práticas humanas. Então a gente está vendo o que não é novidade, sempre existiu, mas que agora tomou o protagonismo da cena e eu acho que o desafio é bem maior nesse sentido.
A gente teve um período de democratização muito pequeno, pouco tempo para gente poder construir mudanças estruturais nessas instituições do Brasil. Então, como elas são frutos de uma história, elas têm marcas machistas, elas tem marcas racistas, essas instituições também têm marcas sexistas.
Embora seja sofrível, é importante que a gente possa visibilizar, porque ver essas coisas com mais clareza ajuda a gente a pensar em estratégias de mudanças.
Esse desafio não é local, não é só no Brasil. Isso é global.
A gente tem visto muito isso nas redes, particularmente na MenEngage: a Nicarágua passou por um processo assustadoramente violento, a Argentina recentemente voltou a ter uma gestão mais de centro esquerda, mas também teve sua experiência de retrocesso na gestão anterior, o Chile também.
Todos estes países estão enfrentando isso, então, estamos tentando identificar quais são os repertórios a partir dos quais esta sendo produzida essa abordagem, essas práticas fascistas no mundo inteiro. E boa parte delas tem a ver com a militarização das práticas tanto discursivas como práticas materiais.
Tem uma autora chamada Raewin Connell (que é uma das primeiras a escrever sobre masculinidades), ela tem um texto maravilhoso sobre a militarização da masculinidades.
É exatamente isso que a gente vem percebendo acontecer, é uma mudança não só de padrão de práticas mas também de discursos: você ignorar o outro, ridicularizar o outro, desconsiderar o outro, violentar o outro, tudo isso são práticas associadas a essa militarização."
Quais os principais desafios de expandir o trabalho com masculinidades hoje?
"Eu não posso lhe responder isso sem falar da pandemia.
Já estamos vivendo hoje em dia num cenário de incertezas. Então há um tempo atrás o desafio maior da gente era de integração, de articulação e coalizões. É isso que a gente está tentando avançar nesta perspectiva do mapeamento e das outras iniciativas que vão vir consequentes a isso.
Agora, com o processo da pandemia a gente não tem clareza ainda de como vai funcionar ano que vem.
Aqui na universidade estamos começando com o ensino a distância e ensino a distância amplia desigualdades, porque não é todo mundo que tem equipamento adequado (nem professores) para poder fazer transmissão e tudo mais.
A pandemia introduziu também na gente uma necessidade de repensar práticas experiências em vários âmbitos. Mas o desafio anterior — buscar coalizões e interlocução entre as diferentes iniciativas — isso continua. "
Como você vê todo o trabalho que você realizou nos últimos 30 anos?
"Eu fico muito feliz de fazer parte de uma ação coletiva eu acho que uma das coisas que a gente conversava muito lá em 1995 (quando a gente começa a se aproximar dessa discussão) era justamente a importância das ações coletivas.
Eu acho que a vaidade masculina é, muitas vezes, o que produz essas figuras de herói, de protagonista, de idealizador, de fundador de coisas… E acho que seria até contraditório da minha parte ocupar este lugar de alguém que é protagonista deste campo.
Tudo o que eu contei pra você foram ações que só foram possíveis porque eu estava em coletivos: porque a ECOS existe, porque o Promundo existe, porque o Instituto PAPAI existe, porque o GEMA existe, porque a MenEngage existe.
Todos estes espaços são coletivos que fazem com que a gente evolua, avance, aprenda. Então eu acho que minha maior satisfação não é pelo que eu conquistei, o que eu fiz, mas de fato pelo que nós conseguimos conduzir como coletivo. E isso não é texto da boca para fora.
Isso é a conquista de um projeto de promoção da equidade de gênero a partir de uma perspectiva feminista, que é de potencializar sujeitos e não, protagonistas."
Qual o sonho para continuidade dos trabalhos com homens e masculinidades?
"Mais espaços de trocas, esse é um desejo meu e uma preocupação com a pandemia, porque as trocas presenciais, elas não são substituíveis.
Acho que nas trocas presenciais se produz mais afetos, mais vínculos e com isso a gente consegue ter uma ação política muito mais potente. Eu espero que a gente consiga voltar a ter espaço de intervenção e de articulação presencial de novo .
Eu desejo que a gente consiga respeitar as diferenças dentro do campo das masculinidades e também que a gente possa incorporar as trajetórias de construção de modelos de masculinidade que são atravessados pelo racismo, pelas opressões de gênero, pelas identidade de gênero e que a gente possa, de fato, entender que isso tudo faz parte de um mesmo movimento.
Que a gente, de fato, possa entender o movimento dessas ações com os homens como parte de um movimento feministas. Acho que o movimento feminista nos provocou a pensar, então eu acho que o trabalho com os homens é uma consequência quase inevitável da ação feminista e que deve então ao feminismo reconhecimento da sua autoria."
Para conhecer os trabalhos acadêmicos de Benedito Medrado
Homens e masculinidades: Outras Palavras (1998)
Por Margareth Arilha, Sandra G. Unbehaum Ridenti, Benedito Medrado
Homens e masculinidades: práticas de intimidade e políticas públicas (2010)
Organizado por Benedito Medrado, Jorge Lyra, Mariana Azevedo e Jullyane Brasilino
Oficinas como estratégia de pesquisa: articulações teórico-metodológicas e aplicações ético-políticas (2014)
Por Mary Jane Spink e Vera Mincoff MenegonI; Benedito Medrado
O masculino na mídia: Repertório sobre masculinidades na propaganda televisiva brasileira (1997)
Benedito Medrado Dantas
Homens, violência de gênero e atenção integral em saúde (2009)
Edna Granja e Benedito Medrado
Posicionamentos críticos e éticos sobre a violência contra as mulheres
Benedito Medrado Dantas e Ricardo Pimentel Méllo
Gênero e paternidades nas pesquisas demográficas: o viés científico
Por Jorge Lyra e Benedito Medrado
Por uma matriz feminista de gênero para os estudos sobre homens e masculinidades
Benedito Medrado e Jorge Lyra
Princípios, diretrizes e recomendações para uma atenção integral aos homens na saúde (2009)
Benedito Medrado
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.