Me lembro bem de estar sentado na parte externa do Charm da Augusta, em suas usuais mesas brancas de plástico com cadeiras de estrutura maleável. Aquilo sempre me pareceu muito correto para o rolê, um conjunto mambembe para conversas que poderiam - algumas vezes deveriam - chegar a lugar nenhum.
A instabilidade da vida.
Era uma noite de novembro quente, o primeiro gole da cerveja dava a provável mesma sensação de ter o corpo tomado por alguma divindade cósmica. Dizem. Eu não bebo. Mas o suco de lá era bem bom também. No vai e no vem dos papos, expus uma teoria bem chinfrim de que a história é cíclica, que caminhamos e paramos sempre nos mesmos pontos, nos mesmos problemas, nas mesmas questões. Eis que, de bate-pronto, o amigo me contradiz: "A história não é nada cíclica. Ela é um espiral. O tempo avança, os pontos são outros, mas as situações são as mesmas, só que adaptadas ao momento".
Calei-me. Ele falou e disse.
Acabei sempre repetindo os dizeres daquela conversa no pé sujo perto da Avenida Paulista e cada vez que trago a conclusão para qualquer outra conversação, continuo me espantando. Não, dessa vez, com a afirmação, mas com a assertividade dela e em como a danada costuma aparecer em pontos negativos. Eu explico.
Estou passando dias de apuros imaginando que seremos, todos nós, dessa época, nesses anos 10, lembrados como caretas, como um bando de conservador doido que atrasou para cacete temas sociais, avanços coletivos, que tornou chato por demais o cotidiano, as festas, sair de casa e ficar em casa. Tudo enfadonho, quadrado, fechado, duro, cinza. Percebam, eu não sou contra pessoas que curtem uma tradição, até tenho amigos que. Mas o conservadorismo doido, essa pregação contra coisas que não te atingem, mas apenas afetam pessoas que você nem gosta e nem conhece é de entristecer palhaço antes do circo pegar fogo.
A mesma rua Augusta que me dava para levar para casa lições como a da história em espiral me mostrava um cara (uma mulher, que fique muito claro, mas usei o termo incorreto aqui pra gente conseguir ilustrar isso melhor) descendo a ladeira de calcinha e com muita maquiagem. E tava tudo bem, por que não? A gente ainda gostava de ouvir rock'n roll, aquele estilo musical em que a androgenia era bem vista, cabelão e lápis nos olhos, roupas apertadas e muitas vezes bem femininas. O contraste entre o rockstar comedor com traços ou detalhes delicados era um puta atrativo.
Calça apertada, barriguinha de fora.
Para o Mick Jagger talvez era bem mais fácil de bancar essa marra, aqueles anos 60 e 70 também tinham sua boa carga de conservadorismo, mas a grande pena, hoje, é parecer que não aprendemos porra nenhuma com o que veio lá de trás. Me pego bem triste imaginando aqui, que em pleno final de 2015 alguém vai sofrer com chacotas e violências porque decidiu usar algum tipo de roupa qualquer, seja porque teoricamente (teoria bem burra, mas seguimos) o vestuário não corresponde ao seu gênero ou porque grupos grandes de pessoas ainda impõem como deve se portar um rapazinho ou uma dama. Cores das peças, seus tamanhos, suas intenções.
Vai ser impossível aceitar que vivemos naqueles tempos em que queriam boicotar filmes porque tinha um negro como protagonista, que a gente saía na rua com faixas, não para dar direitos, mas para cerceá-los, que foram anos em que se tinha a pachorra de querer decidir o que era família e como ela seria constituída, que ainda se tinha plena liberdade para proferir comentários tarados pra cima de uma menina de 12 anos, mas que as mulheres não poderiam se expressar ou explicitar suas vontades para com o próprio corpo. Não agora. Não a gente.
Mais uma vez volto ao ponto:
"Este é, afinal, um mundo de homens, um mundo de coronéis e pastores. Homens da lei e de deus que não são eleitos por proporem algo, mas por atrasarem conversas como essas citadas, sob o falso bastião da proteção à propriedade e à família. No final das contas, são homens que atrasam o mundo em vez de fazê-lo avançar.
E em meio a esse medo e trevas, há que se apegar ao tanto de humanidade que se consegue extrair disso. Este é um mundo de homens em um momento biblicamente chauvinista, como tantos outros nesse espiral da história que corre, mas volta ao mesmo ponto de quando em quando."
Naquele momento, a coisa toda era voltada para o congresso conservador que ganhamos pós-eleições, mas agora a situação é mais voltada para indivíduos ou grupos focados em prosseguir com esses retrocessos. E não adianta culparmos "os crentes" por essa. O que não falta é evangélico ou cristão devotado a fazer com que o futuro próximo seja um espaço com mais tolerância, respeito e convívio.
Tem gente que entende e tem gente que não entende
Recomendo a audição do podcast Anticast, do B9, em seu episódio 189 sobre o cristianismo e a homofobia.
"Neste programa, Ivan Mizanzuk e Rafael Ancara recebem o convidado Cristiano “Crentassos” Machado, do Podcrent, e a convidada Regina Jurkewicz, assistente social, doutora em Ciências da Religião e integrante da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, para discutir acerca de tudo o que aconteceu na semana passada acerca da liberação do casamento igualitário nos EUA (desculpa aí, falamos “casamento Gay” durante o programa, nosso vacilo), além de outros temas espinhosos que surgem quando adentramos no campo religioso, tal como o aborto."
Precisamos é começar a criar ambientes propícios para que esses discursos sejam mais ouvidos, que pessoas que queiram avançar sejam de fato respeitadas e ouvidas. Como bem citou a Carla Purcino também em artigo recente do Brainstorm9, sobre o vergonhoso caso da CCSP e o prêmio para a produção preconceituosa da Leo Burnett, “se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor”. E a frase foi dita por um arcebispo da igreja anglicana, o Nobel da paz Desmund Tutu, conhecido por sua luta contra o apartheid na África do Sul.
Pelo que conta a história da humanidade, essa tirana, conservadores e "atrapalhadores" sempre estarão aí aos montes, pessoas com medo do desconhecido e fechadas em bolhas falhas de proteção às avessas que entendem erroneamente que a melhor defessa é o ataque. Se eles sempre estarão zanzando por aí dispostos a matar a vibe da galera, precisamos sempre clamar, então, pela turma do barulho que gosta de quebrar essas regras e botar na rua o que temos de mais fresco e diverso, de mais interessante e juvenil quase bobo e inconsequente.
Espero estar um pouco mais esperançoso no próximo texto em que a história voltar no mesmo ponto e me forçar a escrever.
Obs.: só não vale tirar uma de maloqueiro e virar o Lobão.
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publicado em 23 de Outubro de 2015, 00:00