Decifra-me ou te ignoro: a publicidade precisa reinventar sua relação com as mulheres

Para 62,4% das mulheres, a publicidade desperta o sentimento de mesmice e a apatia delas diante das marcas só cresce

Mulheres têm uma capacidade incrível de realização. Um dado interessante é que elas são apenas 24 dos CEOs das 500 maiores empresas, segundo a Forbes. Um número baixo e infeliz perto dos 250 esperados, mas considerando-se que a entrada definitiva delas no mercado de trabalho aconteceu há menos de 100 anos e que em 1998 havia apenas uma mulher ocupando esse cargo, houve um aumento exponencial e, nesse ritmo, em breve esse número será ainda maior.

Isso não é bom só para as mulheres, mas também para os negócios: empresas com mais mulheres em altos cargos geram mais lucro que aquelas cujos dirigentes são majoritariamente masculinos.

Não é de hoje que há cada vez menos coisas que você não possa imaginar uma mulher fazendo. Elas são capazes de assumir todo tipo de trabalho e desafio, e o feminismo vive um momento auspicioso. Mas se hoje falamos em pautas como a ausência delas em cargos de CEO, a descriminalização do aborto e o fim do assédio sexual em locais públicos, é porque há séculos elas começaram a preparar o terreno para chegar perto de ter voz sobre esses assuntos.

As mulheres são chefes de família em 40% dos lares do país e 58% dos estudantes universitários. Elas podem amar cerveja e futebol com paixão igual ou superior a muitos dos homens que você conhece e certamente ao menos uma das suas amigas é louca por UFC. Mas elas também são livres para amar esmaltes e batons e qualquer outra coisa tipicamente associada ao sexo feminino – isso não diminui em nada seu intelecto, mas são alguns entre os muitos interesses que elas podem ter, e têm.

Agora imagine uma mulher assim, incrível, independente e multifacetada, chegando em casa após um longo dia de expediente e, ao ligar a televisão, se deparar com isso:

É frustrante, para dizer o mínimo. O número de campanhas #fail retratando mulheres de maneira vazia só não cresce mais rapidamente que a apatia delas diante das marcas. Essa foi a descoberta de um estudo realizado pela consultoria sobre o universo feminino para marcas e empresas Think Eva em abril deste ano:

O resultado da pesquisa surpreende porque o problema não está nem nas campanhas obviamente ofensivas, como o exemplo acima, que geram uma reação de desagrado imediato, mas em milhões de reais investidos em comunicação para a mulher e que são desperdiçados em anúncios tão pouco imaginativos que passam absolutamente despercebidos por elas.

Estamos falando de um mercado gigantesco e de campanhas que saem do forno das maiores agências do país, onde a nata da criação dá a impressão de apenas esquentar cadeiras enquanto embolsa salários astronômicos. A campanha da Schin, por exemplo, parece ter saído direto da infeliz combinação de uma fantasia adolescente com o limitado padrão de beleza eurocêntrico que domina a mídia.  

Ainda que, no caso das cervejas, o público-alvo primário seja masculino, é de uma miopia tremenda ignorar o cada vez maior número de consumidoras de cerveja e retratá-las de maneira tão imbecilizada em uma campanha. E a necessidade de uma representação mais inteligente e independente das mulheres também foi uma das queixas levantadas pela pesquisa da Think Eva:

O que elas querem ver na mídia é simplesmente o que elas são: pessoas comuns, inteligentes, com sonhos, desejos, planos e trajetórias diversas. Não surpreende que um seriado como Girls, criado por Lena Dunham, tenha tido um apelo tão forte entre o público feminino ao retratar a saga de quatro amigas em Nova York despidas de qualquer clichê e lidando com problemas de carreira e relacionamento com os quais boa parte da galera de 20 e poucos anos pode se identificar.

Além disso, o seriado contém cenas de nudez e sexo (é da HBO...) retratados com a maior realidade possível, incluindo dobrinhas, celulites e eventuais constrangimentos que são comuns nessa fase da vida, como tentar colocar em prática uma fantasia sexual do namorado e falhar miseravelmente. Ainda que lançado em 2012, ele é considerado revolucionário (!) por sua abordagem franca e sem rodeios sobre dilemas femininos.

Em Girls, Lena Dunham despe-se, literal e figurativamente, de estereótipos batidos da TV americana - e acerta em cheio no coração do público feminino.

As mulheres estão simplesmente desacostumadas a se verem de modo menos esterotipado na televisão. Bombardeadas com imagens que não se parecem com quem elas são na vida real, a barreira que separa realidade e ficção se torna muito nítida. Ao mesmo tempo em que são influenciadas por um padrão de aparência física que se repete a cada garota-propaganda de baixo IMC e protagonista de cabelos lisos e olhos claros, veem isso com distanciamento, apenas como entretenimento, e não como algo que verdadeiramente as represente em toda sua complexidade ou como algum tipo de ideal alcançável.

Campanha genérica com modelo genérica em local genérico vivendo momento de riqueza genérica

Mesmo nas campanhas de produtos femininos, nas quais se espera um maior cuidado de pesquisa e adequação, o cenário é desanimador. O repertório se repete em papéis rasos como o de femme fatale ou dona-de-casa em pânico por causa de uma mancha – perdendo a chance de alcançarem um envolvimento bem mais autêntico com as mulheres que, em forma de defesa, já criaram um filtro que envia esse tipo de anúncio diretamente para a caixa de spam.

É verdade que a publicidade faz uso de mundos idílicos como forma de persuasão, e dificilmente você verá um retrato fiel da realidade ser apresentado por quem não esconde interesses comerciais, mas o fato é que essa dissonância entre as coisas como são de fato e a fantasia que a publicidade cria para vender para as mulheres está tão discrepante que diminui drasticamente as chances de identificação.

Isso gera uma frustração mútua. Afinal, nem as marcas estão agradando tanto quanto pensam, nem as consumidoras encontram empresas com as quais se identifiquem para além de uma relação racional de compra. Ainda que determinadas campanhas gerem impacto, elas não geram lembrança – e ser esquecido é o pesadelo de qualquer produto ou serviço:

Felizmente, bons exemplos de marcas inovadoras estão abrindo o caminho para uma mudança profunda na comunicação para as mulheres. A Pantene lançou, nas Filipinas, o anúncio Labels, que mostrava a diferença na maneira como determinados comportamentos são percebidos de forma positiva nos homens, mas negativa nas mulheres.

O sucesso foi tão estrondoso que a campanha foi exibida também nos Estados Unidos e a Pantene colheu os frutos: nas Filipinas, o marketshare subiu em 3% nas oito semanas seguintes ao anúncio e a Procter & Gamble ganhou um total de 25 milhões de dólares em aparições na mídia, além das 46 milhões de visualizações no Youtube.

O último Festival Internacional de Criatividade, maior premiação da publicidade mundial, lançou uma nova categoria, Glass Lion, para anúncios que tratam de preconceitos de gênero e cor. A grande campeã do ano passado foi a campanha Like a Girl, de Always, que, entre muitos feitos, está perto de chegar a 60 milhões de visualizações no YouTube.

Mudar não é opcional. Dados como os apresentados na pesquisa do Think Eva e as histórias de sucesso de quem está fazendo a diferença mostram que o despertar do mercado de comunicação para a situação das mulheres é urgente não apenas pelos danos que ele têm sistematicamente causado na autoestima feminina, que já é motivo suficiente, mas também porque permitir que as coisas continuem como estão é, simplesmente, um péssimo negócio.

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Para aprofundar:


publicado em 06 de Setembro de 2015, 00:00
Luíse bello

Luíse Bello

Redatora publicitária, manager de conteúdo e comunidade da Think Olga e fundadora da Liga das Heroínas.


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