Muito provavelmente você nunca tinha ouvido falar dele. Eduardo Cunha não aparecia. Parecia um deputado como outro qualquer. Asseado, cabelos grisalhos, óculos de grau. Até que um dia assume a presidência da Câmara, e eis que o país se vê aos seus pés.

Podemos gostar ou não da figura, podemos detestar ou não os interesses que ele representa, mas Cunha põe a Câmara para funcionar. Se reclamávamos que o Legislativo brasileiro era muito submisso ao Executivo, reclamaremos do quê agora?

Ok. Não faltam razões para reclamar. Mas pelo menos a Câmara está trabalhando. Muitos projetos que antes ficavam anos e anos perambulando pela casa, hoje são levados a plenário, votados, aprovados ou rejeitados.

O Legislativo está mais eficiente. Mas talvez não seja eficiência o que esperemos do Legislativo.

Não importa qual seja sua posição sobre os diversos temas. E eu sei que financiamento de campanhas eleitorais e maioridade penal, duas das matérias que Cunha manobrou, são bastante polêmicos. Mas, de verdade, não importa. Este texto é para falar do incômodo que Cunha causa pela sua forma, e não por seus conteúdos.

Tumulto recente na Câmara durante a votação de redução da maioridade penal, que acabou vendo a medida ser rejeitada – mas aprovada após manobra política de Eduardo Cunha no dia seguinte

Perto de Cunha, aquela velha máxima de Dalai Lama, “conheça bem as regras para quebrá-las de forma eficiente”, é quase infantil. O princípio-chave do presidente da Câmara é conhecê-las bem para manobrá-las ainda melhor.

Desde que assumiu a presidência, Cunha só fez insuflar sua aura de rei do regimento. Empurrando e puxando pautas a seu bel interesse. Segundo dizem pelos corredores, é com base no seu conhecimento de regimento que Cunha tem conduzido os rumos do país.

Sei que há uma discussão, que inclusive deve chegar ao Supremo, acerca da legalidade e constitucionalidade das manobras de Cunha. Sei que o poder de Cunha não é fruto exclusivo de seu conhecimento do regimento, mas principalmente do seu fino trato com grandes investidores de campanha – afinal ele é tido como o grande captador de recursos para o seu partido. Mas não é (no mínimo!) estranho que o conhecimento do regimento, por mais que profundo, seja a chave para explicar o poder que um presidente da Câmara tem sobre a agenda política do país?

O Brasil tem 513 deputados federais e 81 senadores, que representam 26 estados e o Distrito Federal. São essas as pessoas responsáveis por propor, discutir, examinar e votar a legislação que influenciará, em maior ou menor escala, a vida de 203 milhões de brasileiros. 

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Ninguém entende o regimento, só o Cunha?

Os outros parlamentares, assessores, membros do Executivo não têm tal conhecimento? Ou seria o regimento interno da Casa algo de natureza tão absolutamente complexa que apenas um gênio é capaz de entendê-lo e encontrar suas brechas? O resto de nós mortais é simplesmente incapaz de fazê-lo?

A boa ou má notícia é que todo Legislativo opera sob o regimento. No fim do dia, até mesmo Cunha é súdito da carta que rege o Congresso*. 

Agora, faz sentido sermos espectadores de um sistema tão criptografado, com tantas brechas para manobras?

O que Cunha fez nessas últimas semanas ganhou projeção pela posição que ele ocupa e por ter tocado em pontos polêmicos. Porém, qualquer um que acompanha o dia a dia do Congresso sabe como o processo decisório é falho e cheio de zonas obscuras. Manobras e contrabandos são mais regras do que exceção por lá, sobretudo aos políticos “eficientes”.

Do outro lado, todos os ritos propriamente parlamentares, aqueles nos quais os congressistas discursam e deliberam publicamente, são praticamente inócuos na produção de consensos ou divergências dentro das casas. Valem mesmo os acordos nos bastidores e os atalhos que uns e outros encontram para incluir/excluir pontos nos milhares de projetos de lei que tramitam por lá.

Não sou um especialista na matéria, mas sugiro que essa série de manobras nos leve a uma revisão dos processos que regem a representação política, dos mais rebuscados aos mais rudimentares. 

Do contrário, continuaremos assistindo perplexos a um jogo cujas regras não entendemos e cujas principais jogadas ocorrem nos bastidores.

*(além do regimento comum às duas casas, há também regimentos específicos).


Para aprofundarmos a conversa:

  1. Link para download do regimento interno da Câmara dos Deputados
  2. Com manobra de Cunha, Câmara aprova doação de empresas para partidos nas campanhas“, matéria de O Globo
  3. Como Eduardo Cunha articulou a aprovação da redução da maioridade penal“, matéria do Zero Hora
  4. Percurso didático “Para entender política
  5. Coleção “Sonho Brasileiro da Política

Ricardo Borges Martins

Cientista Político e ativista apostando em construções coletivas em lugares como o <a>Pacto pela Democracia</a>