O Luciano chegou sem banho aqui na casa hoje. Nossa modesta ducha teve uso depois de meses abandonada.
Não é como se ele tivesse opção: pisou em casa ontem, abriu a torneira da pia cheia de louça e não saiu um pingo d’água pro moço. Seu colega de apartamento até disse que insistiu no chuveiro, mas tudo o que saiu foi um líquido barrento.
Moro ali pertinho da represa Billings, na cidade de São Bernardo do Campo, e, na minha casa, tá tudo certo. Aqui em Perdizes, no PapodeHomem, também. Mas lá na Pompéia, onde mora o Luciano, não tá nada certo. Está chovendo, sim, mas água mesmo não tem.
Ele chegou e, assim como todo mundo, ao abrir suas páginas na internet, leu que agora não podemos mais saber onde tem água
A Sabesp tornou secretos todos os documentos referentes ao abastecimento urbano com a intenção de que as áreas que não deverão sofrer cortes não sejam vandalizadas e postas em risco num rodízio hipotético. O sigilo dura 15 anos.
A gente já tinha visto esse filme umas semanas atrás, quando ficamos sabendo que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, havia transformado todos os arquivos referentes à construção das novas estações de metrô em ultrassecretos.
Descobrimos esses dias, mas isso foi feito ainda no ano passado, pouco antes das eleições. No dia seguinte à reportagem do jornal Folha de S.Paulo, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE) cobrou explicações sobre a decisão e, alguns dias depois, o governador ordenou que o sigilo seja revogado.
Sou uma cidadã de tempos modernos, pós-ditadura, e até onde sabia, arquivos públicos deveriam estar dispostos pra acesso geral. Afinal, não estamos em guerra.
É isso também que garante a Lei de Acesso à Informação (nº 12.527), sancionada em 2011. Mas, sim, existem classificações de sigilo previstas, que eu achei por bem conferir e, no jeitinho de corrente de e-mail, repassar.
Pra começar, é bom que tenhamos conhecimento de uma parte crucial do artigo terceiro da lei:
“Art. 3º
I – observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”
A princípio, a informação é pública e deve ser divulgada da melhor forma possível, inclusive na internet, como prevê o artigo oitavo da mesma lei:
“Art. 8º
II – Para cumprimento do disposto no caput, os órgãos e entidades públicas deverão utilizar todos os meios e instrumentos legítimos de que dispuserem, sendo obrigatória a divulgação em sítios oficiais da rede mundial de computadores (internet).”
Em caráter de exceção, um documento pode ser classificado como sigiloso. Só que isso não deveria acontecer sem justificativas plausíveis. Em linhas gerais, isso só pode ocorrer quando a divulgação possa colocar em risco a segurança da sociedade geral e do Estado.
Pra não ter erro, o artigo vinte e três da Lei de Acesso à Informação é mais específico:
“Art. 23. São consideradas imprescindíveis à segurança da sociedade ou do Estado e, portanto, passíveis de classificação as informações cuja divulgação ou acesso irrestrito possam:
I – pôr em risco a defesa e a soberania nacionais ou a integridade do território nacional;
II – prejudicar ou pôr em risco a condução de negociações ou as relações internacionais do País, ou as que tenham sido fornecidas em caráter sigiloso por outros Estados e organismos internacionais;
III – pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde da população;
IV – oferecer elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do País;
V – prejudicar ou causar risco a planos ou operações estratégicos das Forças Armadas;
VI – prejudicar ou causar risco a projetos de pesquisa e desenvolvimento científico ou tecnológico, assim como a sistemas, bens, instalações ou áreas de interesse estratégico nacional;
VII – pôr em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares; ou
VIII – comprometer atividades de inteligência, bem como de investigação ou fiscalização em andamento, relacionadas com a prevenção ou repressão de infrações.”
Se passível de um desses riscos, o documento pode ser classificado sigiloso. O decreto nº 7845, de 2012, regula três categorias pra isso. São elas:
Ultrassecreto;
secreto;
reservado.
As informações sobre as obras do metrô paulista haviam sido classificadas como ultrassecretas. Essa categoria é comumente aplicada sobre informações de defesa territorial e relações internacionais ou assuntos bélicos, principalmente por operações militares e do exército. Sob ela, um arquivo permanece tolhido da consulta pública por 25 anos, contando desde a sua criação. O período pode ser prorrogado uma vez.
Já os arquivos da Sabesp foram classificados como secretos e devem ficar em sigilo por 15 anos não prorrogáveis.
Para arquivos reservados, o sigilo é de 5 anos não prorrogáveis.
Os documentos podem, no entanto, ser reclassificados em outras categorias. Nesse caso, o período seria contado a partir da mesma data de criação do documento e não da classificação. Assim, fosse um arquivo de 1999 categorizado como ultrassecreto reclassficado como secreto, seu sigilo já estaria vencido.
Não é tão complicado quando a gente reúne tudo assim, num texto, embora ainda pareça problemático que o sigilo dos documentos do metrô tenha sido decretado no ano passado e só agora o fato seja de conhecimento público. E é só pelo barulho que isso causou que ficamos sabendo, agora, do caso Sabesp.
É também agora que parecem nos ser mais importantes as noções básicas da Lei de Acesso à Informação, apesar de ela já ter sido repetidamente desrespeitada ao longo de todo o ano: vimos que o Exército, que detém 68% dos documentos assim classificados pelo governo, anda barrando a consulta.
Melhor ficar esperto, não?
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