Eu falo da minha profissão com um certo tom apaixonado, pois se ainda não serviu para me enriquecer, me trouxe experiências inenarráveis.
Algumas delas ocorreram ao longo do curso, onde aprendíamos nas salas de aula ou víamos nos estágios tais manobras heróicas ou procedimentos que podem não ter fundamento ou parecerem cruéis para o leigo. Mas é apaixonante quando você entende porque foi feito.
Compartilho aqui alguns tesouros (ou nem tanto) da Medicina.
1 – Colostomia
Colostomia é a colocação de uma desembocadura precoce do intestino grosso na barriga. Literalmente falando, você pega a tripa e abre um buraco nela, e costura esse buraco pra sair na barriga, e as fezes sairão por ali.
Tem como principais indicações os tumores retais (que bloqueariam o fluxo das fezes, causando obstrução) e a ruptura do intestino grosso (o conteúdo deste é repleto de bactérias, se você apenas suturar a lesão, a chance é enorme dessa sutura falhar, com graves conseqüências). A colostomia pode ser revertida posteriormente.
2 – Massagem cardíaca interna
A massagem cardíaca clássica é extremamente ineficiente do ponto de vista quantitativo, pois supre apenas 30% do volume bombeado pelo coração. Em alguns casos heróicos, principalmente na vigência de traumatismo torácico aberto ou mesmo no ato operatório, a massagem é feita lá dentro mesmo, o médico mete a mão e aperta o coração de forma rítmica.
Algo muito comum na massagem cardíaca tradicional é ocorrer fratura de costelas. Já aconteceu comigo de massagear uma paciente renal crônica (renais crônicos tem ossos frágeis) e na primeira que desci, quebrei 3 ou 4 costelas dela.
3 – Drenagem torácica
Respiramos por causa de diferenciais de pressão entre o tórax e o meio ambiente. Feridas abertas no tórax acabam com esses diferenciais de pressão, o ar é sugado para dentro do tórax, e não é expelido.
Isto acaba comprimindo o pulmão, o que pode levar à morte por déficit de oxigênio. A isto chamamos pneumotórax. Para resolver o problema, é necessário a colocação de um tubo dentro do tórax da pessoa para o ar sair, e a outra extremidade do tubo tem que ficar mergulhada num pote com água, que deve estar abaixo do nível do tórax da pessoa (senão a água invade o tórax).
Assim, o ar consegue sair quando há pressão positiva, mas quando é gerada pressão negativa, esta não é suficiente para sugar a água, o que acaba expandindo o pulmão à normalidade. Este é o fundamento da drenagem torácica.
4 – Hidratação em bebês
Algumas vezes é necessário fazer hidratação venosa (leia-se, soro na veia) de bebês, e é difícil conseguir puncionar veias nestes.
A solução pode parecer cruel: introduz-se uma agulha na tíbia (isso mesmo, em pleno osso) do bebê e deixa o soro cair lá dentro. Mas na hora do aperto, funciona.
5 – Procedimentos ortopédicos
Minha praia. A coisa mais incrível que já li em ortopedia chama-se cirurgia de Van Ness. Era indicada para pacientes com tumores de joelho ou infecção deste que requeiram amputação, mas com o pé viável.
Numa tentativa de preservar a função, Van Ness promoveu a amputação acima do nível do joelho, e cortou e reimplantou o tornozelo, rodado 180 graus, na coxa, colocando a dobradiça do tornozelo na mesma posição da do joelho. Ou seja, criou uma espécie de “curupira perneta”. Com a modernidade de próteses, não se faz mais isso.
Reduções (colocação de ossos e articulações deslocados no lugar)
Também são um capítulo à parte. Nas luxações de ombro, você pode colocá-lo no lugar puxando o braço e metendo o pé na axila do paciente, ou então amarrando um peso no braço até este voltar pro lugar. Em fraturas incompletas de crianças, primeiro é preciso completar a fratura (ou seja, quebrar mais), para depois botar no lugar.
Finalmente temos a Tração Esquelética
Usada em fraturas do fêmur. Como a musculatura da coxa é muito forte, a coxa encurta muito em caso de fratura, o que é danoso.
Para evitar isso, atravessamos um pino de metal na tíbia, e a este conectamos um peso pendente, que puxa a coxa e restabelece o comprimento. Isto até o momento da cirurgia. Mas para quem vê é grotesco, porque colocamos o pino com furadeira. Eu já fiz com martelo, inclusive.
6 – Empalamento
Empalamento é a entrada de um corpo estranho pelo orifício anal. Pode ser traumático (já vi uma criança que caiu sentada num vergalhão), ou… Isso mesmo! O indivíduo introduz algum objeto no seu ânus, vacila, o objeto entra todo e fica lá.
Não sai fazendo força pra defecar. A retirada tem que ser por dilatação anal e o médico mete a mão lá dentro e tira o objeto. Em alguns casos, é necessária cirurgia para ordenhar o intestino. Costuma ser um evento que mobiliza o hospital inteiro, para vergonha total do paciente.
E uma gama interessante de objetos é retirada lá de dentro, consolos esculpidos em madeira, frascos de desodorante, cenouras (um amigo meu disse que viu uma vez algo que ele chamou de “mega supositório de beta-caroteno”) e pepinos.
7 – Tamponamentos
Para impedir sangramentos, inúmeros métodos são utilizados. O povão desenvolveu seus próprios, como colocar borra de café em feridas. Isso estanca o sangue, mas aumenta a chance de infecção. O ideal é a compressão local ou um torniquete, quando possível.
Em sangramentos abundantes do fígado, quando não se consegue controlar, é comum o chamado “empacotamento”. O cirurgião coloca um monte de compressas em volta do fígado e fecha o abdomem. No dia seguinte, se tudo correr bem, as compressas contiveram o sangramento e é feita nova cirurgia para retirá-las e revisar o órgão.
Antes do advento da endoscopia digestiva, era comum o uso do balão de Sangstaken-Blakemore em hemorragias do estômago. O balão era introduzido por uma sonda e inflado dentro do estômago, assim pressionava as paredes do órgão e continha o sangramento.
Procedimento semelhante pode ser feito em hemorragias nasais, mas com uma camisinha acoplada a um tubo. Introduz-se a camisinha pela narina, empurra com a sonda, e a camisinha é inflada, estancando a hemorragia.
8 – Perda de pele na mão
Um dos procedimentos mais interessantes em cirurgia plástica é quando ocorre uma perda significativa de pele e subcutâneo na mão. Dependendo do caso, a mão não pode ficar sem cobertura, e muitas vezes é impossível fazer um enxerto.
Então a solução é abrir um buraco no abdomen e colocar a parte descoberta da mão dentro do tecido subcutâneo deste. E a mão fica lá dentro, protegida, por algum tempo, até regenerar cobertura viável. Depois retira-se a mão de lá e procede-se a reconstrução.
Dr. Health, desejando um Feliz Natal e próspero 2008 a todos, e que ninguém precise dos procedimentos acima alinhavados.
PS: acharam isso tudo bizarro? Já ouvi vários relatos de colegas cirurgiões que preparavam pacientes do sexo feminino para a reversão de sua colostomia, e acreditem, o marido perguntou ao médico se não podia deixar a esposa com a colostomia. Não estão aliviando nem buraco de fechadura, pelo visto…
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