Uma simples doença causa todo um processo injusto e aparentemente insolúvel. Descubra o que a LER tem a ver com RH, SUS, INSS, FGTS…
Uma classe profissional bem presente aos consultórios ortopédicos é a dos operadores de telemarketing, digitadores, recepcionistas, e demais trabalhadores que utilizam a digitação como meio de vida.
Como posso acompanhar diariamente nos consultórios da vida, tais empregados sofrem não só as consequências deletérias na natureza do seu esforço, como a de todo um sistema previdenciário fadado à falência. Permitam-me explicar.
Um emprego atraente?
O trabalho como operador de telemarketing é de certa forma atraente para boa parte da população de menor renda. Não exige mais que instrução básica e conhecimento de digitação.
Está em moda no mercado atual, com os tais serviços de call center, e apresenta uma vantagem adicional: em muitos casos, o trabalho não consome tanto tempo assim, sendo feito em meio expediente. Perfeito para jovens que precisam de uma renda extra e também conciliar com os estudos. Seria o emprego certo na hora certa?
Exploração
No trabalho, a necessidade de produzir acaba afetando o desempenho do emprego. Já conversei com diversos trabalhadores da área, e o assunto é sempre o mesmo sobre condições de trabalho: alta demanda, digitação ininterrupta, horário e tempo certo para ir ao banheiro etc.
O somatório dessas condições taylorianas de produção resulta numa lenta e gradual sobrecarga músculo-tendinosa nos braços destes trabalhadores.
Entra em cena a primeira sigla… LER
LER (Lesão por Esforço Repetitivo) é a consequência de um esforço sobre-humano, ainda que aparentemente inofensivo, que se traduz pelas tendinites, bursites e outras ites (inflamações) de tecidos músculo-esquelético que tanto acometem tais trabalhadores.
Mas não é nessa hora que eles procuram o médico, não…
Mercado pernicioso
Por não se tratar de uma carreira das mais qualificadas – para cada um que vai embora, existem 200 entrando – o trabalhador tenta remediar por si só a situação, para não perder o emprego. Analgésicos como o Dorflex são utilizados, na tentativa de aliviar a dor, e não resolvem.
O trabalhador, então, acaba forçando a barra. Dada a natureza da lesão, a consequência é óbvia: piora do quadro. Até chegar o ponto que ele não aguenta mais e resolve levar essa batata quente ao ortopedista.
No consultório
De tanto atender operadores de telemarketing, eu já consigo diagnosticar a pessoa só pelo jeito que ela entra no consultório (é sério). Claro que, como praticamente toda essa classe tem o mesmo convênio, a simples leitura da ficha do paciente e o boleto do convênio, que vem anexo, já me permitem dizer o seguinte:
“Já sei, operador de telemarketing, e tá com tendinite no braço”.
90% de acerto e caras de espanto. Ao menos as empresas pagam esse plano de saúde. Porque se eles dependessem do SUS…
Então explica-se a natureza da lesão e o tratamento baseado em repouso, imobilização, medicação anti-inflamatória e eventualmente fisioterapia. Mas não é um paciente simples; ele fatalmente precisará de um tempo maior de recuperação. Ou seja, vai precisar de algo que me causa arrepio: atestado médico. Eu detesto fazer atestado, mas faz parte.
Convênio ruim (o que são oito reais?)
Pelo menos aqui no Rio de Janeiro, o convênio que grande parte dos atendentes de telemarketing possui é um lixo.
Claro, a tal empresa faz pacotões que oferecem um servicinho engana-trouxa, só o básico do básico, para as empresas de telemarketing, que, por contenção de despesas, acabam fechando com os tais pacotões só para dizer aos empregados que “oferecem plano de saúde”. Detector de armadilha ativado!
O tal plano, em determinados locais, paga R$ 8,00 por consulta. Sim, isso mesmo que vocês leram, oito míseros reais. Com isso, todo o trabalho que você tem com o paciente – colocar imobilização, orientar, fornecer atestados e laudos, revisar, prescrever fisioterapia – não compensa.
E os médicos acabam evitando esse convênio; só atendem quando é inevitável. Tenho um colega que trabalha no mesmo local em emergência e ambulatório. Ele pega os pacientes da emergência que precisam de acompanhamento subsequente e encaminha para o seu ambulatório. No entanto, quando aparece um desse convênio, ele simplesmente manda procurar um ambulatório qualquer. Com sorte, o paciente não cai no dele.
Eu também não faço muito esforço. Outro dia apareceu uma paciente desse convênio com indicação de cirurgia do punho, algo que eu estava habilitado a fazer, mas percebi que os honorários não pagariam sequer minha gasolina. Encaminhei a outro colega, já que não se tratava de procedimento urgente. Pagar para trabalhar não dá!
Se vocês pensaram que os problemas dessa classe acabaram, o pior ainda está por vir.
INSS, auxílio doença e alta automática (dane-se o paciente)
A legislação trabalhista brasileira diz que, após 15 dias consecutivos de afastamento, o paciente deve ser encaminhado ao INSS para requerimento de auxílio doença. Passará por uma perícia e, se for constatada lesão, o seu salário (ou parte dele) será pago pela seguridade social por um período determinado.
Parece bonito e justo, não é? Nem tudo são flores.
A começar pela natureza malandra de muitos brasileiros. O INSS é uma mãe para muitos, que mamam em suas tetas sem ter motivo. Trabalhei como perito judicial por algum tempo e constatei que 70% daqueles que recebem alta do auxílio-doença pleiteiam o retorno sem motivo justo (diga-se de passagem, é bom demais receber sem trabalhar). Por exemplo, alegam patologias totalmente subjetivas, como dores nas costas, e trazem laudos de exames com alterações que 90% da população tem em determinada faixa etária.
Por causa dessa malandragem toda, o justo acaba pagando pelo pecador. Explico. Os peritos do INSS são duros na queda para conceder benefícios. Reza a lenda que existe cota de negação de benefício que precisa ser cumprida, para evitar o sangramento dos cofres do INSS e a institucionalização da malandragem. E com isso, a quantidade de injustiças e arbitrariedades cometidas pelos referidos peritos é imensa.
Existe uma coisa absurda que acontece nas perícias do INSS chamada alta automática. Ou seja, se o paciente não requerer uma perícia até 15 dias antes do término do seu benefício, caso ainda não se sinta apto a voltar ao trabalho, ele tem alta automática. O sistema não está interessado no paciente, este que se dane. Um bom exemplo de como é tratado o doente no SUS.
Isto posto, a situação do paciente operador de telemarketing se agrava porque justamente seu diagnóstico é clínico e subjetivo. Dificilmente um exame vai detectar uma tendinite, ou seja, você tem de confiar no paciente. Isso é prato cheio para peritos nem sempre bem intencionados. O paciente precisa de tratamento, não tem condição de trabalho, e tem o benefício negado.
Do meu ponto de vista, escrevia laudos detalhados pra nada. E nem pagavam a tinta da minha caneta!
Pensaram que acabou? A coisa ainda piora.
Relação patológica de trabalho (“É tudo corpo mole”)
A grande verdade embutida na temática abordada é: o problema da LER nos operadores de telemarketing é insolúvel.
Imagine que você tem um ferimento que leva o dia inteiro para cicatrizar, e à noite você resolve ficar cutucando a ferida. Sabe quando vai cicatrizar, né? É mais ou menos isso que ocorre com essa profissão. Alongamentos e outros cuidados no máximo vão reduzir ou retardar o aparecimento inevitável do problema.
Em muitas consultas, eu recomendo, em tom de brincadeira, que o paciente peça demissão. Esse tipo de trabalho é insalubre. Muitas vezes, mesmo após cessar o trabalho, o paciente fica meses se tratando e melhora pouco ou muito devagar.
Nesse período de afastamento, entra em cena o pessoal que trabalha com RH. Por mais que eu entenda que estão apenas cumprindo seu papel, o que já teve de gerente de RH folgado me ligando pra acusar o meu paciente de estar fazendo corpo mole e sugerindo o que eu deveria fazer… Que os trabalhadores de RH aqui não me entendam mal, mas boa parte dos comportamentos nessa área é lastimável.
A coisa começa na pressão psicológica para o retorno ao trabalho, que em muitos casos beira o assédio moral. Posteriormente, uma brecha incrível no sistema gera uma situação cômica, se não fosse trágica. Ao ter o seu benefício negado no INSS, teoricamente o trabalhador deveria voltar ao expediente. Ele passa pelo médico do trabalho na empresa e alega que está sem condições.
O médico do trabalho, na defesa dos interesses da empresa (evitar que um trabalhador lesionado processe a empresa por agravar sua lesão ao deixá-lo trabalhar), veta o seu retorno, e o encaminha de volta ao INSS. Nova perícia é requerida, o perito veta de novo, e o ciclo recomeça. Ao ficar nesse limbo, nem a empresa, nem o INSS arcam o salário do trabalhador, que fica sem renda.
Então o trabalhador finalmente resolve acabar com aquilo e abandonar tudo. Pensaram que acabou o drama?
Quer sair? Demita-se.
Seria simples e óbvio, se não existisse algo chamado FGTS. Se a pessoa pedir demissão, perde imediatamente o direito de receber o FGTS e outros direitos trabalhistas – que, dependendo do tempo de serviço, correspondem a uma boa grana. Então o operador tenta entrar num acordo ou pedir para ser demitido. Como é desvantajoso para a empresa, muitas não aceitam.
Aí surge o tal corpo mole de verdade. O trabalhador quer ser demitido e começa a chegar atrasado, não trabalhar direito, sempre explorando essas falhas mais leves, pois se fizer algo grave tomará uma justa causa e será demitido sem direitos adicionais.
A empresa não demite, o trabalhador não pede demissão. E o final disso já podemos ver: processos e uma sobrecarga extra ao já sobrecarregado judiciário.
Vejam só como uma simples doença dos tempos modernos gera tanta confusão e dissabor…
Dr. Health
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