Uma pesquisa do Ministério dos Direitos Humanos de 2018, revelou que grande parte dos abusos sexuais contra crianças ocorreram dentro de casa, sendo que 40,8% foram cometidos por seus pais ou padrastos. Em meio a isso, como construir uma relação em que os homens possam ser cuidadores responsáveis e confiáveis?

Como falar de paternidade responsável em meio a tanta violência?

Nas últimas semanas, um abuso sexual horrendo chocou muitas pessoas: um pai estuprou até a morte sua filha, uma bebê de 27 dias. Apesar da atrocidade deste caso específico, estupros cometidos por pais não são raros, representam aproximadamente 40% dos casos de violência sexual infantil.

Uma das nossas pautas frequentes, aqui no papodehomem, é a importância da paternidade mais presente e responsável. Uma parentalidade mais equânime e equilibrada, em que homens sejam tão responsáveis e aptos ao cuidado passa por uma construção de uma confiança nos homens como potenciais cuidadores. Mas como falar sobre o tema e pensar essa paternidade presente e responsável num contexto social em que tamanhas violências seguem sendo cometidas pelos pais que deveriam ser cuidadores?

Estupro de vulnerável: do que estamos falando?

Quando uma criança é abusada sexualmente, este crime se caracteriza como estupro de vulnerável. Segundo a legislação brasileira, esse é um tipo grave de abuso, que se define quando a vítima de estupro tem 14 anos ou menos, também quando a pessoa, mesmo maior de idade, é considerada incapaz de se defender na ocasião da violência (como pessoas com deficiência mental ou física, ou alguém sob efeito de entorpecentes).


Legenda: Photo Shttefan by Unsplash

Quais os índices de crianças estupradas no Brasil?

Os números divulgados pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), em novembro de 2022, assustam. Foram 7.447 denúncias de estupro registradas entre janeiro e maio, sendo que 5.881 vítimas foram crianças ou adolescentes — algo próximo a 79% das denúncias. Estima-se que o dado real seja muito maior que este, já que muitos casos não chegam a ser denunciados.

Em maio de 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) divulgou que, ao longo de 2019, o Disque 100 recebeu um total de 17.029 denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Os dados compilados revelaram que:

Os homens são os principais perpetradores de violência

Muitas vezes recebemos comentários e perguntas que questionam “Por que vocês não mencionam as violências cometidas pelas mulheres?”. Uma resposta rápida é que, baseados nos dados, sabemos que as violências são majoritariamente cometidas por homens e que o nosso papel – como um portal voltado a questões de masculinidades – é chamar atenção para as responsabilidades masculinas em mitigar e lidar com estes problemas.

Por que os homens são assim? Culpa dos hormônios? É da natureza deles?

Cláudia Sales, psicóloga clínica, explica que não existe nenhuma característica genética ou hormonal que justifique esse tipo de comportamento violento por parte dos homens. Estes comportamentos abusivos estão enraizados na construção social que privilegia os homens em detrimento às mulheres ou às pessoas tidas como indefesas. Claudia Sales afirma que

“Obviamente que nem todos os homens são abusadores. Analisando o comportamento de um estuprador, ele tem o desejo de controlar a vítima, de fazer o que quer com ela. De maneira geral, a sociedade super capacitou o homem enquanto limitou as conquistas das mulheres. Tudo isso, além de uma série de outros fatores correlacionados, dá ao homem a falsa impressão de que as mulheres são sua propriedade. Existe uma tendência agressiva cultivada nesse homem para que ataque aqueles que subjugam inferiores e indefesos.”

Qual é o meu papel, como homem, em ajudar a prevenir esse tipo de crime?

Não existe uma solução rápida nem simples para um problema tão complexo. Podemos apontar alguns caminhos que seriam chave para a mudança:

  • Educação para que as violências de gênero sejam menores no futuro;
  • Educação sexual para que crianças possam identificar situações de abuso e pedirem ajuda interrompendo ciclos de violência continuada;
  • Conscientização e letramento para que pais, familiares e professores possam identificar sinais de risco e saber como lidar com eles;
  • Fortalecimento de políticas públicas para denúncias, acolhimentos da vítima e responsabilização do autor de agressão.
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Por que a educação é uma saída para redução desses índices?

Uma característica das violências sexuais contra crianças e adolescentes é que elas tendem a ser contínuas e a se perpetuarem ao longo de anos. O autor de violência também tende a manipular a vítima, convencendo-a de que ela tem culpa, ou de que algo ruim ocorrerá se alguém souber do que ocorreu.

Cláudia Sales reforça que, educar meninos e meninas para que compreendam o limite do seu corpo e de sua atitude perante o do corpo do outro é o primeiro passo a ser dado. Processos educativos possibilitam que as gerações de crianças e adolescentes de hoje consigam identificar e denunciar violências que estão sofrendo, interrompendo assim ciclos contínuos de abusos. Esses processos educativos podem ainda ajudar na criação dos meninos, que poderão crescer como homens mais conscientes, responsáveis, com referenciais de masculinidades menos violentas.

Considerando as tendências comportamentais nas quais os homens foram colocados como figuras centrais da sociedade, a partir da educação o indivíduo tende a compreender desde cedo que ele não tem direito sobre qualquer corpo que não seja o dele próprio.

Repensar a realidade

Estamos diante de fatos, pois crianças têm sido abusadas com frequência, principalmente pelos homens que consideramos que deveriam protegê-las. O que fazer diante de tudo isso? Você já se perguntou o que faria se tomasse conhecimento de casos como esse, seja por familiares, vizinhos ou amigos?

Se quisermos mudar essa realidade hedionda e, consequentemente, esse clima de desconfiança sobre os cuidados paternos, precisamos mudar também a nossa postura. Em vez de nos sentirmos ofendidos com a desconfiança sobre os pais, podemos entender que essa desconfiança tem uma razão de ser e que nossa responsabilidade é entender e buscar maneiras de mudar esse cenário. 

Aliados contra o abuso

Não podemos ser coniventes com essas agressões, muito pelo contrário, precisamos ser os primeiros a agir e assim liderar esse processo de mudança. É fundamental denunciar os casos dos quais tomamos conhecimento, além de fortalecer e divulgar canais de denúncia, como o Disque 100 (conhecido como Disque Direitos Humanos).

É necessário ficar atento àqueles comentários “estranhos” por parte de outros homens, desde os mais próximos aos mais distantes, que sugiram algum tipo de abuso contra crianças — mesmo que sejam filhas dessas pessoas. Outro aspecto importante é a escuta. Não ignore as crianças. Algumas delas tentam relatar os abusos e são desacreditadas por adultos que alegam, por exemplo, “excesso de imaginação”. Atenção também àquelas que mudam repentinamente de comportamento, tentar diálogo com elas e entender o que está acontecendo é outra forma de interromper o ciclo de abusos que ela possa estar vivendo.

Onde denunciar? O que fazer? Além do Disque 100, busque conhecer e divulgar as políticas públicas existentes na sua região para proteção das crianças e no combate a esses abusos. Enquanto sociedade, podemos ainda sugerir melhorias às instâncias municipais e estaduais. O que não é possível é fechar os olhos e ser conivente com esse crime absurdo.


publicado em 28 de Fevereiro de 2023, 17:09

Zé Ricardo Oliveira