“Pô, galera, eu acho que a paixão é uma bad…”
Esta semana alguém comentou isso no meio de um papo na Cabana. Eu achei esse comentário engraçado, curioso, espirituoso. E achei que fazia bastante sentido. Eu também acho que paixão é uma bad.
Digo, se entendermos paixão como sendo um sentimento forte de desejo/apego por alguma pessoa (poderia ser também por uma atividade, objeto, evento, ação), enquanto isso for correspondido e enquanto existirem todas as causas e condições para essa paixão ser fruída sem travas, isso sem dúvidas é algo agradável, gostoso, animador, muito bom de se experimentar.
Agora, se somos impedidos de alguma forma de fruir essa paixão, ou se ela não é correspondida na medida que esperamos, aí, bom… aí é uma bad, mano. E é a cama pronta pra todo o tipo de merda rolar: ansiedade, expectativa, orgulho, sensação de traição (ela não se sente ou se comporta como eu sinto que deveria), controle (através de dinâmicas de domínio ou submissão, tanto faz), agressividade, raiva, depressão etc.
Se olharmos com maior cuidado e vermos que não é possível manter condição alguma por tempo indeterminado, então adivinhamos que garantidamente haverá algum nível de aflição em qualquer relação onde houver algum nível de desejo/apego. E que isso possivelmente diga respeito todas as relações (ditas) amorosas.
Link Vimeo | É uma televisão falando, mas poderia ser uma pessoa apaixonada.
O papo seguiu, e alguém comentou algo assim:
“Acho inevitável a noção de que cedo ou tarde, com isso ou aquilo, haverá apego, posse, desejo e outras coisas que compõem o campo semântico da paixão.
Então, por mais que possa ser encarado como algo ruim, também é algo inevitável. A impressão que fica é que, por oferecer oportunidade pras pessoas se foderem, por causa dessa noção de que pouca gente tem estrutura pra isso, a escolha lógica parece ser se afastar.”
Bom… Não sei.
Sei que há a prática do afastamento. Em algumas tradições o afastamento é for life, e noutras é mais como uma medida provisória. A pessoa se retira por um período – que pode variar – de situações com potencial muito grande para gerar confusão (como relações amorosas/sexuais). Ela toma votos, faz resoluções, gera disciplina, aplica os métodos, desenvolve alguma capacidade de andar pelo mundo sem causar e sem ser pego por tanta confusão, e então se reintroduz. E pode-se fazer isso periodicamente, treinando visão e clareza mental, exatamente como quem treina um instrumento ou um esporte.
Sei também de tradições e métodos onde há a prática de se desenvolver essa habilidade sem se retirar, pelo meio da confusão mesmo. Esta é dita como sendo bem mais difícil, mas também mais poderosa, rápida, eficiente.
Há também quem entenda que as relações amorosas/apaixonadas/de casal demandem dedicação muito grande, e que esse mesmo tempo e energia poderia ser investido em outras coisas tidas como mais interessantes ou úteis. Temos muitos exemplos assim entre filósofos, cientistas, artistas, contemplativos, etc. Pessoas que simplesmente se interessam mais por coisas e atividades além ou diferentes das que temos por habituais. Mohandas Gandhi, por exemplo, sentia que era justo e imperativo dedicar todo seu tempo e energia pra atender as necessidades de muitas outras pessoas, mais do que as dele mesmo e da sua esposa. E ele de fato apostou nisso. O resto é história.
E mesmo nós, meros mortais, conseguimos em alguma medida ver as coisas surgindo e escolher quais abraçar e quais não, ou com que dosagem vamos nos envolver. E muitas coisas, a maioria delas, sabemos que é melhor não abraçar. Com algumas conseguimos fazer isso, e com algumas não. Ainda assim já fazemos estas escolhas o tempo todo, tanto que estamos vivos e funcionais.
“Mas eu vejo aí uma outra tentativa de controle, só que sofisticada, mais inteligente, com um pouco de arrogância até.”
Não vejo problema em exercer controle. Vejo problema em:
- Controlar para a satisfação de aspirações muito autocentradas, com habilidade e visão limitadas e;
- Controlar com esperança/ansiedade/expectativa ao resultado – perturbações que viriam do controle motivado por autocentramento.
Então, o problema na verdade nem seria com controle, mas com uma motivação baseada em autocentramento. E é um problema não porque é moralmente errado, mas porque ações motivadas por grande autocentramento tem maior potencial de causar danos do que de causar benefícios para nós mesmos e às pessoas ao redor.
Exercer controle com motivação apropriada e visão ampla é bom. Vidas são salvas e melhoradas assim, o tempo todo. E este raciocínio inclui os esforços de controle que exercemos sobre coisas como nossa saúde, corpo e qualidade de vida, por exemplo (nos alimentamos regularmente, buscamos conforto térmico, nos limpamos, pilotamos aviões, agendamos reuniões, fazemos cirurgias), e mesmo aqueles mais sutis, que exercemos ao produzir e usar linguagens, códigos de comportamento, ao nos comunicarmos, e todas as coisas que fazemos para conferir sentidos que não existem originalmente no mundo. Estas operações já são o resultado de nossa ansiedade por controle.
Comparações com psicoativos à parte, a existência de desejo/apego é condição necessária pra haver uma relação apaixonada – como são pra surgirem experiências aflitivas em geral. Sem uma coisa, não há outra. E faço isso mais como uma constatação particular mesmo – como faria para “se sairmos na chuva, vamos nos molhar” – e como sugestão de algo sobre o que pensar.
Então, antes do provável furor, deixo claro que não há julgamento de valor nisso. Não acho que se relacionar é algo ruim – talvez a nossa habitual inaptidão o seja, e o fato de que frequentemente achamos normal e bom colocar nossas relações na dependência exclusiva da tal paixão.
E não estou dizendo pra virarmos santos celibatários. Longe disso. Não queria sugerir soluções aqui. Só desconfio que podemos aprender a nos relacionarmos de um jeito melhor, menos sofrido. E penso que encontrar um jeito de fazer isso é o problema constante, inevitável e inadiável de cada um.
* * *
A Autópsia Filosófica é uma nova série do PapodeHomem, que vai dissecar frases que soltamos quase sem perceber e que nos mostram que existem visões por trás dos nossos olhos, pressuposições, afirmações subentendidas das quais nem sempre nos damos conta.
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