Nota editorial: esse artigo foi publicado em agosto de 2014. Mas à luz dos terríveis atentados em Paris, que mataram mais de 120 pessoas, cuja autoria foi reclamada pelo Estado Islâmico, consideramos relevante trazer essa discussão para a capa do PapodeHomem.

Para opinar sobre os problemas, precisamos primeiro entender melhor sobre o estamos falando.

 Para se aprofundar ainda mais, recomendamos ler mais da cobertura factual completa em sites como o G1. E assistir a esse belo vídeo do Vox – excelente site que “explica” as notícias – sobre as origens do Estado Islâmico (infelizmente, não tem legendas em português):

 

Segue abaixo nosso texto original.

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Um jornalista americano foi decapitado, no Iraque, e mais uma vez o Oriente Médio vira foco de notícias sobre fundamentalismo, conflito e mortes com o intitulado ISIS, ou Estado Islâmico, grupo auto-proclamado como um califado que atua na Síria e Iraque.  

 

James Folley, jornalista americano morto na semana passada
James Folley, jornalista americano morto na semana passada

Bato na tecla aqui no PapodeHomem porque sei que o que pode ocorrer de mais fácil é a confusão generalizada sobre o que está acontecendo por lá e sob quais circunstâncias. Chamar um povo (ou vários povos) de loucos, repetir que “lá, a coisa não tem mais jeito não” e sair culpando religiões ou políticas é de uma intolerância bem ruim.

Também não vão faltar opiniões e matérias ansiosas e precipitadas com aquela vontade inerente de alarmar e criar justamente a intolerância. Então, antes de isso acontecer, vamos consultar os entendidos. Novamente, cito o jornalista do Estadão e da Globo News, Gustavo Chacra, mestre em relações internacionais pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque.

Na semana passada, ele publicou o “Guia blogueiro para entender o ISIS e a Guerra do Iraque“, um texto que disseca o que está acontecendo no Iraque e Síria nesse momento.

No texto, ele separa as etnias e religiões existentes por lá: árabes xiitas (maioria no Iraque, mas não dominantes), árabes sunitas (minoria entre os árabes, mas dominantes na região — o Saddam Hussein era sunita), curdos (etnia, não religião), cristãos (religião, não etnia), e turcomanos (que podem, assim como os árabes, ser xiitas ou sunitas).

Disso, ele retoma a posição de cada um deles na história recente do Iraque e os desdobramentos, desde a derrota da Al Qaeda para os americanos e iraquianos até os acontecimentos atuais:

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Cada um destes povos possui a sua própria experiência na história iraquiana, especialmente nas últimas décadas.

. Os xiitas e curdos têm um sentimento de que foram vítimas de um Estado de apartheid nos anos em que Saddam Hussein estava no poder. O ditador, que era um sunita laico, tendia a proteger os sunitas e os cristãos, enquanto massacrava xiitas e curdos

 . Os sunitas avaliam que são alvo de perseguição no Iraque desde a invasão dos EUA. Washington teria favorecidos os xiitas, aliados do Irã, em detrimento dos sunitas. Pouco representados, eles se levantaram contra o Exército americano e contra o governo central em Bagdá. Faziam parte das forças sunitas tanto grupos seculares baathistas, ligados ao ex-ditador Saddam Hussein, como também facções ligadas à Al Qaeda antes inexistentes no Iraque (Saddam combatia duramente a rede terrorista de Bin Laden, de quem era inimigo). Mas os dois tinham um inimigo comum – os xiitas e os EUA.

 

Como os EUA e o Iraque derrotaram a Al Qaeda?

Inicialmente, no surge, a partir de 2006, os EUA conseguiram reverter esta oposição de sunitas ao pagar mesadas para líderes tribais sunitas em troca de apoio.

Fortes nas áreas sunitas, os líderes tribais se voltaram contra a Al Qaeda no Iraque e também contra os grupos ligados a simpatizantes de Saddam. No fim, conseguiam estabilizar a região com a ajuda de dezenas de milhares militares americanos  e do Exército do Iraque.

 

Como a Guerra da Síria contribuiu para o nascimento do ISIS?

Mais um excelente vídeo do Vox.com

O Ocidente, a Turquia e países do Golfo apoiaram os rebeldes na Síria contra Bashar al Assad. Estes rebeldes, em sua maioria, porém, compartilhavam dos mesmos ideais que a Al Qaeda, não de uma democracia sueca.

Jihadistas do mundo todo começaram a ir para a Síria para lutar contra Assad e perseguir minorias religiosas, como os cristãos, alaítas, drusos e mesmo sunitas moderados, que apoiam e são protegidos pelo regime sírio, enquanto o Ocidente apenas se preocupava em condenar Damasco, praticamente dando sinal verde para o avanço do radicalismo religioso de grupos como o ISIS e a Frente Nusrah, ligada à Al Qaeda.

 

Mas tem o ISIS e a Frente Nusrah, qual diferença?

Os dois eram aliados e ligados à Al Qaeda. Mas houve um rompimento quando o comando do ISIS decidiu não seguir mais a liderança central da Al Qaeda, se tornando independente.

Além disso, as ações do ISIS, crucificando minorias religiosas, estuprando mulheres e matando crianças foram consideradas muito radicais pela Al Qaeda e, consequentemente, a Frente Nusrah.

 

Mas a Frente Nusrah, ligada à Al Qaeda, ainda existe?

Sim, e é a principal rival do ISIS na luta contra o regime de Assad.

Leia também  Qual o verdadeiro sexo frágil?

Os dois grupos também lutam entre si e praticamente eliminaram do mapa facções menos religiosas da oposição, como o Exército Livre da Síria.

 

Certo, isso na Síria, mas e no Iraque?

A partir de sua base na Síria, o ISIS conseguiu se fortalecer. E, no Iraque, a prática de mesadas do surge americano havia acabado. E os EUA haviam retirado as suas tropas do território iraquiano em 2o11.

As áreas sunitas, mais uma vez, estavam insatisfeitas com o governo central em Bagdá, dominado por xiitas apoiados pelos EUA e pelo Irã. Isso eliminou a resistência à entrada do ISIS, agora mais forte, nos territórios majoritariamente sunitas do oeste do Iraque, próximos da fronteira com a Síria.

 

Por que os EUA retiraram as tropas?

Esta decisão foi tomada ainda no governo de George W. Bush, em 2008, e levada adiante pela administração Obama. Os dois presidentes defendiam a permanência de tropas remanescentes.

Mas o Parlamento iraquiano, em votação, não permitiu a permanência dos militares americanos. Isto é, Obama queria ter deixado cerca de 5 mil soldados baseados no Iraque, mas Bagdá não permitiu.

 

E a fuga de radicais Abu Ghraib?

Ao menos 500 prisioneiros, antes ligados à Al Qaeda, fugiram da prisão de Abu Ghraib. Entre eles, estão alguns dos mais radicais ex-integrantes da rede de Bin Laden.

A maior parte deles acabou se juntando ao ISIS e contribuiu para a tomada de território no Iraque. Este episódio, quase esquecido, foi crucial para o fortalecimento do ISIS.

 

Quem apoia o ISIS no Oriente Médio?

Figuras independentes do Golfo e habitantes sunitas mais religiosos do interior da Síria e do Iraque. Mas a principal base de suporte vem de radicais sunitas de outras partes do mundo, incluindo dos EUA e da Europa.

Há até uma parte dos guerrilheiros do ISIS sequer sabe falar árabe direito e não é da Síria e do Iraque.

 

Quem são os maiores inimigos do ISIS?

O regime de Assad na Síria, o Irã, o governo xiita do Iraque, os curdos iraquianos, o Hezbollah, os EUA, o Líbano (todas as religiões), Israel, minorias religiosas ao redor do Oriente Médio, Rússia, monarquias do Golfo e, hoje, até a Al Qaeda.

Basicamente, todo o mundo.

 

E de onde eles tiram dinheiro e armas?

O dinheiro vem de doações destas figuras independentes e também da tomada de cidades na Síria e no Iraque. Eles roubaram dezenas de milhões de dólares dos bancos em Mossul, segunda maior metrópole do Iraque.

As armas vêm contrabandeadas da Líbia, onde os rebeldes foram armados pela OTAN, do armamento de milícias opositoras na Síria pelo Ocidente e pelo Golfo e também do roubo de armamentos do Exército sírio e iraquiano.

 

Qual a estratégia para derrotar o ISIS no Iraque?

No Iraque, há uma estratégia com três pilares. Primeiro, os EUA estão lançando bombardeios estratégicos. Segundo, os EUA estão apoiando os peshmerga, como são conhecidos os guerreiros curdos, que servem de Exército do Curdistão, para combater o ISIS a partir do norte.

Pressionando o futuro premiê Haider Abadi a formar um governo mais inclusivo, com presença maior de sunitas, curdos e cristãos, se diferenciando do anterior, totalmente controlados por xiitas, há uma expectativa de os sunitas se sentirem mais representados. Desta forma, o Exército do Iraque, com apoio dos EUA, enfrentaria menos resistência nas áreas controladas pelo ISIS e poderia ter o suporte dos líderes tribais.

 

Qual a estratégia para derrotar o ISIS na Síria?

Não há uma estratégia clara. Alguns falam em armar os rebeldes moderados. Mas estes são irrelevantes. Seria como treinar um time de várzea brasileiro para enfrentar o Barcelona.

A única opção viável seria torcer para as Forças de Assad derrotarem o ISIS com a ajuda do Hezbollah e do Irã e apoio da Rússia. Isso já vem ocorrendo. Para os EUA, é impossível apoiar Assad devido ao histórico de crimes contra a humanidade, segundo a ONU, que teriam sido cometidos pelo regime sírio, embora haja um consenso cada vez maior de que ele seja o menor dos males hoje na Síria

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A marcação negra mostra os territórios ansiados pelo Estado Islâmico
A marcação negra mostra os territórios ansiados pelo Estado Islâmico

Ainda sobre o assunto, o Guga também publicou um texto sobre as principais semelhanças e diferenças entre o ISIS e o Hamas, grupo armado que luta, nesse momento, contra Israel.

Ainda sobre Oriente Médio, antes de a notícia da morte do jornalista americano, Chacra faz a pergunta: Por que ninguém comenta a melhor notícia do Oriente Médio?

 

Há uma excelente notícia no Oriente Médio e quase ninguém fala nada. As armas químicas da Síria foram totalmente destruídas menos de um ano depois de estes armamentos terem sido usados nos arredores de Damasco em ação atribuída pelos EUA e países europeus às forças de Bashar al Assad – o regime sírio, assim como a Rússia, acusa rebeldes pelo uso. Não há uma conclusão independente.

Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna <a>Do Amor</a>. Tem dois livros publicados