Esse texto faz parte da série de republicações do jornal digital Nexo publicada semanalmente às segundas-feiras. O artigo original de José Orenstein pode ser visto na página do jornal, onde você também pode fazer sua assinatura para ter acesso a 100% do conteúdo publicado.
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As redes sociais deram voz a qualquer um que tenha acesso à internet e uma conta no Twitter, Facebook ou YouTube. Ponto para a democracia: ampliou-se o debate, antes restrito a uma minoria que tinha acesso aos veículos tradicionais de comunicação. Ao mesmo tempo, o vozerio que se assomou nas redes deu espaço para grupos que antes se mantinham obscuros: os grupos de “haters”, propagadores de discursos de ódio e difamação. Problema para a democracia? Para a Alemanha, ao menos, sim.
No começo de abril, o governo alemão apresentou uma lei que é vista como uma das mais duras já criadas em países democráticos para combater o discurso de ódio e a difamação nas redes sociais. Pela norma, que deve entrar em vigor até meados de 2017, após aprovação do Parlamento, as plataformas que hospedam conteúdo considerado ofensivo — empresas como Twitter, Facebook e Google — podem receber multas de até € 50 milhões (cerca de R$ 180 milhões).
A norma, chamada em alemão pelo singelo nome “Netzwerkdurchsetzungsgesetz”, algo como “lei de coação das redes”, define as plataformas de mídia social com mais de dois milhões de usuários como alvo. As empresas ficam sujeitas a multas pesadas caso não tirem do ar, em um prazo de 24 horas desde que recebem uma reclamação, comentários e posts que desobedecem as leis alemãs contra os discursos de ódio.
Como mostra uma reportagem da revista “Foreign Affairs” sobre o assunto, um estudo feito a pedido do governo por um instituto que monitora a internet revelou que, entre 2016 e 2017, o YouTube (que pertence ao Google) deletou 90% dos conteúdos sinalizados como impróprios por usuários, ao passo que Facebook e Twitter apagaram apenas 39% e 1%, respectivamente. As três empresas haviam se comprometido, em 2015, a remover conteúdo apontado como criminoso por usuários das redes.
Esse estudo foi um dos argumentos usados pelo ministro da Justiça alemão, Heiko Maas, para defender a nova lei. Ele afirmou em nota, traduzida pelo site TechCrunch, que “só pode haver nas redes o mesmo mínimo espaço que há nas ruas para crimes e difamações. O principal problema é que as empresas não levam as reclamações de seus usuários suficientemente a sério”.
Por que criar a lei agora
A aprovação da lei pela Alemanha está relacionada com o calendário eleitoral do país. Em setembro de 2017, a chanceler Angela Merkel deve tentar se reeleger. Depois da surpresa da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2016, políticos alemães ficaram preocupados. Há um temor de ataques hacker feitos por russos e a divulgação de notícias falsas sobre Merkel possam afetar os rumos do processo eleitoral alemão.
A nova lei alemã contra os “haters” nas redes é específica: visa prevenir crimes, não notícias falsas — as chamadas “fake news”. Mas, segundo o ministro Maas, uma coisa ajuda a outra. “Não vamos estabelecer uma comissão da verdade em uma sociedade onde há liberdade de expressão. Mas como as regras que propomos são contra a disseminação de conteúdos criminosos, elas também podem servir para impedir as ‘fake news’ que tenham esses conteúdos. Se as ‘fake news’ se enquadram nos critérios de ofensa, calúnia ou má-fé, podem ser punidas como crime”, disse Maas.
O modelo alemão de liberdade de expressão
A lei alemã coloca em debate a discussão sobre liberdade de expressão em democracias ao pressionar as empresas americanas de internet, que são os principais alvos da norma. A lei opõe, assim, a visão americana e a alemã sobre o tema. Nos Estados Unidos, prevalece uma visão mais abrangente de liberdade de expressão, consagrada na Primeira Emenda à Constituição americana. Como lembra a revista “Foreign Affairs”, a União Americana pelas Liberdade Civis tem como ponto alto na sua trajetória, segundo o próprio site da organização, o caso que venceu em 1978, defendendo o direito de um grupo nazista fazer uma manifestação em um bairro de Chicago conhecido por abrigar sobreviventes do Holocausto.
Já na Alemanha prevalece a visão de que a liberdade de expressão pode ser limitada, especialmente se ela ameaça a própria democracia. É o que está previsto no artigo 18 da Constituição alemã, segundo o qual aquele que abuse do direito à liberdade de expressão para questionar a ordem democrática perde esse direito básico. Essa visão está ligada ao histórico totalitário do país, que viveu sob o regime nazista de Adolf Hitler entre os anos 1930 e 1940. Manifestações que incitam o ódio e que propagam a ideologia nazista são proibidas desde os anos 1950 na Alemanha.
Críticas à medida
Dentro da Alemanha, no entanto, instaurou-se um intenso debate sobre a lei que pune as redes sociais. Foi lançado em abril, logo após a aprovação da norma, um manifesto dizendo que ela ameaça a liberdade de expressão no país. O manifesto é assinado pela Associação Alemã de Jornalistas, por advogados, acadêmicos e organizações da sociedade civil.
“Acreditamos que é necessária uma estratégia política ampla para frear a proliferação dos discursos de ódio e as notícias falsas na internet. Reconhecemos que é preciso agir; no entanto, a lei não atende à necessidade de proteger a liberdade de expressão. Pelo contrário: ela põe em risco os princípios centrais da livre expressão”
Trecho do manifesto “Declaração sobre Liberdade de Expressão” – publicado em abril de 2017
A Global Network Initiative, uma organização internacional que defende a privacidade nas redes e tem entre seus membros empresas de internet, universidades e ONGs, também atacou a lei alemã. Para a GNI, ela “tem o potencial para acabar aumentando a censura na internet”.
O principal argumento daqueles que são contra a lei é que ela transfere para empresas privadas a função e a responsabilidade de coibir crimes de discurso de ódio, coisa que só poderia ser feita pela Justiça, seguindo o devido rito legal.
Sob a ameaça de receber multas se não agirem em 24 horas para remover conteúdos problemáticos, plataformas como Facebook, YouTube e Twitter tenderiam a fazer uma espécie de censura prévia ou em bloco, sem a devida análise de cada conteúdo.
A responsabilidade do Facebook sobre os conteúdos que seus usuários divulgam vem gerando debates no mundo todo, especialmente depois das eleições americanas de 2016. Em particular, a veiculação de conteúdos criminosos foi questionada depois que assassinatos foram transmitidos ao vivo na plataforma. Em maio de 2017, o jornal inglês “The Guardian” teve acesso a papéis internos da empresa que orientam a moderação de conteúdo, função que é exercida por 4.500 pessoas — e para a qual Mark Zuckerberg anunciou que contrataria mais 3.000.
Antes, em janeiro de 2017, o Facebook já havia anunciado que, apenas em Berlim, pretendia ter 700 funcionários, até o fim do ano — e de preferência até antes das eleições de setembro —, trabalhando na moderação de conteúdo. Depois dos Estados Unidos, a Alemanha foi o primeiro país em que a prevenção da divulgação de “fake news” começou a ser testada.
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