Após o malogro da seleção brasileira na última Copa do Mundo, chamou-me a atenção o desenrolar da história que tirou o jogador Elano da Copa.

No final das contas, toda a comissão técnica da seleção foi demitida, inclusive o Dr. José Luiz Runco, há um tempo considerável no cargo – em sua terceira Copa, se não me engano. Não sei se um médico tem muito a ver com o resultado em campo, mas me soa estranho ele ter sido demitido agora, e não em 2006, ano de semelhante fracasso. Teria algo a ver com a condução do caso Elano?

A última troca de médico da seleção brasileira ocorreu justamente em 1998, ano do corte de Romário antes da Copa e de toda aquela novela envolvendo Ronaldo Fenômeno antes da final contra a França, quando o médico era o Dr. Lídio Toledo.

Coisas que só Ricardo Teixeira deve saber…

Mas todo o caso me levou a uma reflexão sobre o papel dos exames complementares na medicina atual, que venho aqui compartilhar com os leitores da PdH.

O caso Elano

Sem legendas engraçadinhas aqui.

Elano recebeu uma entrada violentíssima contra a Costa do Marfim e foi substituído, com dores intensas na “canela”. Provavelmente foi submetido a uma radiografia local que não evidenciou fratura, prova disso foi a melhora clínica apresentada nos dias seguintes, o que levou o Dr Runco a garantir a presença do meia, poupado contra Portugal e Chile, no fatídico jogo contra a Holanda.

Porém, veio a imagem que todos vimos na TV: durante um treinamento físico, Elano sente a perna. É então solicitada uma ressonância magnética, que identifica uma condição que me causa arrepio: edema ósseo. Pausa na história para a explicação do Dr. Health.

Toda parte do organismo humano, quando sofre um trauma, pode inchar, que em “mediquês”, significa edema. Alguns mais ligados vão perguntar:

Mas, Dr. Health, osso é duro, como vai inchar?

O osso incha, sim. Por dentro! O osso não é composto apenas de minerais, existem células e vasos sanguíneos no seu interior, justamente estes componentes aumentam de volume. Ao aumentar de volume, a pressão intra-óssea se eleva. E, agora em bom português, isso dói pra cacete!

Explicado o que é edema ósseo, eis o motivo pelo qual isso me causa arrepio. Primeiramente porque eu tive isso em meu polegar direito. Goleiro de pelada, fui defender uma bola, e como não era uma Jabulani, não fez efeito e veio direto no meu polegar, pegando em cheio na pontinha. Ao menos evitei o gol, mas isso me custou sete meses de dor, com parca resposta à medicação (tudo bem que eu não ajudei, pois era residente e só queria saber de operar, operar e operar).

O que ajuda muito na reabsorção de um edema ósseo é a quantidade de músculo em volta. Tanto que dificilmente acontecem edemas ósseos na coxa. Já na perna… No polegar, então, nem se fala. É um tratamento chato, demorado, e fatalmente o paciente acabará desconfiando da sua competência. Pela lógica leiga, se não houve uma lesão séria (fratura), tem que melhorar rápido. Vai explicar isso… Medo!

A imprensa cai matando

Elano e Dr. Runco

Parte da imprensa criticou a condução do caso pelo médico da seleção, já que, após a melhora inicial do quadro, Runco garantiu que Elano estaria em campo contra a Holanda. No entanto, quando a ressonância foi feita, o edema ósseo estava lá.

Aí veio a pergunta cabal, motivo desse artigo: por que a ressonância não foi feita antes?

Corretamente, Runco explicou que ele tomou como parâmetros o exame de raio-x normal, o exame clínico do paciente e a evolução clínica favorável (até o fatídico treino). Só então ele solicitou a ressonância. Se esse “atraso” foi o fator que culminou em sua demissão, eu não sei. E apesar dos pesares, em matéria de medicina, a conduta dele foi correta. Talvez toda a carga de expectativa, num esporte de alto desempenho, exigisse o esgotamento precoce de todos os meios de diagnóstico, leia-se matar uma formiga com bala de canhão, mas isso não pode ser chamado de erro. Não dá pra sair pedindo ressonância pra qualquer pancada.

Era o gancho que eu precisava para falar de um tema detestável.

Medicina defensiva, que bicho é esse?

Quando estamos na faculdade, aprendemos (ao contrário do que dizem os defensores da medicina a la Cuba) que os exames são complementares, e nada mais que isso. Nada substitui a anamnese (história clínica) bem feita e um exame físico detalhado. Um sem número de patologias são de diagnóstico clínico. Aprendemos que “a clínica é soberana”. Em última análise, é a clínica que determina para onde deve seguir a investigação ou o tratamento. Ponto.

Aos 16 anos, eu senti uma dor de barriga absurda numa noite de fevereiro. Fui dormir achando que ia passar. No dia seguinte, a dor não só tinha piorado, como eu passei a vomitar tudo o que engolia. Comecei a ter febre. Algumas horas depois, relatei para minha mãe (médica) que a dor havia migrado para a parte inferior direita do abdome. Ela me examinou e constatou a presença do sinal de Blumberg (aperta-se a barriga, e ao soltar, a dor é maior do que ao apertar). Foi taxativa: “Apendicite aguda. Vai ter que operar”. Fui levado a um hospital, onde foi feito apenas um exame de sangue, que acusou uma leucocitose (aumento dos glóbulos brancos) imensa, sinal de infecção ativa. Na manhã seguinte, eu seria operado e meu apêndice, repleto de pus, retirado.

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Citei o exemplo aqui, porque esse diagnóstico que salvou minha vida foi feito apenas com um exame clínico e um de sangue. Nada de tomografias, ressonâncias e o escambau (acho que nem existia ressonância, isso foi em 1992).

A soberania da clínica me manteve no mundo dos vivos…

O desenvolvimento de novos e sofisticados exames complementares, a perda de confiança da população nos médicos devido a casos de erro divulgados pela imprensa, a proliferação de faculdades de medicina que formam tudo menos médicos, a paranoia de processos movidos por advogados de porta de hospital e a relação médico-paciente-convênio doentia, tudo isso acaba tornando o profissional médico, antes confiante na boa prática clínica, cada vez mais interessado em tirar o seu da reta.

Máquina de ressonância magnética (MRI, em inglês). Precisa mesmo?

Como vale o que está escrito, frequentemente o paciente quer é fazer exame. E pipoca aquela dúvida na cabeça: e se você não pede o exame e dá alguma coisa? Mesmo tendo feito um exame clínico bom, que não é infalível (por exemplo, nenhum exame clínico detecta um câncer de estômago em estágio inicial), vão acusá-lo de “erro”.

Mais de 90% das lombalgias são causadas por sobrecargas, ou seja, os exames complementares aparecem normais. Pedir exame indiscriminadamente, com vista a se precaver dos chamados “erros”, leva qualquer sistema de saúde, público ou particular, à falência. Além disso, vai criar a figura do médico como um mero solicitador e interpretador de exames. Isso sim é um erro. A boa prática exige a análise acurada do caso e, baseado na suspeita, a solicitação do exame adequado.

Com medo, o profissional acaba pedindo um exame, que muitas vezes ele sabe que não vai dar em nada. Dinheiro jogado fora.

Doutor, não vai pedir nem um raio-x?

A frase acima é clássica. Uma tendinite aguda, por exemplo. A história é típica, o diagnóstico é clínico, mas não adianta explicar que raio-x tem pouca serventia para caso de tendinite. Ele quer porque quer, e ainda alega que paga o convênio para isso.

No SUS, então, é pior porque essa prática de solicitação de exames desnecessários acaba onerando o sistema como um todo. Já não é bom; se formos pedir tomografias e ressonâncias para todo mundo, a falência é logo ali.

Aliás, quanto aos convênios, ainda há uma implicação para o profissional, pois as centrais de convênios monitoram os pedidos de exames mais caros. Se você, médico, sai pedindo muito exame, não será surpresa se chegar uma carta do convênio dispensando os seus serviços. Sem dó:

“Você pede muito exame, não interessa mais para nó$.”

De um lado, a pressão do convênio. De outro, o paciente que paga o plano e exige o exame. Mesmo que você se desdobre para solicitar exames apenas necessários, se der azar de pegar muitos pacientes que realmente precisam dos exames, tá lascado… Dureza.

E o Dr. Runco?

Dr. Runco exerceu uma boa prática, nos moldes da medicina tradicional. Condená-lo é condenável. Mas por se tratar de atividade esportiva de alto nível, e de uma entidade que nada em dinheiro, exclusivamente nesse caso teria sido melhor praticar uma medicina defensiva, pedindo logo uma ressonância de cara. Já teria definido se o atleta teria ou não condição de seguir na Copa e não teria garantido sua presença no fatídico jogo. Tirava o dele da reta.

Duvido que a partir de agora, para qualquer atleta do Flamengo que tenha uma contusão semelhante, ele não se defenderá pedindo até a dosagem de selênio da lágrima do olho direito…

Não é a prática médica ideal, longe de ser, mas vá saber se isso poderia ter salvo sua cabeça na seleção brasileira?

Concluindo…

Todas essas distorções e falhas de comunicação acabaram levando muitos colegas (e mesmo eu, muitas vezes) a praticar a chamada Medicina Defensiva, na qual você trata primeiro o prontuário e só depois o paciente. Prática que, longe de ser ideal, acaba por onerar um já combalido sistema de saúde. É a lei da selva imperando.

Dr Health, finalmente revelando por que muitos pacientes vão ao médico e ouvem “É uma virose”: a maioria acachapante das gripes e diarreias são viroses mesmo!

Mauricio Garcia

Flamenguista ortodoxo, toca bateria e ama cerveja e mulher (nessa ordem). Nas horas vagas, é médico e o nosso grande Dr. Health.