Hoje, por mais uma vez em minha pacata vida de ortopedista, fui agraciado com a frase que dá nome a esse artigo. Você vai lá, examina, radiografa o sujeito e – num exemplo de como nosso país educa bem seus habitantes em se tratando do básico da atenção à saúde – ele profere essa frase (acrescida de um ponto de interrogação) que dói nos meus pobres ouvidos. E não tem essa de “Isso é termo médico”, pois eu mesmo já sabia o que era uma luxação antes mesmo de resolver fazer medicina.
O pior é que dá um trabalho considerável explicar para a pessoa o que é uma luxação, corrigindo o erro global. Com isso, muitos colegas preferem deixar a pessoa continuar crendo naquilo (algo que eu mesmo já fiz) por ser mais cômodo. OK, pode não fazer diferença, mas dispondo desse espaço aqui, “é cumigo mermo”!
Sendo assim, vou deixar aqui minha contribuição para desmistificar alguns termos ortopédicos corriqueiros. E também para variar um pouco, pois só tenho falado de anticoncepção e AIDS.
Listo abaixo as variadas possíveis consequências ósseas de um traumatismo.
1. Contusão
É a pancada que não causou dano ósseo. O local atingido dói, apresenta um hematoma, parece que está quebrado, mas o raio-x não aponta fratura. Mas parece que mais da metade da população brasileira acha que isso é uma luxação. Talvez porque soe bonito. Luxação é algo bem mais grave. Vou chegar lá.
2. Fratura ou fissura
Quando a energia do trauma é suficiente para romper a estrutura do osso, a imagem que chamamos de “solução de continuidade óssea” aparece ao raio-x. Traduzindo: o osso quebrou. Embora muita gente diga “Não quebrou, só fissurou”, uma fissura é a mesma coisa que uma fratura, ponto. O osso está quebrado.
Tecnicamente, a fissura é que chamamos de fratura incompleta, uma rachadura. Mas continua sendo uma fratura. Essa fissura também pode atingir o comprimento total do osso, porém sem alterar sua forma, configurando uma fratura completa, sem desvio.
Finalizando, temos as “fraturas-fraturas”, aquelas clássicas onde o osso se rompe em duas ou mais partes e vai cada uma para um lado. São as fraturas desviadas. Resumo da ópera: fissura é um tipo de fratura. Quebrou!
E vamos agora à essa vedete tão popular. Com vocês, a…
3. Luxação
Como todos sabemos, os ossos se articulam uns com os outros por meio de estruturas chamadas articulações. Elas oferecem ao nosso corpo diversos graus de movimento. Algumas tem amplitude considerável (como o ombro, a mais móvel de todas) e outras quase nenhuma, como a articulação entre a fíbula e a tíbia no nível do tornozelo, que quase não se move, já que o tornozelo é uma articulação entre 3 ossos e a principal mobilidade se dá por meio do contato da tíbia com o tálus, um osso do pé.
Mas forças que causam fraturas podem também passar pelas articulações. E tais forças podem simplesmente separar um osso do outro, causando a perda de contato entre eles, uma deformidade comparável a uma fratura, e (agora sim!) temos a famigerada luxação. Não se trata de uma fratura pois os ossos estão inteiros, mas eles perderam o contato entre si.
“Foi só uma luxação” dói nos meus ouvidos porque uma luxação, dependendo do local e da energia do trauma, pode ter consequências gravíssimas. Alguns exemplos:
Luxação do joelho: O problema da luxação do joelho é que a energia do trauma é tão grande para conseguir separar a tíbia e o fêmur, que acaba lesando as estruturas que ali estão próximas. E o fluxo de sangue para a perna passa por um só vaso, a artéria poplítea, que fica atrás do joelho. Luxações do joelho têm uma incidência aproximada de 40% de lesão dessa artéria. Se o ortopedista não sabe disso, ele bota o joelho no lugar e pronto, problema resolvido. Seis a oito horas depois, o paciente perde a perna porque ficou sem suprimento sanguíneo.
Luxação do quadril: A cabeça do fêmur, que se encaixa na bacia, é uma região problemática quando lesada. Isso porque o osso depende de músculos ao seu redor para se regenerar, pois é uma estrutura dura, e o sangue circula de forma precária. Só que a cabeça do fêmur, por estar totalmente dentro do quadril, não tem músculo grudado. Ela recebe sangue vindo de artérias que nutrem o colo do fêmur e de um ligamento que a conecta à bacia, o ligamento redondo.
Quando ocorre uma luxação do quadril, ou seja, a cabeça femoral é arrancada da bacia, o ligamento redondo vai pro espaço. O suprimento, que já era ruim, fica péssimo e o quadril recebe muito peso. Isso pode acabar fazendo a cabeça femoral ir se enrugando como uma uva passa, pois seu osso acaba morrendo por falta de sangue. O quadril passa então a deslizar tão suavemente quanto um ralador de queijo, causando uma dor insuportável. Como eu gosto de explicar aos pacientes, o cara tem 40 anos e um quadril de 120. Isso é, no final das contas, incapacitante.
Luxação do ombro: Não é tão incapacitante, mas tem uma grande complicação. Em boa parte dos casos, quando o ombro sai do lugar uma vez, ele se torna instável, ou seja, o ombro começa a sair do lugar até em movimentos banais como pentear o cabelo.
Luxação do dedo indicador em sua raiz: Parece boba, molezinha de botar no lugar. No entanto, existe um capítulo à parte em ortopedia dedicado às luxações do dedo indicador. Devido a detalhes peculiares de sua anatomia, quando o indicador sai do lugar em sua base, existe uma estrutura na região, chamada placa volar, que entra ali no meio e não sai nem por decreto. Em 90% dos casos, você não consegue botar o dedo no lugar na marra por causa da maldita placa volar que fica ali. E só volta com cirurgia.
Luxação dos ossos do punho (carpo): É a ilusionista das luxações. O exame físico apresenta apenas um punho inchado. O raio-x, se não for olhado atentamente, pode enganar e passar por normal. Se não tratada a tempo, o resultado é rigidez de punho. Definitiva. Imaginem vocês…
4. Fratura-luxação
Como gosto de explicar aos pacientes, o estrago que a pancada pode fazer não sai pedindo licença às estruturas ósseas e ligamentares – ele simplesmente vai rasgando o que estiver pela frente. Sendo assim, pode haver uma combinação de fratura e luxação: o osso, além de perder o contato com o outro osso, ainda quebra. Essa é bem complexa.
5. Subluxação
Trata-se de um deslocamento parcial da articulação. Os ossos não chegam a perder o contato inteiramente, mas é nítido no raio-x que há um deslocamento parcial.
Concluindo: a frase correta
Bom, deixo aqui minha contribuição à humanidade, reiterando que o correto é “Foi só uma contusão”. Como vocês puderam ver, luxações são coisas sérias.
Dr. Health, satisfeito por ter dado uma noção de como é trabalhoso explicar isso para o paciente.
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