Nota da edição: diante de muitos pedidos recebidos sobre um esclarecimento por parte do PapodeHomem sobre a tentativa das operadoras de adotar um limite para a internet fixa, convidamos o Eduardo Pinheiro novamente para nos ajudar a entender a questão ponto a ponto. 

Ainda que a Anatel tenha proibido por tempo indeterminado qualquer alteração na forma como a internet fixa é ofertada aos consumidores, a questão está longe de se tornar superada. Portanto, lá vai nosso ponto de vista.

* * *

O assunto é confuso. Ele envolve as emoções dos usuários, jogatinas empresariais, legislação e regulação estatal – além de questões não tão simples de tecnologia e economia. Para somar, parece haver um bocado de desinformação sendo fomentada em torno dessas ideias, o que não ajuda em nada, então vamos com calma.

Em primeiro lugar, temos a questão da neutralidade da rede, que por si só não é uma ideia tão óbvia. Esse caso é emblemático especialmente com a confusão adicional causada por uma brigada ideológica para quem acha que qualquer intervenção estatal é necessariamente funesta ou um entrave para expressão totalmente desembaraçada de algemas regulatórias e “naturalmente benévola” do Deus mercado.

Neutralidade da rede?

Neutralidade da rede, em termos simples, significa que nenhum servidor ou provedor de conteúdo na internet – seja ele um portal web com textos, vídeos ou mesmo p2p – pode ser tratado de forma diferente por um provedor de serviço de internet, com relação a qualquer outro provedor de conteúdo na rede. O seu fornecedor de infraestrutura de internet não pode escolher bloquear ou deixar outros serviços mais rápidos ou mais lentos de acordo com interesses comuns, opostos ou negociatas.

O que você adquire ao pagar pelo serviço de internet seria tão somente uma via neutra para qualquer conteúdo disponível. Você não está pagando para sustentar uma bolha comercial particular, ou um pacote de conteúdo em especial.

Essa questão atual do limite de internet surge, então, por três fatores:

  • a neutralidade da internet como garantida pelo Marco Civil no Brasil, que ignorou a questão da inexistência de franquia como essencial para neutralidade;
  • o sucesso do Netflix;
  • e o fato de que os provedores de internet no Brasil, como nos EUA, sejam também fornecedores de TV, e portanto concorrentes do Netflix.
Cabou a internet, filhão. Jogos online, Youtube ou Netflix só mês que vem.

Não há nenhum quarto motivo, como, por exemplo, questões de infraestrutura ou lucros decrescentes das teles (enquanto fornecedoras de internet, e não enquanto provedoras de TV!). Essas são questões claramente usadas como cortina de fumaça perante as motivações óbvias.

Esses três fatores são causas do problema atual mas a neutralidade da rede –por mais que alguns distorçam como uma violação estatal do direito libertário de manter o altar mercado puro e imaculado perante qualquer intervenção possível – é absolutamente benévola.

A neutralidade é boa, ela só acaba coadjuvante nesse problema devido ao fato da legislação específica justamente não prever essa tensão entre as provedoras de TV por internet e as provedoras de TV a cabo. Um jeito fácil de dificultar o negócio das primeiras é simplesmente estabelecer franquias de dados, que simplesmente coíbem o uso da internet, especialmente streaming de vídeo. A “culpa” da neutralidade é ela não ter sido pensada de forma ampla o bastante. A culpa, de fato, é dos cartéis explorando formas de violar a neutralidade estabelecida atualmente.

O que ocorre é que para negócios pequenos ou iniciantes, a neutralidade é essencial. Afinal, se eles querem concorrer com quem tem uma vasta infraestrutura, ajuda um pouco que as teles (as guardiões dos portões dos conteúdos até o consumidor) não fiquem do lado de seus concorrentes – lembrando novamente que aqui no Brasil, como em outros lugares, os provedores de infraestrutura de internet são os mesmos que vendem TV a cabo.

Porém, antes a questão fosse tão simples assim. A própria relação complexa da Netflix com a neutralidade ilustra bem a problemática.

Questão Netflix

Como a Netflix já é um enorme sucesso, para ela a neutralidade é relativamente ruim.

Explico.

Nos EUA, onde a legislação sobre neutralidade ainda oscila, dois ou três anos atrás a Comcast – que também distribui TV – estava fazendo as conexões de seus usuários com o Netflix engasgarem. Tudo mais funcionava bem e rápido na internet provida por eles, menos o concorrente direto em termos de conteúdo audiovisual. Então, o que a Netflix resolveu fazer? Pagar lobistas para votarem a favor da neutralidade? Não. A Netflix simplesmente deu uma gorjeta grande para quem estava sequestrando sua banda. Assim, quando Amazon ou Hulu, por exemplo, viessem competir, a Comcast já estaria em acordo com a Netflix, e as verdadeiras concorrentes da Netflix iriam sofrer com as mesmas diminuições de velocidade.

Negociata pura e da braba, uma vez que a neutralidade não interessa à Netflix, sendo ela a líder no nicho de TV via internet.

Afinal de contas, ela sabe que o cabo já foi mortalmente ferido e está moribundo aguardando o caixão. A preocupação dela é com as concorrentes no seu espaço, o único que vai importar daqui poucos anos. Assim ela efetivamente não anseia por nenhuma neutralidade. Ela quer mais é firmar acordos que potencialmente prejudiquem os concorrentes. E ela já fez isso.

Não é diferente dos restaurantes que fazem algum acordo de fidelidade com a Pepsi ou a Coca-cola, e então algumas vezes você, ao ir a certos lugares, não encontra seu refrigerante favorito, apenas o concorrente. A Coca pintou a fachada e botou umas geladeiras por um preço muito em conta, agora ela quer o recíproco, a fidelidade. O problema é que há um pouco menos teles do que restaurantes, e um pouco mais serviços de internet do que marcas de refrigerante (não que esse acordo de fidelidade das bebidas doces com gás seja uma beleza do capitalismo – um grandão entrando em acordo com um, na maioria das vezes, bem pequeno, no início, pode até parecer tudo bem, depois, tem muita chance de virar bullying…).

Portanto, a neutralidade não é muito boa para quem tem dinheiro para esmagar os concorrentes, entrando em negociata com as teles. Ela é boa para quem quer entrar no mercado e concorrer. Quem é grande, não gosta dela. Quem é pequeno, sim. A regulação estatal de neutralidade é, de fato, contraintuitiva para aqueles que caem num libertarianismo quase anarco-capitalista, justamente uma tentativa de manter – novamente – o altar do mercado puro e imaculado para a livre concorrência, e nessa lógica, não prejudicar o usuário.

No “espaço de prateleira” infinito da internet, todos os “refrigerantes” precisam ganhar igual espaço. Historicamente, a internet foi idealizada assim, e funcionou exatamente assim até que alguém considerou o oposto como estratégia comercial, e então a regulação (a neutralidade) passou a ser necessária.

Livre mercado e informação perfeita

Já a questão econômica principal concerne o usuário, o menor dos players. Para o capitalismo funcionar bem, como Adam Smith já esperava, é preciso que as pessoas que participam dele sejam bem informadas. Há um termo em economia e teoria dos jogos chamado “informação perfeita”, isto é, num mercado ideal hipotético, funcionando em eficiência máxima, todos os participantes têm acesso a toda informação necessária para fazer as melhores opções racionais.

É claro que isso não acontece nunca: não existe mercado perfeito. De fato, o que muitas vezes ocorre nos mercados reais é o oposto: surge um incentivo à desinformação. A publicidade, por exemplo, normalmente não visa informar, mas sim provocar uma reação emocional aos produtos – portanto publicidade é um entre tantos elementos que dificultam a possibilidade de informação perfeita, aumentando a desinformação, ou simplesmente aumentando o ruído emocional que impede uma escolha racional (isto é, para usar a definição econômica, uma escolha benéfica pelo menos ao agente).

Mas essa é só uma das formas pelas quais o mercado incentiva a desinformação.

A questão da neutralidade passa também por isso. Quando você fosse adquirir um plano de internet, você precisaria saber todas as empresas associadas com aquela empresa, num plano específico (como se compra grades de canais no cabo) – e todas as mudanças e negociatas que pudessem vir a acontecer, para só então tomar sua decisão racional sobre qual operadora escolher.

Assim, alguma operadora poderia anunciar que o Netflix funciona muito bem, enquanto faria engasgar serviços de streaming da Amazon, Hulu ou Youtube – sem, é claro, deixar tudo isso evidente em seus anúncios. Sem regulação específica, nem em seus contratos! E mesmo que os anúncios fossem detalhados e perfeitamente acurados, quem sabe o que se vai querer daqui a pouco? Esses serviços, portanto, não são como os canais de TV, que por um certo tempo conhecíamos bem e não tínhamos dificuldade em escolher (e que, aliás, também já estavam se segmentando de uma forma extremamente complexa de entender nos últimos resfôlegos da TV a cabo, uns dois ou três anos atrás – 10 ou mais para quem usa p2p).

Claro, isso tudo considerando que fosse do interesse não regulado desses agentes informar com quem estão, estiveram ou estarão fazendo negociatas. Em outras palavras, neutralidade é a única regulação viável. Se alguém estiver favorecendo ou prejudicando um conteúdo, e isso for descoberto, precisa haver punição. Não deve ser função do provedor decidir de antemão o que deve funcionar direito na internet que contratei, muito menos considerando que eu só conheço o conteúdo (e a qualidade do streaming, por exemplo), depois que eu uso o serviço. Caso eu assine uma internet parcial, eu nunca vou sequer vir a conhecer o serviço dos concorrentes direito: vai travar tudo, vai vir tudo em baixa qualidade – isso se já não for bloqueado.

De fato, sem a neutralidade, novamente não pagaríamos por acesso, mas por conteúdo. Uma briga bizarra que já tivemos no Brasil, quando os jornais se sentiram incomodados com os portais de notícias. Você era obrigado a pagar um dinheirinho pro UOL junto com seu acesso à internet, porque ‘como afinal de contas você ia usufruir de toda a internet sem pagar os jornalistas do UOL?’ Um total absurdo. E a situação agora é semelhante, mas a briga é com a TV a cabo e não com a imprensa física.

(Um detalhe quanto à legislação brasileira de neutralidade é que ela permite que um serviço específico seja vendido – então o cliente não está comprando internet com serviço x, y e z, e sem serviço a, b e c, mas sim apenas comprando, mais barato, só o serviço y, que por acaso usa estrutura da internet. Por isso aqui ainda é possível às operadoras de rede celular oferecerem “pacote Facebook”, “pacote Whatsapp” etc – o que é uma concessão um pouco temerária perante o ideal de neutralidade, mas que foi feita em nosso Marco Civil).

Tendo dito isso, a situação atual no Brasil se deve em parte ao fato da neutralidade ter sido instituída como foi. Essa guerra entre os provedores de TV, que também provém internet, relativamente locais, e os novos serviços de TV pela internet, como o Netflix, globais, não era tão previsível 5 anos atrás. E a saída para prejudicar esse novo modelo de negócios foi tentar instituir a franquia – infelizmente prevista como possibilidade na legislação atual.

Quais são os argumentos?

Então entramos na questão econômica e técnica propriamente dita.

Algumas pessoas acham que essa limitação da internet é justa por uma questão de escassez e custo da infraestrutura da internet. Aqui precisamos falar em três pontos: segmentação de mercado, escassez artificial e Lei de Moore.

O argumento dessas pessoas nesse sentido é: “eu já pago luz e água de acordo com quantidade utilizada, portanto nada mais justo do que cobrir os custos com infraestrutura de internet, que aumentaram com o Netflix, com uma cobrança proporcional”.

Porém, infraestrutura de internet é um animal bastante diferente do que luz, água, estradas ou TV a cabo. Os quatro exemplos nos dão insights interessantes:

No caso da luz, há uma segmentação no custo. Até certa quantidade, no Brasil, ela é gerada de forma muito barata, via hidrelétricas. A transmissão tem um custo estabelecido e sem grandes variações. Depois de certo limite de uso, ela passa a ser gerada com combustíveis, de forma muito cara. Nesse caso, a estratégia de cobrar por quantidade faz sentido porque se quer coibir o uso, que envolve geração (com dois níveis de custo), e transmissão (com custo relativamente fixo).

Como isso se compara com a internet? Na internet só há um custo, que é o custo da conexão (ou “transmissão de dados”). De fato, não há produto algum sendo fornecido no provimento de internet: apenas a infraestrutura, um serviço – que é um custo fixo, e que aumentaria apenas de acordo com o uso de mais pessoas, e não o maior uso de cada pessoa, caso o que é vendido seja vendido corretamente (um espaço de transação de dados por segundo). Mas o próprio fato do custo aumentar em si é duvidoso de acordo com a Lei de Moore que examinaremos a seguir.

Também, como usuários, não sabemos o que cada coisa consome na internet: não é como os aparelhos elétricos que usamos, que têm sua carga assinalada obrigatoriamente numa etiqueta. Clicamos aqui, clicamos ali, e então o provedor nos avisa quando passamos do limite. Mas e porque estamos querendo limitar internet mesmo? Para coibir o uso. Isso é por uma questão de infraestrutura como as teles argumentam? Não, é simplesmente pela questão da concorrência com TV a cabo! A infraestrutura é o de menos, e vender só em megabit por segundo, com todos os altos e baixos de uso previstos, já seria o suficiente para manter a estrutura de acordo com o uso.

No caso da água, há um produto que é o tratamento e distribuição de um recurso comum. Embora o que pagamos seja o tratamento e a distribuição, o próprio recurso comum é escasso – se alguém usa muito, outros não o terão. Então, novamente a estratégia de coibir por quantidade faz sentido.

Como se compara com a internet? Seria como se todos os dados estivessem num conjunto de servidores só, controlado pelo provedor. E eles seriam limitados. Quando você entregasse muitos dados para um cliente, poderia faltar para o outro. O caso da internet não é nem um pouco assim. Quando o acesso de um cliente é prejudicado pelo acesso de outro cliente, foi simplesmente a tele que não calculou bem o que estava vendendo! Vendeu mais do que tinha, anunciou errado a velocidade para o consumidor, e então não quis aumentar a infraestrutura correspondentemente.

Como a Anatel obriga o fornecimento de uma porcentagem da velocidade (o que já é ridículo), as tele estão puxando o cobertor pelo outro lado, pela franquia. Mas o objetivo disso não é só o lucro de vender mais internet com menos infraestrutura – isso é só uma questão de anunciar as coisas corretamente e não enganar o consumidor. O objetivo é fazer o usuário pensar duas vezes quando for assistir TV pela internet, e assim permanecer no cabo!

A internet é um pouco mais como infraestrutura de estradas – após construídas, você precisa apenas consertar e ampliar. Você não vende um bem exatamente escasso, mas apenas uma conexão entre uma coisa e outra. Novamente, pagamos por um serviço, não por um produto. Com a cultura carrocêntrica, vemos cidades lotadas de veículos, com pouca velocidade de deslocamento. Uma solução já postulada seria cobrar pedágio em áreas com alta densidade de veículos individualistas, todos eles prejudicados (além dos outros que nem estão nos veículos) pela tranqueira.

A solução do limite de franquia é semelhante a cobrar um pedágio, mas na forma de cobrar um imposto por quilômetro rodado – ou mais claramente, um imposto sobre a quilometragem utilizada em seu carro quando passa de certo limite. Se você anda mais de 200 km por mês, seu IPVA aumenta – assim, você tende a usar menos o carro, as ruas ficam rápidas e não é necessário construir mais infraestrutura ou repensar o transporte. É exatamente esse o argumento de quem defende as teles porque a infraestrutura está sendo mais utilizada. Só que aqui há a crença absurda de ver o “cyberespaço” (que termo mais anos 90!) como o espaço urbano: algo de difícil ampliação. Os cabos e eletrônicos da internet são muito mais facilmente ampliáveis do que qualquer espaço urbano.

Por que o imposto sobre limite de quilometragem rodada por mês não é sugerido? Porque não se quer coibir o uso dos veículos! Se eles quisessem promover transporte público (como as teles agora querem promover a TV a cabo, que é negócio delas também), eles poderiam cobrar não só pela posse de um automóvel o imposto fixo que já cobram, mas pelo volume de uso do carro, com o claro objetivo de coibir o uso. Seria perfeitamente justo, e provavelmente pelo bem comum.

Alguém pode dizer “mas basta aumentar o combustível”: sim, e basta diminuir a velocidade nominal vendida na internet, ou aumentar o preço por velocidade, sem mexer na franquia. Mas a estratégia varia de acordo com o que se quer dar ênfase.

Falando nisso, alguém aí está vendo propostas para taxar carros mensalmente, quando eles forem usados acima de certa quilometragem? Alguém está falando nisso, ainda que o problema do caos urbano pelo uso abusivo de veículos individualista afete a saúde e o bem estar físico e moral de todos?

Não se vê esse tipo de proposta.

Novamente, o fato simples é que o choro das teles pela banda estar sendo mais consumida por novos serviços como Netflix é só para mascarar o problema real, que é a concorrência desses serviços com o cabo.

No cabo já temos uma coisa que se chama “venda segmentada”. A infraestrutura do cabo pode fornecer milhares de canais pelo mesmo custo (de infra) do que apenas alguns canais, mas você compra TV em “pacotes de canais” devido a acordos diversificados entre fornecedores de conteúdos e fornecedores de cabo. Isso se deve ao fato de que segmentar o mercado é mais lucrativo, assim você faz produtos “premium” e produtos “standard” – quem pode paga mais e ganha mais canais. Não é uma questão de infraestrutura de modo algum, é só um imperativo mercadológico.

O custo de oferecer todos os canais é o mesmo. Tanto que se você quer desbloquear um canal específico em algum momento, basta um telefonema e, sem que ninguém sequer venha a sua casa, tcharam!: canal desbloqueado. Em termos de infraestrutura, o custo do acordo com os provedores de conteúdo poderia ser dividido entre todos os usuários. O preço, nesse caso, se ele tem algo de justo nesse sistema, ficaria um pouco mais alto do que o produto mais barato – dependendo um pouco de quantos usuários estão hoje em cada segmento.

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Porém, isso sim seria uma espécie de “socialismo forçado” – embora, com a questão de desigualdade e liberdade de expressão, poderia também ser pensado algo do tipo: conteúdo de TV pode também ser segmentado para excluir parte da população perante informação necessária para manter o mercado mais justo! Segmentar cultura é prejudicar a própria meritocracia! A internet, nesse sentido, é mesmo socialista: não só você tem que poder chegar a qualquer coisa como qualquer outra pessoa, apenas mais rápido ou mais devagar, qualquer coisa tem que poder chegar a você como qualquer outra. De outra forma, há violação de isonomia e liberdade!

Mas talvez o fato seja que tanto alguns preferem pagar um pouco menos e não ter certos canais, quanto outros preferem pagar mais por mais canais: então a segmentação existe na TV porque beneficia clientes, provedores de cabo e provedores de conteúdo. E ninguém está pensando muito nas consequências ideológicas de impedir que certo segmento da sociedade não tenha acesso à iluminação política de Game of Thrones – só pra citar um exemplo atual – ou algo do tipo…

O importante aqui é entender que essa situação não é uma característica do desenho da infraestrutura. Pelo contrário, deve até custar um pouco mais desenvolver e aplicar os softwares que segmentam os canais – sem falar em treinar vendedores e produzir material de divulgação. Mas o mercado deixou assim, e ninguém achou tão ruim, então, tudo bem. Isso não quer dizer que em muitos casos não seja necessário regular.

E como a internet é/deve ser vendida?

A internet é vendida por velocidade, em megabits por segundo (uma medida por si só já bizarra e inflada, porque nosso computador normalmente mede em kilobytes ou megabytes por segundo, e é preciso dividir o valor em megabits por oito para comparar com o que você vê na sua notificação de download).

As teles agora querem aplicar uma restrição, a tal limitação, que seria em “dados totais por mês” (a Net já é assim há muito tempo, embora em certos locais não aplique a regra da franquia, apenas a meça – o que já tem um efeito psicológico de coibir o uso, diga-se de passagem). Ao comprar sua internet, portanto, como é com seu celular, seria necessário observar duas informações: velocidade e quantidade total mensal. Quem olha anúncios de planos para celular já sabe que a velocidade não é mais uma medida importante – há muitas variáveis e nunca se consegue a velocidade que se quer mesmo, e em todos os casos, considerando bateria, a máxima é o ideal. (Já, na internet fixa, alguém poderia muito legitimamente querer mais franquia do que velocidade…) O fato é que, para todo efeito prático, para o celular, o que importa é quantos dados por semana ou mês se pode transitar.

Na internet fixa, em vez de segmentar apenas por velocidade (ou até apenas por franquia!), se criou esse Frankenstein de segmentar por ambas, de um jeito que não fica claro para ninguém, e que impõe um fardo cognitivo altíssimo ao consumidor, por mais de um motivo.

O objetivo disso parece ser coibir o uso excessivo para permitir que a infraestrutura funcione bem – mas, espere, porque apenas com a velocidade a tele não consegue fazer esse cálculo sozinha? –, fazendo o usuário se vigiar no seu consumo. O fato é que o objetivo principal é inverso: fazer o usuário vigiar seu consumo, para então ele olhar para a TV a cabo como uma alternativa mais viável e barata de obter entretenimento.

Isso é a noção de escassez artificial. Embora a internet, no nível da infraestrutura – isto é, como o seu fornecedor de internet paga por ela –, custe sempre megabit por segundo, eles querem nos vender uma franquia mensal de forma a coibir o uso. Não é que a internet não seja um bem escasso: ela só não é um bem escasso no espaço de um mês, ela é um bem escasso em cada dado momento da internet. O espaço de um mês é uma medida totalmente arbitrária, desenvolvida exatamente para coibir o uso – eles claramente dirão isso: o objetivo é coibir o uso, para a infraestrutura funcionar melhor com o uso crescente de coisas que consomem muitos dados, como streaming de vídeo.

Só que a motivação não é manter a infraestrutura lucrativa, isso se poderia fazer com uma configuração de venda, em termos de preço e serviço prestado. A motivação é coibir o uso de streaming de vídeo.

Somando os usuários e todas as suas hesitações perante assistir a isso ou àquilo “será que vai consumir muito de minha franquia?”, a tele finge estar possibilitando o fornecimento da mesma velocidade, já que nem todo mundo a estará utilizando ao mesmo tempo.

No entanto, esse cálculo, para a tele, também é evidente e fácil de fazer em megabits por segundo! Se a tele não pode fornecer mais a mesma velocidade porque mais gente está usando coisas mais pesadas, ora, é só ela anunciar novos preços para cada faixa de megabit e pronto. Esse é o simples motivo pelo qual o argumento de preço e infraestrutura não faz sentido. A tele pode cobrar de qualquer jeito, ela prefere cobrar em franquia não porque isso tende a um valor “mais justo” em termos de infraestrutura, mas apenas e simplesmente porque isso beneficia a venda de seu outro produto. TV a cabo!

O fato é que não há escassez, os lucros das teles são estratosféricos, ainda mais no Brasil, onde se cobra um preço abusivo e inflado – ridículo em termos de qualquer outro país. O sujeito que tomou o ki-suco libertário vai dizer que a culpa da infraestrutura aqui ser tão cara é da Anatel e da regulação, mas o problema aqui nunca foi custo de infraestrutura. Esse é um negócio de concessão. É uma mina de ouro, em que você põe um bando de candango a emendar e dependurar fio, põe outro bando de desqualificados no telemarketing, e só fica assistindo o dinheiro entrar na conta.

E aqui, então, para enterrar definitivamente o argumento das teles e do atual presidente da Anatel, entra a Lei de Moore. Eu mesmo uso internet desde 1993, e fui um dos primeiros clientes da internet comercial no Brasil, que começou em 1996. Como os mais velhos sabem, usávamos modems barulhentos e nossa própria linha telefônica. Pagávamos a concessão do telefone, a conta do telefone, e mais nossa conexão com a internet: e no total dava o mesmo preço, senão mais caro que hoje.

Só que a velocidade era uma fração ridiculamente menor. A primeira vez que me conectei à internet, foi a 2k4 “bauds”, que são, em v.32 standard, mais ou menos 0.0096 Megabits por segundo (“banda larga”, quando surgiu o termo, no fim dos anos 90, começou em 0.128 ou 0.256 Megabits). E, é claro, como agora, a conexão nunca chegava a ser tão boa a ponto de atingir a velocidade total. Para abrir uma página como a que você está lendo agora, que tem um torno de 1 Megabyte, levaria uns 30 minutos – se no meio disso sua linha não caísse porque seu pai resolveu tirar a extensão do gancho para ligar para alguém. (Claro, na época eu não usava ainda interface gráfica, muito menos web, muito menos em um computador capaz de processar todos os scripts que estão nesse site. Mas, como comparação, está valendo.)

Por sorte, existe a Lei de Moore. Essa lei diz que a cada cerca de 18 meses a 24 meses os eletrônicos custam a metade, ou fazem o dobro. Estritamente falando, a Lei diz que dobra a quantidade de transístores no mesmo espaço num microchip. Existem muitos outros motivos para os eletrônicos ficarem mais baratos e fazerem mais, e eu como muitas pessoas um pouco mais velhas vivemos e vimos isso funcionando em primeira pessoa durante toda a vida – talvez em proporções variadas, mas sempre com redução de preços e aumento de velocidade, inclusive no setor de internet.

Porém, os preços e novidades que surgiam até mais ou menos 2008 não acontecem mais. E, enquanto isso, a Lei de Moore ainda está se aplicando muito bem, ainda que analistas prevejam seu fim para breve há alguns anos.

O que será que aconteceu nos últimos 5-7 anos aqui no Brasil, de tão diferente?

O Marco Civil? Mas a internet ainda é bem ruim e cara, com certeza não foram melhorias por maior regulação que causaram o aumento de custo das teles!

O Netflix começou a ser usado com força quando? Ano passado? Ao que me parece, o mercado estabilizou alguns anos antes na velocidade de 10 Megabits, o resto é apenas lucro das teles (usuário familiar quem tenha 30 Mbits, como eu, ou até 100 Mbits ou 200Megabit, até pode detectar alguma vantagem em sua internet caríssima, mas provavelmente a diferença em preço não chega nem perto de pagar o custo-benefício). Talvez eles estejam aplicando esse excedente que a Lei de Moore e cada vez mais barata fabricação escrava chinesa de todos os insumos proporciona para salvar o cabo, que tá na UTI e não tem chance alguma. Talvez eles estejam patrocinando lobistas ou subornando instituições pouco idôneas. Ou simplesmente está no bolso dos acionistas.

Qual será a opção mais óbvia, ó que dúvida cruel…

A Anatel e o Marco Civil da internet

O que a Agência Nacional de Telecomunicações pode fazer por nós?

Claro, a Anatel, como toda agência reguladora, tem seus problemas, mas se você ouvir que o Marco Civil ou a Anatel são as culpadas pelas “dificuldades” das teles, vá ensinar seu cachorro a fazer cocô na privada, essa pobre alma não tem jeito.

A Anatel e a legislação de neutralidade, como já explicado, são culpadas uma de estar dançando junto com o cartel da TV a cabo, e a outra de não ter previsto essa questão no Marco Civil. Esse é o limite da culpabilidade aqui. Claro, toda agência de regulação precisa ser vigiada constantemente, e o que se está fazendo hoje com relação à internet deveria ser feito com tudo mais que é regulado – e assim a regulação tem mais chance, não de ser perfeita, mas de pelo menos coibir um pouco os abusos que são cometidos pela assimetria entre players em nome da sonhada total liberdade mercadológica.

A opção anarco-capitalista é suicida: a regulação é necessária. Às vezes menos regulação pode ser bom para um determinado negócio e para a população num determinado momento do tempo, às vezes mais regulação é necessária – essa é uma posição centrista bastante de acordo com o liberalismo clássico (embora eu pessoalmente realmente seja de esquerda, já deixo isso claro). Órgãos reguladores sempre são sujeitos a corrupção e sempre precisam ser vigiados – a ideologia que é contra regulação, ponto, é simplesmente uma espécie de religião que acredita na bondade inerente da mão invisível, e daí perde o precioso tempo que deveria ser gasto em fazer a regulação funcionar bem, para destruir a regulação. Mas já escrevi sobre isso de forma mais extensa em Capitalismo: Vamos então gamificar para valer?

No fim das contas, a neutralidade da rede é uma coisa boa, e, além disso, para ela existir realmente não pode haver limite de franquia. Mas isso nossa legislação ainda não prevê, e o órgão regulador não está a fim de mexer. O certo é legislar direito. Reconhecer que essas tecnologias são muito mais dinâmicas que nossa capacidade de legislar, e colocar em prática mecanismos para legislar mais rápido. Internet tem que ser vendida de acordo com a especificação simples usada pela infraestrutura, que é “dados por momento curtíssimo de tempo”, e não “dados por mês”.

Então temos a motivação dessa tentativa de limitação perfeitamente clara.

Mas sigamos um passo adiante em porque o uso de uma medida de franquia mensal é problemática, e precisa ser regulada.

O fato econômico básico é que a limitação de internet coloca um fardo muito alto em termos de informação perfeita sobre o usuário. Em outras palavras, o usuário não sabe quanta internet está gastando de sua “mesadinha” quando clica em cada coisa. A Anatel estava pronta a exigir que o provedor avisasse quando passasse da franquia, e exigir um jeito de consultar o limite: mas os conteúdos em si são impossíveis de medir, ainda mais antes de clicar, e antes de serem consumidos. E você precisa saber que está ligando um chuveiro, e não uma lâmpada led, quando você toma uma ação que afeta diretamente seu bolso – ou sua capacidade de usar a internet numa velocidade decente até o fim do mês.

Ou, em outra analogia, é como se você pagasse um valor x para usar um parque de diversão, sem saber quanto cada atração custa. Você começa a usar as atrações, e se quiser tem a opção de perguntar para um atendente quanto ainda resta na sua franquia. Num dado momento, ele cobra de você “pronto, acabou, agora para continuar brincando é preciso pagar mais X”. Mas eu não sabia que a Montanha Russa era metade da minha franquia! Se eu soubesse, eu tinha andado mais na Roda Gigante. Azar o seu.

Eu, que entendo algo de TI, até sei mais ou menos quanto cada coisa usa. Não sei precisamente, e muitas vezes me encontro totalmente à cegas com o consumo de bits. Imagine um cliente normal, que não deve ser obrigado a entender de bytes e bits, resoluções, compactações, pacotes. Ainda assim, ter todo esse conhecimento seria a única maneira dele navegar mais ou menos – meio como um cego em dia de cerração usando a Siri para pousar um ultraleve – perante os diversos conteúdos da internet, em termos do quantos dados consomem.

O estado da internet, nos últimos anos, pelo simples fato de que a infraestrutura é hoje tão folgada em todos os lugares do mundo (inclusive aqui, embora eles não confessem isso, ao tentar vender escassez artificial), faz com que webdesigners nem se preocupem com o peso dos conteúdos. É comum ir a um site com menos de 1000 caracteres de texto, que é o que você quer ler, com mais de 3 milhões de caracteres de publicidade, fotos irrelevantes e design pesado ao redor. Vídeo, então, HD 720p é o mínimo que eu pessoalmente aceito, e em breve 4k será o padrão máximo e FULL HD 1080p o padrão mínimo.

Todo o mundo pensa a internet como esse espaço aberto no tempo de um dia, um mês ou um ano, e com os dados contados por microssegundos – mas daí o Brasil, e outros lugares em que o conteúdo de internet compete com o cabo fornecido pelo provedor e que também passa TV, vem e resolve computar de outro jeito. O problema é que a internet não é uma instituição local. Seguiríamos abrindo páginas de 3 Megabytes, ainda que aqui no Brasil todo mundo – que não esteja mancomunado com as teles – começasse a fazer seu conteúdo o mais magrinho possível. É uma situação inimaginável! Não dá para entender como toleramos isso no smartphone… ah, tá, ali já temos a bateria – e já estamos sempre focados, em primeiro lugar, nesse recurso limitado.

O que as teles querem é que eu reconfigure meu YouTube para ver tudo em qualidade de VHS, ainda que eu tenha velocidade, só porque é vídeo de gatinho, e eu não quero gastar minha franquia com isso? Ora, meus botões.

E ainda: só porque ela quer sustentar a TV a cabo, coisa que eu não tenho, e não recomendo a ninguém, desde, sei lá, 2001, quando descobri o p2p?

Essa carga cognitiva adicional – decidir o conteúdo pelo peso na banda total mensal – é totalmente injusta.

Resumindo

O volume mensal de dados não é um bem escasso.

O que é um bem escasso é o volume total de dados transitando num momento específico. E eles já não vendem exatamente internet em megabit por segundo? Essa é a única medida real. Essa é a única medida necessária para medir qualquer consumo. Se eles não conseguem suprir uma dada velocidade por megabit por segundo (porque venderam mais do que tinham! Porque as pessoas começaram a usar mais o que compraram!), vendam menos megabits por segundo! Isso é muito mais razoável do que o usuário ter que ficar policiando seu uso e virar um expert em o que consome e o que não consome.

Novamente, a Anatel até exige que o usuário seja informado do que está consumindo, mas na prática, o usuário precisa ter uma informação que não tem: quanta internet usará cada coisa que você clica?

Para tomar uma decisão bem informada, num mercado ideal, ele precisaria disso. Para que complicar? Ah, é. Para tentar salvar a TV a cabo, que já até recebeu a extrema unção!

Venderam errado, não esperavam consumo? Troca os fios e cobra mais dos novos clientes, se eles quiserem pagar, e se o concorrente não vender mais barato.

Agora, confundir minha mente e me fazer tomar decisões comerciais, sem a possibilidade de informação perfeita, a cada clique? Não vai ter golpe (pelo menos não das teles!), sinto muito.

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Nota do autor: Esse texto surgiu de dois posts no meu Facebook (este aqui e este aqui) incitados por um grupo de pessoas que insistentemente pediram minha opinião sobre o assunto.

Novamente, se a questão das ideologias (liberalismo, neoliberalismo, libertarianismo, anarco-capitalismo) contra a necessidade de regulação for a motivação para algum comentário, recomendo a leitura anterior de meu texto sobre o assunto bem como a considerada e reflexiva audição do curso da TMS: Rules of The Game.

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em <a>tzal.org</a>."