Uma tendência cada vez maior observada em praticamente todas as áreas do desenvolvimento humano – e a saúde não fica de fora disso – é o uso da tecnologia da informação no intuito de otimizar as mais diversas tarefas.
Os últimos dez anos revelaram uma transição a sistemas de gestão hospitalar cada vez mais informatizados, e coincidentemente este que vos fala tem exatamente 10 anos de formado, tendo vivenciado essa transição, nem tanto no SUS, mas claramente na saúde privada. Então faço aqui uma análise de onde estamos (especialmente no que tange ao combalido SUS) e benefícios potenciais.
Old school: tudo feito à mão
Nos primórdios de minha carreira médica, época da residência no meu querido Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ, podíamos dizer que sistemas automatizados eram um sonho distante.
Link YouTube – Monty Python | Tecnologia não se resume a máquinas caras que fazem “Piii”…
Lembro-me que uma vez precisei fazer um levantamento de prontuários de pacientes com determinada patologia, para um trabalho científico. Um verdadeiro inferno. Para começar, as folhas de alta dos pacientes com o diagnóstico final eram preenchidas à mão. Para gerar uma categorização, que hoje em dia facilitaria a busca do prontuário, seria preciso no mínimo um auditor revisando o prontuário e passando manualmente as informações para um sistema. Algo que nos dias de hoje pode ser feito online, apenas preenchendo um menu que ofereça a opção de diagnóstico mais adequado ao caso.
Isso teria facilitado muito a minha busca naquela época. Digitaria o CID (Código Internacional de Doenças) da patologia e pá! Instantaneamente, eu teria a listagem dos prontuários para minha pesquisa, diminuindo muito o que eu chamei de “prontuários perdidos”, pacientes que tinham a patologia referida e por algum motivo eu não tive acesso.
Num sistema automatizado, a questão do armazenamento e localização do referido prontuário seria bastante simplificada. O chamado prontuário eletrônico, muito em voga na rede privada de saúde, ainda causa alguma resistência entre os médicos, por questões até de segurança (o que eu escrevi tem a minha letra e meu carimbo; o que eu digitei, um hacker poderia alterar) e praticidade: um local onde trabalho me obriga a preencher tanto o papel como o prontuário eletrônico, haja paciência.
Há também a questão da documentação, afinal o prontuário é propriedade do paciente, e nos dias de hoje ainda vale o que está escrito. Há ainda muita discussão sobre a regulamentação do prontuário eletrônico por parte dos Conselhos de Medicina. Utopicamente, no caso da minha referida pesquisa, eu poderia de imediato ter acesso ao prontuário eletrônico dos pacientes, após a busca, e não ter sofrido o que sofri buscando informações em prontuários da espessura de um tijolo, ou seja, procurando uma agulha num palheiro.
Evoluindo (para uma modernidade arcaica)
Um sistema informatizado chegou ao HUCFF no final da minha residência médica. Já era algo, apesar de ter lá suas falhas, especialmente por terem sido colocados micros pré-históricos que levavam duzentos anos para ligar e que volta e meia perdiam a conexão com a única impressora do meu setor, o que levava a gente a sair no tapa na disputa de um micro que estivesse imprimindo as evoluções e prescrições.
Aliás, esse primeiro contato com um sistema informatizado gerou situações interessantes, como quando praticamente todos os micros “deram pau” e nós resolvemos contrariar uma orientação do hospital e passamos a fazer a prescrição manualmente. Com isso, desaparecia uma das vantagens do sistema: o controle da medicação utilizada e seu estoque ocorrido assim que o médico lançava a prescrição, de forma rápida, automática e eficaz. Ainda lembro da “bronca educada” que nós tomamos da direção, mas o nosso movimento se repetiu mais duas vezes, até eles ajeitarem aquela maldita sala de computadores. Simples.
Falando sobre prescrição e evolução, seria interessante um sistema aplicável ao pessoal da enfermagem, com espaço para anotações sobre medicações administradas e outras informações. Digo isso por causa justamente da questão das impressoras. Tudo que você faz no prontuário eletrônico acaba tendo valor apenas por jogar dados num sistema. Porque você tem que imprimir tudo e acaba voltando ao bom e velho papel.
Os sistemas hospitalares trouxeram a maior inovação tecnológica da medicina: o botão “repetir prescrição”. Ao menos na minha área, as prescrições médicas não variam de um dia para outro, então basta clicar em “repetir prescrição” e pronto. Lógico que primeiro você analisa se precisa alterar algo, mas em matéria de ortopedia, essa função foi um achado sensacional.
Outro contraste entre informatização e burocracia eu pude perceber quando servi o glorioso Exército Brasileiro após o término de minha residência. O sistema informatizado do Hospital Central do Exército (RJ) foi um dos melhores que eu já utilizei, mas novamente a questão da impressão das prescrições imperava e emperrava o serviço. Sem contar que o sistema acabava nos induzindo ao hábito de só imprimir as evoluções médicas quando o paciente tivesse alta.
Link YouTube – Scrubs | Um bom material impresso às vezes é a melhor solução ;D
E pior: não raro, os formulários contínuos para impressão acabavam. Cansei de utilizar impressos variados, imprimindo no verso. Quando aparecia alguma caixa de formulário, eu pegava uma quantidade considerável, escondia ou levava para casa e trazia quando eu precisasse. Senão eu ficava sem papel para imprimir. Houve o caso de um paciente que eu estava acompanhando, que ficou um ano e meio internado. No dia que ele teve alta, perdi quase uma hora só imprimindo todas as evoluções prévias. E ainda havia a possibilidade da impressora agarrar o papel, acabar a tinta, essas coisas… e você tinha que recomeçar.
Era uma “modernidade arcaica”. Se fosse tudo só no computador, que beleza!
Mergulhando no SUS
Já trabalhei nos mais diversos locais do SUS aqui no Rio de Janeiro. Desde hospitais de referência nacional, como o INTO (Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia, o único local do SUS que eu ainda trabalho), grandes emergências razoavelmente organizadas, como o Hospital Municipal Lourenço Jorge, passando por filiais do Afeganistão, como o Hospital Estadual Getúlio Vargas, no centro da guerrilha do Complexo do Alemão, e os piores lixos e “depósitos de pacientes”, como o Pronto Socorro Central de São Gonçalo e o Hospital da Posse, em Nova Iguaçu.
Destes hospitais, o único no qual a ficha do paciente era feita num computador era o Lourenço Jorge. E era disparado o hospital que o paciente levava mais tempo para chegar ao médico. Até porque o funcionários simplesmente digitava os dados do paciente, o que fazia a escrita manual ser mais rápida. Um cartão do SUS com tarja magnética e uma impressora a laser resolveriam isso facilmente, agilizando o atendimento. Nos outros locais, era feito um boletim de atendimento, que volta e meia ficava cheio de terra, sangue, água, dependendo do que acontecesse no hospital, totalmente manuscrito. E se os dados foram jogados num sistema posteriormente, não faço ideia.
Há muito tempo, por convicções pessoais, não trabalho em emergências do SUS, mas não acho que o panorama mudou muita coisa.
O sistema do INTO é um dos melhores que eu já trabalhei,. Para exemplificar, algo que me encantou quando comecei a usa-lo, foi o alerta de interações medicamentosas. Quando você prescreve um paciente e usa duas medicações que podem causar efeito colateral indesejado (exemplo: O uso de T3, que é hormônio tireoideano em pacientes que estejam em uso de digoxina, medicamento para aumentar a efetividade da contração cardíaca, pode levar a risco maior de toxicidade desta última), o sistema, antes de enviar a prescrição para a farmácia, emite um alerta automático. O que é bastante benéfico, afinal, as interações são muitas e não há como prever todas.
Outro ponto interessante era o cuidado com as alergias. No momento da internação, a pessoa que fazia a inserção dos dados poderia adicionar o item “Alérgico a” e uma eventual prescrição daquele medicamento seria bloqueada.
Sob esse aspecto, infelizmente o sistema do INTO é falho. E seria interessantíssimo, pois vivemos num país que muita gente toma medicamento e não tem a menor ideia do nome do mesmo (“Doutor, não sei o nome, mas é um comprimido branquinho”) e chama anti-inflamatório de antibiótico. Imagine se a pessoa iria lembrar do nome do medicamento que lhe causou alergia?
Uma vez um paciente disse que tinha alergia a um medicamento que ele não sabia o nome, e como estava com dor, prescrevi Voltaren. Dez minutos depois, ele desenvolveu reação anafilática, ficando todo empolado, correndo risco de fazer edema de glote e sufocar, mas felizmente ele estava num hospital e imediatamente apliquei hidrocortisona venosa. E podem apostar que esse paciente vai ser atendido em outro local, não vai saber a injeção a que tem alergia e o resto vocês podem imaginar.
Link YouTube | Samantha Shiraishi fala sobre compartilhamento de informação
Integração?
O que se vê na saúde atual, além da falta de informatização, é que, quando esta existe, se faz em forma de ilhas. Ou seja, cada hospital tem o seu sistema. Você é atendido em um local, tem todo o seu histórico lá, quais doenças a pessoa tem, medicamentos que toma, alergias, enfim, informações que fazem diferença e agilizam todo o processo de atendimento. O médico não perderia mais tempo com perguntas que já estão respondidas no prontuário do paciente. Mas se vai para outro local, é preciso começar do zero.
Do ponto de vista administrativo, isso gera economia e otimização de recursos. Se um paciente é portador de hérnia de disco e por acaso perdeu sua ressonância feita em outro local, bastaria uma consulta ao sistema integrado ao invés de solicitar novo (e desnecessário) exame. A prescrição eletrônica, além de gerar a quantidade exata de medicamentos que vai ser utilizada, permite um planejamento adequado da reposição do estoque, evitando gastos desnecessários e também a falta de medicamentos que pode ocorrer quando eles são comprados em lotes e só repostos quando o estoque mingua. Se acontece algum aumento de fluxo com o estoque baixo num final de semana, não tenha dúvida que vai faltar.
Outro problema com a informatização em ilhas é a migração populacional. Se uma unidade de saúde ganha em eficiência, é natural que as pessoas a procurem mais, o que acaba gerando sobrecarga. Algo simples de solucionar, bastando um programa geral de informatização e principalmente, de integração entre as unidades. Por exemplo, o SAMU, através de um sistema integrado, poderia localizar o hospital com menor volume de pacientes atendidos naquele momento, e direcionar suas viaturas para lá, novamente reduzindo a sobrecarga e otimizando o atendimento.
Bons exemplos…
Link Videolog | Matéria sobre a implementação do prontuário eletrônico no Chile
Além do Chile, a Dinamarca implementou um sistema parecido ao que citei nos parágrafos anteriores. Com vantagens como a possibilidade de o paciente consultar seu médico pela webcam e a acessibilidade dos prontuários eletrônicos por todos os médicos ligados ao sistema de saúde, a utilização dessa tecnologia integrada gerou uma economia anual de 120 milhões de dólares aos cofres dinamarqueses.
Obviamente o Brasil tem dimensões muito maiores e problemas também muito maiores que a Dinamarca, mas já há alguns avanços nesse sentido. Resta saber se há vontade política em fazê-lo.
Mais discussões rumo a um sistema brasileiro público integrado rolam no blog “Comunidade de Saúde em Rede”, patrocinado pela InterSystems do Brasil, empresa especializada na gestão de informação na área médica.
Vamos acompanhando. Sempre de olhos bem abertos.
Dr Health, cuja única reclamação do sistema do INTO é o bloqueio ao email, Orkut e YouTube…
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.