Vale a pena quebrar os ovos para fazer as omeletes?
Durante os piores expurgos soviéticos (1936-1938), enquanto milhões de pessoas dissidentes eram presas e mortas, um escritor romeno em visita ao país ouviu a rotineira justificativa stalinista:
"Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos."
Ao que ele respondeu:
"Bem, os ovos quebrados eu estou vendo. Cadê a omelete?"
O ser humano sempre esteve disposto a sofrer por suas utopias, mas as Utopias estiveram à altura do sofrimento?
A longo prazo, estaremos todas mortas
Perguntaram ao Mao Tse-Tung (1893-1976), líder da Revolução Chinesa (1949), qual ele achava que tinha sido a maior contribuição da Revolução Francesa (1789). A resposta:
"Ainda é cedo pra dizer."
A gente vive no micro, mas a História acontece no macro.
Os anti-Revolução
Muitas pessoas conservadoras são contra utopias e revoluções por princípio:
- Dizem que as omeletes nunca valem a pena os ovos quebrados;
- Defendem que mais vale a sabedoria e o exemplo coletivos de nossas pessoas antepassadas do que qualquer coisa que possamos inventar hoje;
- Confiam mais em ajustes e melhoras no sistema existente do que em rápidas mudanças institucionais.
Depois dos horrores das revoluções francesa, russa, chinesa, seria hipocrisia não respeitar essa postura cautelosa.
Rápida história da Turquia
Durante quinhentos anos, a Turquia foi o centro de um grande império, que incluía os Balcãs, a Grécia, o Oriente Médio, o norte da África.
Durante a Primeira Guerra Mundial, entretanto, o palácio de cartas ruiu e a Turquia, aliada aos perdedores, foi retalhada pelos vencedores.
Nesse extremo fundo de poço, emergiu Mustafa Kemal (1881-1938): liderou a Revolução Turca (1919), rejeitou os tratados, expulsou os estrangeiros, garantiu as fronteiras nacionais, criou uma nova e moderna Turquia, secularizou o país e até mesmo romanizou a língua turca, que passou a ser escrita no nosso alfabeto.
Por tudo isso, entrou para a História com o nome de Ataturk, ou seja, "pai dos turcos".
Cuba e Turquia: duas revoluções
Passei a semana passada na Turquia, hospedado na casa de uma amiga historiadora, filha de historiadores. Mal saí de lá e morreu Fidel Castro (1926-2016), líder da Revolução Cubana (1959).
Cuba e Turquia passaram por processos parecidos: ninguém pode acusar Ataturk ou Fidel de terem simplesmente promovido uma quartelada para benefício próprio.
Ambos os homens, em ambos os países, lideraram verdadeiras Revoluções. Ou seja, tentativas de mudança total, de refundar o país em novas bases, de criar um Homem Novo.
No processo, muitos ovos foram quebrados. Essa é a tragédia do século XX.
Mas, ao contrário do que sugeriu o escritor romeno, também foram feitas várias omeletes.
Talvez não as omeletes que merecíamos, que desejávamos, que precisávamos.
Mas omeletes.
Omelete cubana, omelete turca
A Turquia tem sido sim, durante um século, símbolo de que o Islã pode existir em um contexto secular e democrático.
Cuba tem sido, sim, por mais de meio século, símbolo de que um país socialista, com educação e saúde gratuitas e de qualidade, é viável mesmo contra tudo e contra todos.
Nenhum desses projetos está consolidado. De fato, são extremamente instáveis. Podem cair a qualquer momento.
Pelos últimos quinze anos, a Turquia tem estado em um rápido processo de des-secularização, sob fortíssima pressão islâmica. Nunca se viram tantas mulheres de hijabs e burcas nas ruas. Há três meses, sofreu um golpe de Estado e, ainda hoje, novembro de 2016, se veem militares e policiais patrulhando as ruas já de armas nas mãos.
Já Cuba sempre esteve sob fortíssima pressão capitalista desde a Revolução, foi invadida pelos Estados Unidos na Baía dos Porcos e ainda sofre o mais longo e mais criminoso bloqueio da História. Enquanto existia a União Soviética, ainda tinha algum apoio. Desde 1991, existe praticamente sozinha, na corda bamba, precariamente, mas orgulhosa.
Não seria nem um pouco surpreendente se, em 2017, caíssem a Turquia de Ataturk e a Cuba de Fidel.
Talvez, entretanto, seu maior legado seja não sua estabilidade ou longevidade, mas simplesmente a possibilidade da sua existência.
A possibilidade do entendimento histórico
Minha área de pesquisa é escravidão, no Brasil e em Cuba, no século XIX.
Nosso país aboliu a escravidão no século retrasado e ainda nem COMEÇAMOS a entendê-la na totalidade de suas consequências e ramificações sociais, políticas, culturais, econômicas. A escravidão ainda é o elefante no meio da sala, com quem evitamos até contato visual.
Imagine então se já entendemos o nazismo e o fascismo, Fidel e Ataturk!
A possibilidade da Utopia
Em 1989, com a queda do Muro de Berlim, uma Era Histórica aparentemente acabou.
Hoje, provavelmente, vivemos o começo de uma Nova Era: ainda não sabemos como será, quanto vai durar, para onde vai.
Talvez Macri e Temer, Trump e Brexit simbolizem o começo de uma Era Conservadora pós-Utopias.
Talvez esse conservadorismo seja apenas um soluço histórico.
Talvez tenhamos quinhentos anos conservadores antes das próximas Utopias.
Talvez tenhamos aprendido que Utopias definitivamente não funcionam.
Talvez tenhamos aprendido que Utopias apenas precisem ser implementadas com mais cuidado.
Como saber?
O século XX, no mínimo, provou que Utopias são possíveis.
Sabemos que sim. Realizamos várias.
Centenas de milhões de cascas de ovos quebradas não me deixam mentir.
Mas eram desejáveis?
As omeletes valeram a pena?
Estamos decidindo isso hoje, agora, com nossos textos e com nossos votos, com nossas passeatas e com nossa militância.
Vamos, assim, construindo, dia a dia, o que será essa Era Histórica que nos coube viver.
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Então, no dia de sua morte, no fechamento do século XX que ele pautou como poucos, um abraço ao Comandante Fidel Castro, um homem que ousou construir Utopias.
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Nota: A piada dos ovos quebrados está em "As piadas de Zizek: você já ouviu aquela sobre Hegel e a negação?", que li na casa da minha querida Renata Côrrea, que também está chorando o Fidel e nossas Utopias. A história do Mao é apócrifa mas deliciosa.
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Leia minhas crônicas de Cuba em 2016
1. um castro na ilha de castro;
2. cuba: perguntas e respostas;
3. como saber se um país é violento.
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