Qual é, exatamente, o problema com a educação do país? Quem é o responsável?
Falar que a educação é de péssima qualidade já virou tão clichê que ninguém aguenta mais (e, apenas para dar uma alfinetada para nos tirar da letargia, ficar repetindo isso à exaustão não nos faz uma pessoa crítica, só demagógica).
Porém, é importante conhecer a competência de cada ente federativo para realmente qualificar o debate político e não sair falando bobeira por aí, posando de engajado.
Estamos progredindo e chegamos ao terceiro texto da série “Para entender política”. Depois de termos apresentado a Constituição Federal e os direitos políticos dos cidadãos, passemos a um assunto que certamente irá melhorar sua argumentação em debates políticos: o federalismo.
O artigo 1º da Constituição Federal de cara diz que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (…)”, e dá a dica de que federalismo tem a ver com a união de esferas políticas distintas. Dando uma mão para a Constituição Federal, pode-se entender que federação seria a união de unidades públicas com autonomia política e constitucional.
As unidades políticas não são hierárquicas
Veja que interessante, um Município não está abaixo do Estado em que se insere, que, por sua vez, não está abaixo da União. Eles são, na verdade, complementares, o que não significa que o Presidente da República tenha algum poder hierárquico sobre os Governadores e Prefeitos.
A autonomia dos entes federativos é garantida de duas formas:
A primeira é estabelecendo fontes de custeio de suas atividades, seja pela instituição de tributos diretos a serem cobrados diretamente pelas unidades federativas, seja pela obrigatoriedade de repasses de receitas entre os entes federativos.
Existem, portanto, tributos federais, estaduais e municipais, e se você está indignado com a alíquota de algum deles, direcione sua crítica ao correspondente fisco: se está revoltado com o Imposto de Renda, buzine na união; se o problema é com o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação, grite com o Estado; se é com o valor do Imposto de Transmissão de Imóveis Inter-Vivos, reclame com o Município, e assim para cada um dos tributos existentes atualmente.
A segunda forma de assegurar autonomia é distribuir competências entre as unidades políticas. Jurista entende competência como autoridade ou poder para decidir sobre algum fato, e não exatamente como capacidade de realização satisfatória de algo.
Assim, dizer que Município é incompetente para legislar sobre direitos trabalhistas não é uma ofensa, mas apenas uma constatação de que não possui poder para tratar dessa matéria.
A ideia de distribuir competências é de permitir que a unidade política mais adequada trate dos temas que lhe afetam mais diretamente. Assim, assuntos considerados de interesse nacional, como segurança militar, direitos trabalhistas e normas de imigração, por exemplo, são de competência da União; assuntos de interesse local, como organização do plano diretor da cidade, são de competência municipal.
Os Estados, com algumas poucas exceções, ficaram com o que se conhece por competência remanescente, ou seja, o que não for da competência nem da União, nem dos Municípios, é dos Estados.
A divisão de interesses, como se pode imaginar, não é lá muito estanque. Justamente por essa sobreposição de interesses entre as unidades federativas é que inventaram as competências concorrentes, em contraposição às competências privativas.
Nas competências concorrentes, em que mais de um ente federativo tem interesse, a regra geral é que a União deve estabelecer regras gerais, enquanto que Estados e Municípios estabelecem regras específicas. Este assunto não é lá tão simples e dei uma boa simplificada, mas fiquemos com essa noção de que competências podem ser individuais ou compartilhadas.
Retomando o caso da educação e os papéis específicos da União, Estado e Município
Um belo exemplo de competência concorrente é a educação, e aqui peço licença para me desviar da Constituição Federal e dar uma olhadela na legislação infraconstitucional para explicar melhor o conceito de competência concorrente, e também para discorrer um pouco sobre esse assunto que virou carne de vaca em qualquer discussão política.
O artigo 23, V, da Constituição Federal diz que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.
A União, cumprindo seu dever de estabelecer regras gerais (previsto no artigo 22, XXIV, da Constituição Federal), aprovou a Lei n.º 9.394, com as Diretrizes e Bases da Educação. Se você tiver um tempinho, dá uma lida nela, só para se inteirar um pouco sobre o assunto.
Escolhendo apenas algumas competências mais interessantes, vemos que cabe à União:
(i) estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a garantiruma formação básica comum aos brasileiros;
(ii) assegurar um processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino.
Perceba que se julgou importante para a nação assegurar uma formação básica comum a todos seus nacionais e avaliar o resultado de tal educação. Já ouviu falar do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio)?
Então, é por isso que é o Ministério da Educação quem cuida do ENEM, e não outro órgão, pois se pretende verificar se essa base educacional comum atinge todos os cidadãos do país, e não somente de determinados Estados ou Municípios.
A União pode, também, organizar instituições de ensino por si, mas sem a obrigatoriedade de assegurar nenhum tipo de formação. Por isso vemos que existem universidades e escolas de ensino técnico federais. Os deveres de educação básica, mesmo, são dos Municípios e dos Estados.
Aos Municípios cabe oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, sendo permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.
O Município, assim, deve priorizar o ensino fundamental e, se sobrar uma graninha, fazer creches e pré-escolas. Se ainda assim sobrar dinheiro, aí sim ele pode investir em outros níveis de ensino.
Já aos Estados cabe assegurar o ensino fundamental e oferecer, com prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, lembrando que o ensino médio pode preparar o estudante para o exercício de funções técnicas. O mesmo raciocínio do Município se aplica a este caso: o Estado deve priorizar o ensino médio e técnico, depois o ensino fundamental, e só depois outros níveis de ensino.
Agora sim podemos seguir com a pergunta inicial do texto, “qual é, exatamente, o problema com a educação do país?”
É o currículo das escolas? Brigue com a União.
É a falta de creche ou um ensino fundamental porco? Culpe o Município.
É o ensino médio que não prepara para os vestibulares mais concorridos ou a falta de bons ensinos técnicos como alternativa à faculdade? Aí o negócio é com seu Estado.
Identificar com exatidão o problema que nos incomoda é o primeiro passo para podermos perseguir algo melhor e sair do discurso circular e vazio.
Indo mais fundo nas competências dos entes federativos
A União é o ente mais abrangente e tem como horizonte de preocupações questões que afetam o país em sua inteireza. Declarar guerra e celebrar paz, por exemplo, são atos que afetam a todos os brasileiros, então é natural que a competência para esses atos seja da União.
Questões monetárias – e aqui, refiro-me a questões que envolvem a nossa moeda, cuja unicidade permite a troca de bens dentro do país – e questões cambiais, que envolvem o controle das reservas de divisas internacionais, também são preocupação da União, assim como a manutenção de meios de comunicação dentro do território nacional por meio de serviço postal e da regulamentação das telecomunicações.
Mantendo essa noção de que os interesses da União são amplos, dá uma lida nos artigos 21 e 22 da Constituição Federal para ver quais são as outras competências (mesmo, vale entrar e ler). Você vai perceber que a distribuição de competências faz, pelo menos, um pouco de sentido, e, ainda que não saiba de cor todas elas, você poderá pensar suas opiniões políticas de maneira mais consciente.
Indo dos interesses mais amplos aos mais específicos, o Município tem competência para legislar sobre assuntos locais, como o plano de ocupação do solo, e organizar e prestaros serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo. Entenda que a questão não tem a ver com a importância da matéria, mas sim com sua amplitude.
Só para não dizer que não falei de flores, os Estados têm competências comuns com a União, como cuidar da saúde e proteger o meio ambiente, algumas poucas competências exclusivas, como a exploração de gás canalizado e a determinação de zonas metropolitanas, e competências residuais, que, como já dito, são aquelas competências que não são nem da União, nem dos Municípios.
Este assunto é um campo fértil e entender que os entes federativos têm vidas separadas é um bom começo para avaliar de forma mais clara os governos federal, estaduais e municipais. Questões como educação, sobre a qual tratei muito brevemente, saúde e segurança são mais bem analisadas após a identificação das competências e responsabilidades de cada ator político.
Seria excelente se pudéssemos eleger um único bode expiatório para problemas dessa complexidade e malhá-lo como Judas, mas a verdade é que esses temas envolvem uma coordenação política cuja ineficiência raramente se deve a apenas um governo.
Agora não vá mais deixar os candidatos te enganarem prometendo o que está fora da alçada deles
Um último aspecto sobre as competências que eu gostaria de indicar e que talvez possa lhe ser útil ao pensar seu voto é que os partidos e os próprios candidatos devem ter propostas condizentes com os cargos que pretendem ocupar (e, de forma reflexa, nós temos que ter expectativas reais sobre o âmbito de atuação de cada cargo).
Não nos adianta de nada que um candidato a Deputado Estadual defenda o matrimônio poliafetivo ou a redução da maioridade penal, pois essas matérias são de competência privativa da União – assim, o que ele pensa ou deixa de pensar sobre esses assuntos podem indicar uma possível identificação pessoal com os ideais do candidato, mas são inúteis do ponto de vista juspolítico.
Juro que tentei me conter e tratar dos assuntos básicos de forma direta. Assim como nos outros textos, muitas questões importantes e interessantes ficaram de fora, mas os comentários estão aí para isso.
Enquanto conversamos, vou agilizar o quarto texto dessa sériepara entender política, que tratará da divisão de competências entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
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Nota do editor: esse é o terceiro texto da série “Para entender política“, por meio da qual pretendemos elucidar, de maneira apartidária, conceitos políticos básicos para que possamos ter diálogos mais produtivos sobre esse tema tão importante. Afinal, é bem difícil palpitar quando não sabemos do que estamos falando.
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