Este assunto vem gerando discussões das mais diversas, inclusive sobre o reforço de antigos papéis sociais para homens e mulheres

“Homem não lava a louça e nem limpa a casa. Enquanto as mulheres colocam os homens pra lavar a louça e limpar a casa, ela só aumenta a energia feminina deles, fazendo com que diminua a energia masculina.”

De tempos em tempos as redes sociais são bombardeadas com o compartilhamento de vídeos — inclusive um, que começa como texto em destaque acima — cujos conteúdos estariam supostamente baseados nas ideias sobre energia masculina e energia feminina. Estes vídeos, geralmente produzidos para vender algum tipo de curso ou de mentoria, parecem trazer interpretações dos estudos das energias para forçar estereótipos do que é ser homem ou mulher. Para traçar um raciocínio mais crítico sobre o assunto, vamos entender o que são essas energias.

Vários olhares e nomes para a mesma ideia

O tema “energias” pode ser encontrado a partir de diferentes origens e em diferentes tempos históricos. Em linhas gerais, acredita-se que as energias estão presentes em todo o universo e que tendem a ser opostas e complementares (Sol e Lua, luz e sombra, dia e noite, frio e calor) e que é importante para os seres humanos as equilibrarem em si.

São diversas as manifestações culturais, espirituais, religiosas e até psicológicas que se fundamentam nas energias masculinas ou nas femininas. A Wicca, por exemplo, que se baseia em rituais antigos pagãos, tem sua essência nas figuras da Deusa Mãe e seu esposo Cernunnos, e suas respectivas energias.

No Taoísmo, essas energias são representadas por Yin e Yang. Na psicologia, Carl Gustav Jung (1875–1961), relata a existência de duas diferentes “forças” presentes no ser humano. De maneira geral, homens teriam prevalência do que é chamado de energia masculina e mulheres, da feminina.


Foto: AllGo – An App For Plus Size People by Unsplash

Reproduzindo padrões

Voltemos ao exemplo do Sol e da Lua citado anteriormente. Estudiosos contemporâneos sobre energia masculina e energia feminina, relacionam o Sol com força, potência, algo mais presente ao ar livre, no público. A Lua como algo mais passivo, que depende da luz do Sol, que está mais relacionado ao silêncio, a estar recolhido em ambientes privados. Mas por que dividir em masculino e feminino se características como força, liberdade, silêncio e acolhimento podem ser manifestadas em qualquer ser humano?

Se essas energias são forças da natureza, porque elas precisam ser relacionadas a um gênero? Essa correlação, que divide comportamentos e funções, não estaria reforçando caixinhas e estereótipos?

Não é difícil encontrar movimentos atuais que desenvolveram suas teorias com base em estudos sobre os astros e energias. Há correntes que oferecem vendas de produtos, cursos e retiros espirituais para que os homens entrem em contato com sua força masculina e desenvolvam ainda mais características atribuídas ao Sol/masculino, para conseguirem ascensão, por exemplo, na vida profissional e pessoal. Da mesma forma, há movimentos que estimulam o desenvolvimento das mulheres reforçando sua energia feminina — sagrado feminino — por meio do culto à Lua, das estrelas, etc.

Podemos encontrar correntes que incentivam homens a retomarem o que chamam de energia como uma forma de retorno a um suposto estado natural de poder e potência, buscando elevar essa energia ao máximo. Assim como também podemos encontrar vertentes que pregam o equilíbrio entre os polos, que todas as pessoas carregam em si tanto energias femininas quanto masculinas e que o ideal seria desenvolver um equilíbrio entre elas, homens entrando mais em contato com suas energias femininas e vice-versa.

O que veio antes? A força da natureza ou a caixinha?

Quando associamos algo que se entende como força da natureza a uma caixa de masculino ou feminino, isso não significa que os comportamentos considerados femininos e masculinos se justificam e se comprovam porque são assim em todas as instâncias, desde que o mundo é mundo? Na verdade, podemos entender que, a partir de um momento na história, as pessoas passam a ler o mundo e todos os seus elementos a partir de uma lente que separa tudo em masculino e feminino.

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Retrocesso nas discussões sobre papéis sociais

Existe um espectro de profissionais que circulam dentro e fora das redes que têm trabalhado e, inclusive, monetizado o tema das energias. Vendem-se treinamentos, cursos, aulas e workshops que supostamente irão guiar indivíduos e grupos a alcançarem o máximo de seus potenciais a partir do desenvolvimento dessas energias. No entanto, muitas das pessoas que estão comercializando o tema, estão fazendo este trabalho a partir de reinterpretações de estudos e, muitas vezes, sem o conhecimento necessário para tal.

Diversas vertentes relacionadas às energias masculina e feminina defendem que não existe superioridade entre elas, e que o importante é o equilíbrio. Ao mesmo tempo, a forma como nos apresentam esses conceitos — dois opostos — sugere que realmente exista um desequilíbrio energético que precisaria ser superado. Numa sociedade regida pelo masculino, esse desequilíbrio representa desigualdades entre homens e mulheres, preconceitos com tudo aquilo que é feminizado, misoginia, e por aí vai.

Temos muito a refletir sobre isso. MUITO!

Falar em equilíbrio de energia é de todo ruim? Essa conversa pode contribuir para reduzir as desigualdades entre homens e mulheres? Por um lado essa discussão pode render bons frutos, ajudando aos homens a não ficarem tão presos a uma caixa de masculinidades tão rígidas, expressando também comportamentos que antes teriam vergonha. Discussões e treinamentos que se baseiam em energias masculina e feminina e que pregam o reequilíbrio podem ajudar os homens a desenvolverem uma perspectiva de cultivo de cuidado, reflexão e calma.

Por outro lado, essa discussão das energias pode cair num conceito muito fechado de mudança individual: cada homem precisaria reequilibrar suas energias para resolver o desequilíbrio do mundo. Mas não podemos esquecer que existem ainda outros problemas que precisam ser olhados por uma perspectiva coletiva, como por exemplo, redução das violências, equidade no trabalho, etc.

Será que o conceito de energias também não estaria se tornando uma justificativa para comportamentos agressivos — tanto de homens como de mulheres — inclusive em relacionamentos abusivos? De maneira prática, seria possível um reequilíbrio social por meio do resgate da energia feminina?

Precisamos estar atentos para que a perspectiva das energias, não seja usada como uma pseudociência que justifica comportamentos desiguais (mais agressivos ou mais submissos) culpando uma suposta natureza que não pode ser mudada. 

Pensar de forma plural

Muitas pessoas que estão explicando e defendendo essas teorias energéticas não têm uma base sólida de estudo, partem de interpretações muitas vezes cheias de lacunas de conhecimentos e sem base científica ou antropológica.

O problema dessas teorias energéticas mal elaboradas é que elas marcam quais devem ser os papéis dos homens e das mulheres e excluem outras possibilidades do ser humano, inclusive aquelas que fogem a esse binarismo.

Precisamos ser críticos e observadores. Não dá pra simplesmente aceitar tudo o que é “jogado” nas redes sociais, principalmente se são pensamentos retrógrados ou que desumanizam alguma manifestação de ser do humano.

Por que a necessidade de categorizar as energias se poderíamos apenas valorizar potencialidades? Definir características específicas da energia masculina (como força e racionalidade) e da energia feminina (delicadeza e emoção), é justificar diferenças sociais e estereótipos com base em algo abstrato. Defender que só existem dois tipos de energias é afirmar que só existem duas possibilidades de ser, e isso é excludente.


publicado em 15 de Março de 2023, 18:12

Zé Ricardo Oliveira