O conselho acima me foi dado por um empresário, cuja fama será protegida ao longo deste artigo. Na ocasião, eu tentava captar recursos para um movimento social e conversava com ele sobre as dificuldades da minha empreitada.

Eu estava apenas começando minha vida profissional como ativista – ainda não estou muito confortável com a palavra ‘ativista’. 

Esse conselho não parecia, nem de longe, a coisa mais encorajadora a se dizer a um jovem que buscava mudar a política no Brasil, mas era sua maneira de olhar a minha proposta e não enxergar nenhuma saída financeira para um movimento.

Pro bem ou pro mal, sua resposta ficou comigo desde então, não como um adágio, mas como uma reflexão permanente:

“Seria melhor um fim horroroso a um horror sem fim no meu caso? Seria mais maduro da minha parte reconhecer desde o princípio a impossibilidade de sustentar um movimento? A partir de que momento eu jogaria a toalha?”

Isso pode soar como um fricote qualquer. Mas não é. Muito além dessa questão financeira, está algo muito mais grave, que é a interrupção de processos de mudança que partem da sociedade civil.

Temos visto emergir uma série de iniciativas da sociedade que almejam transformar a política e abrir novos caminhos para a participação social:

Ver essa onda nos faz pensar em uma nova maré democrática com pessoas engajadas em uma sociedade civil efervescente. E pela correnteza passa a ideia de que estamos prontos, de que estamos à beira de uma revolução da participação. 

(Há quem diga que essas águas agitadas são o sonho brasileiro da política.

Mas eu me pergunto: quanto fôlego terão essas iniciativas? Nesse tempo em que tudo está condicionado ao resultado, à efetividade e ao acerto, quem investiria em movimentos sociais?

TETO

Sabendo que movimentos trabalham com processos, redes e articulações, fugindo à lógica empresarial do resultado, e que seus objetivos finais (quando existem) escapam ao controle daqueles que os iniciaram. Quem serão os loucos a investir em mudanças políticas pelo lado de fora das instituições? Em um cenário tão orgânico, com critérios tão abstratos e intangíveis, quem financiaria a autonomia da sociedade civil?

Aos céticos sobre o papel da sociedade civil, é preciso deixar claro que existe um tipo de mudança que não será feita de dentro para fora, nem tampouco de cima para baixo. Precisamos sempre enfatizar que as instituições democráticas não são A democracia; nós somos a democracia. As instituições são importantes – é óbvio -, mas sozinhas não podem ser responsáveis pela qualidade da vida em sociedade. 

Em essência, movimentos sociais não visam à ocupação de velhas estruturas. Pelo contrário, estamos criando novas. 

Acreditamos que a solução para a democracia não se resume a pôr boa gente nos cargos de direção, entendemos a urgência de mudança de comportamentos e valores. A verdadeira transformação em curso é garantir que a sociedade seja independente do Estado, que a sociedade seja independente do Mercado. 

A sociedade precisa proteger os seus processos de comunicação e criação de consensos e dissensos. 

A ideia de que o poder emana do povo não pode apenas ser um verso bonito da Constituição, é preciso que a sociedade civil se proteja. Não apenas para sustentar as pessoas que atuam profissionalmente na criação desses novos espaços de interação política, mas para que esse poder emergente possa investir em campanhas, em pesquisas e em inovação. 

É preciso acabar com essa mentalidade de repúdio a organizações e movimentos sociais que conseguem ter dinheiro, não podemos acreditar que sua situação pré-falimentar seja algo inerente ao setor, como se a ausência de recursos fosse uma prova incontestável de honestidade ou até de fibra moral de seus idealizadores.

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Essa mentalidade está tão encrustada que, quando surge uma iniciativa que tenha desenhado um modelo de sustentabilidade financeira, como o Invisible Children – os responsáveis pelo vídeo viral KONY 2012 -, desconfiamos, repudiamos e colocamos em xeque a idoneidade de seus organizadores. Organização, por sinal, que, após gerar muita polêmica nos EUA, deve encerrar seus programas principais de divulgação e criação de awareness sobre a violência contra crianças na África justamente por ausência de recursos. Está aqui sua carta de despedida (está em inglês mas o Google está aí para ajudar). 

Só para ressaltar: não estou discutindo os méritos do trabalho da Invisible Children (embora até pudesse em algum futuro artigo), mas sim o fato de uma ONG que conseguiu jogar luz ao problema de exércitos paramilitares que capturam crianças na África, e sempre gerou polêmica por conseguir chamar atenção para a sua causa e reverter isso em recursos com vendas de kit, camisetas, braceletes etc. estar fechando com base em projeções financeiras. 

Isso acontece o tempo todo, com ONGs e movimentos: sem recursos, eles não têm gás para continuar. 

* * *

Enfim, a sociedade civil tem um papel a desempenhar na democracia, papel que nem o Estado nem o Mercado poderiam ocupar. Mas para que ela possa estar à altura de poder das outras esferas (preencher lacunas quando for o caso, provendo serviços e estudos, e disputando espaços quando necessário, contra os interesses do poder público ou de grandes empresas), é necessário que ela tenha mais recursos financeiros. 

O desolador do cenário atual, o que deixa muitos ativistas pelo caminho, é a assimetria dessa disputa: temos uma sociedade civil anã em uma batalha de gigantes. 

(Sei que tenho soado muito bélico, mas de fato existem disputas irreconciliáveis entre esses três setores).

Para sociedade civil, o importante, por ora, não é nem a vitória sobre esses titãs, mas sim a possibilidade de continuar no jogo. 

Uma cultura de doação que não garantirá nenhuma vitória por parte da sociedade civil, mas que ao menos impedirá a interrupção prematura desses processos. 

Tem um texto do Darcy Ribeiro que sempre ajuda nessas horas: 

“Fracassei em tudo o que tentei na vida. […]
Mas os fracassos são minhas vitórias. 
Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”

O horror para a sociedade civil não é a derrota em si, mas o fato de não se poder jogar. O verdadeiro horror da democracia é o seu fim. Democracia é processo e não ponto final. Democracia é reticência. 

* * *

Aqui tem mais algumas ONGs que podem ser bons caminhos, dependendo da sua aspiração.

Quer ajudar erradicar a pobreza? TETO;

Deseja combater a violência? Anistia;

Procura meios de combater o câncer? Abrale e Laço Rosa;

Gostaria de ver uma maior participação política? Minha Sampa/Meu Rio;

Quer incentivar o debate sobre reforma política? Eu Voto Distrital ou Eleições Limpas.

No Movimento por uma Cultura de Doação estamos no processo de criação de uma cultura de doação no país, em busca de fazer entender a necessidade de a sociedade civil ser financiada por si mesma e de evidenciar a importância que isso tem para a democracia. Se você tem interesse em discutir sobre o tema e confabular iniciativas e ações para o desenvolvimento dessa cultura, entre em nosso grupo no Facebook.

Ricardo Borges Martins

Cientista Político e ativista apostando em construções coletivas em lugares como o <a>Pacto pela Democracia</a>