“1% da população global detém mesma riqueza dos 99%”.

Esta é uma das manchetes que rodaram o planeta na última semana após a divulgação de um estudo da Oxfam (organização internacional de combate à pobreza) sobre a distribuição de riqueza no mundo. A pesquisa constatou, entre outros resultados, que “62 bilionários têm a mesma riqueza que 3,6 bilhões da população”. Os números soam absurdos mas não deveriam surpreender a ninguém. A banda toca assim já há algum tempo e, especialmente no Brasil, ela nos obriga a trocar o disco. Para combater a pobreza, precisamos discutir sobre como pagamos impostos.

Nem o mais altruísta dos cidadãos gosta de ter parte de seu dinheiro tomado pelo Estado. E justamente porque ninguém gosta de imposto, historicamente falar sobre tributação na esfera política é sempre uma agenda negativa para quem está no poder. Em razão disso, os governos sempre preferiram embutir impostos em lugares em que o contribuinte não percebe, preferencialmente no consumo, ao invés de tributar a renda, fonte mais sensível e perceptível ao cidadão.

Os impostômetros estão distribuídos pelo Brasil e, atualizados pelo mecanismo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, computam os tributos federais, estaduais e municipais totais até o momento

Ao contrário do que se espera, a questão tributária não envolve apenas a discussão ideológica do cobrar muito ou pouco imposto; a questão essencial para nós é que os impostos no Brasil são muito mal cobrados.

O Ministro da Economia de Luís XIV, Jean Baptiste Colbert, disse certa vez que o tributo é a arte de depenar o ganso fazendo-o gritar o mínimo possível e obtendo a maior quantidade de penas. E o ganso brasileiro esperneia e suas áreas mais sensíveis são as mais peladas. É a versão tributária da tosa higiênica.

Como cobramos impostos no nosso país?

O modelo tributário brasileiro está centrado na tributação sobre o consumo em vez de concentrar-se sobre a renda. Sei que isso parece uma observação técnica, mas é fundamental para entender o que está em jogo.

A renda costuma ser apontada como a forma mais justa de cobrança – é, inclusive, a principal fonte dos modelos tributários de países desenvolvidos: EUA, Reino Unido, Canadá etc., justamente porque varia de acordo com a capacidade contributiva do cidadão, cobra-se mais de quem tem mais.

Ao não priorizar a renda e concentrar a arrecadação sobre o consumo, o modelo brasileiro produz graves distorções, penalizando as camadas mais pobres da população.

Segundo dados do IPEA (2008) os tributos correspondem a 53,9% da renda de famílias que recebem até 2 salários mínimos e apenas 29% da renda das famílias que recebem mais de 30 salários mínimos. Isso acontece porque a maior parte da renda dos mais pobres está obrigatoriamente comprometida com o consumo, onde se aplicam as maiores taxas de impostos.

Já para os mais ricos, o consumo representa um percentual menor da renda total: quem ganha mais, pode poupar mais. Investimentos, aplicações e outras destinações para essa renda “excedente” (que não vai para o consumo) são menos taxada pelo governo.

Por exemplo, ao contrário do que acontece em boa parte dos países desenvolvidos, o Brasil cobra apenas de 4 a 8% no imposto sobre herança, o chamado ITCMD, enquanto países europeus e mesmo os EUA recolhem em torno dos 40%. E, como se não fosse o bastante, o Brasil também não tributa dividendos – a conhecida “divisão dos lucros” de uma empresa –, enquanto a tributação “integrada” de dividendos em alguns países (França, Dinamarca e Reino Unido, por exemplo) ultrapassa a casa dos 50%.

Portanto, como o consumo é a principal fonte tributária do Brasil e os mais pobres comprometem a maior parte da sua renda com o consumo, as famílias menos abonadas suportam uma carga tributária 86% superior à das mais ricas, ainda segundo o IPEA. É a isso que se dá o nome de regressividade do sistema tributário brasileiro: quanto menos dinheiro o cidadão tem, mais ele paga percentualmente.

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A tributação sobre o consumo acentua a desigualdade social e nos afasta de uma maior justiça distributiva. E já que tocamos no assunto, vale dar uma checada na ferramenta que o Nexo lançou para você comparar o seu salário com a realidade brasileira – o contraste nos permite entender um pouco mais o aperto por que passa a maioria das famílias no país.

Desequilíbrio e distribuição de renda

Mesmo que nas últimas décadas tenhamos conseguido combater a miséria e colocar as crianças na escola, não conseguimos resolver o desequilíbrio na distribuição de renda no país.

Tome-se o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) como exemplo. Embora o Brasil demonstre um crescimento de 36,4% entre 1980 e 2014, ocupando hoje um intermediário 79º lugar entre os 187 países do índice, se fossemos considerar apenas o IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano adaptado à Desigualdade) cairíamos 16 posições e estaríamos na última colocação entre os 100 países mais bem avaliados.

A nossa incapacidade em distribuir renda tem muito a ver com o modelo pelo qual cobramos impostos no Brasil. O gráfico abaixo, produzido pela Folha de S.Paulo, deixa clara a relação entre desigualdade social e impostos sobre o consumo no mundo.

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É claro que a concentração de renda é um problema crônico e complexo em todo planeta e não pode ser encarado de forma simplista. Em seu relatório, além da questão tributária, a Oxfam aponta diversos caminhos para diminuir o fosso entre ricos e pobres no mundo:

  • Pagar aos trabalhadores um salário justo que lhes garanta acesso a direitos fundamentais (living wage) e reduzir a diferença para a bonificação dos altos executivos;

  • Promover a igualdade econômica entre gêneros e os direitos das mulheres;

  • Controlar a influência das elites econômicas sobre o poder político;

  • Mudar o sistema global de Pesquisa e Desenvolvimento e o preço dos medicamentos para que todos tenham acesso aos medicamentos adequados e a preços acessíveis;

  • Investir progressivamente em políticas que ataquem a raiz da desigualdade; e

  • Como prioridade, criar um pacto entre os líderes globais para acabar com a era dos paraísos fiscais.

Cada uma das bandeiras levantadas pela Oxfam demandaria um papo à parte. Como as propostas são globais, em dependendo do país, elas fazem mais ou menos sentido. No caso brasileiro, sem menosprezar as demais bandeiras, precisamos considerar a força da questão tributária.

Reorientar a lógica da cobrança de impostos pode parecer um desafio utópico, enquanto é na verdade uma demanda conveniente para todos os setores da sociedade: desonera o sistema produtivo, incentiva a criação de empregos, diminui a sonegação (aumentando a arrecadação do governo) e, por fim, corrige uma injustiça imposta a todos, mas que é cruel com os mais vulneráveis.

Colabore pra mudar esse modelo

Trabalho com advocacy em diversas áreas e não sou um especialista em direito tributário. Mas quanto mais estudo o tema, mais tendo a achá-lo importante para o país.

Queria, portanto, fazer um convite a quem estiver interessado em aprender e, sobretudo, a agir sobre esse tema. Estou montando um grupo de trabalho para criar e fortalecer iniciativas por maior justiça tributária. Quem quiser participar ou ajudar de qualquer forma, me manda um email: ricardo.borges.martins@gmail.com

Vamos nessa?

Você encontra o estudo completo da Oxfam (em inglês) neste link e o relatório do Credit Suisse (base para o estudo) aqui.

Ricardo Borges Martins

Cientista Político e ativista apostando em construções coletivas em lugares como o <a>Pacto pela Democracia</a>