Esse texto faz parte da série de republicações do jornal digital Nexo publicada semanalmente às segundas-feiras. O artigo original de João Paulo Charleaux pode ser visto na página do jornal, onde você também pode fazer sua assinatura para ter acesso a 100% do conteúdo publicado.
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Um dos muitos efeitos nocivos dos seis anos de guerra na Síria é a dificuldade de saber com precisão o que realmente acontece no país. Prova disso foi a morte de mais de 70 civis por inalação de uma substância química identificada como gás sarin, logo após um ataque aéreo realizado por forças do governo, na cidade de Khan Sheikhun, localizada na Província de Idlib, no noroeste da Síria, no dia 4 de abril.
O evento é importante, pois foi mencionado pelo presidente dos EUA, Donald Trump, dois dias depois, ao ordenar o primeiro bombardeio americano contra forças do presidente sírio, Bashar al-Assad, na base de Al Shayrat, de onde, segundo a Casa Branca, havia partido o ataque químico.
Buscando entender o último evento e todo o contexto da guerra que toma conta da Síria nos últimos anos, o Nexo propôs as mesmas quatro perguntas para dois estudiosos do assunto, com visões diferentes:
- Salem Hikmat Nasser, professor de direito global da Escola de Direito da FGV de São Paulo
- Cecilia Baeza, professora de relações internacionais da PUC de São Paulo
Assad foi responsável pelo ataque químico que serviu de justificativa para o bombardeio americano?
Salem Nasser A verdade é que, com exceção de algumas pessoas bem colocadas em governos e agências de inteligência, ninguém sabe quem foi o responsável. O mesmo é verdade para os outros ataques de igual natureza que já aconteceram na guerra da Síria.
Se os ataques anteriores podem nos servir de indício, é interessante notar que todos eles foram postos na conta do regime, mas até agora ninguém fez questão de demonstrar a sua autoria. Um pouco pelo contrário: o que sabemos é que sempre os ataques acabaram prejudicando os interesses do governo [sírio] e de seus aliados.
E o que sabemos é que, independentemente da autoria, os adversários do regime se valem desses ataques para reacender a guerra.
Cecilia Baeza Como para qualquer crime de guerra, é preciso que uma comissão internacional independente investigue os atos para estabelecer de forma irrefutável sua natureza e autoria. Tanto a Opaq (Organização para a Proibição de Armas Químicas) como a Comissão de Investigação da ONU sobre a Síria têm um mandato legítimo para isso.
'O número elevado de vítimas demonstra o caráter deliberado do ataque; não poderia ser o resultado de um vazamento causado por danos colaterais'
Porém, apesar dos protestos do regime, da Rússia e dos outros aliados de Assad, já existem indicadores sólidos que convergem para apontar Assad como responsável do ataque químico:
Após exames de sangue e de urina feitos nos feridos tratados na Turquia, foi confirmado que a população sofreu de um ataque com sarin. Além disso, o próprio regime confirmou que a aviação militar bombardeou a cidade de Khan Sheikhun, e os sistemas de radar indicam que os ataques lançados atingiram exatamente a zona onde foram encontradas as primeiras vítimas com dificuldades respiratórias.
Como explica Olivier Lepick, um pesquisador francês da Fundação para a Investigação Estratégica e especialista em armas químicas, o número elevado de vítimas demonstra o caráter deliberado do ataque; não poderia ser o resultado de um vazamento causado por danos colaterais.
A tese russa segundo a qual o exército sírio bombardeou um “armazém terrorista” que continha as armas químicas não se sustenta por um segundo. Quando estoques químicos armazenados são bombardeados, eles explodem, diretamente ou sob a influência do calor, mas não propagam o produto tóxico como se tivessem detonado corretamente.
De fato, o gás sarin é geralmente estocado de “forma binária”, com dois agentes químicos separados que são combinados unicamente antes da utilização, manualmente ou automaticamente. Para produzir tantos danos humanos como vimos em Khan Sheikhun, o agente tóxico tem que ser acoplado a um dispositivo de disseminação específica, como bombas, foguetes, aerossóis. Claramente, foi esse o caso.
Acredita que os grandes conglomerados ocidentais de comunicação fazem uma cobertura equilibrada do conflito sírio?
Salem Nasser Não. Isto não quer dizer que haja algum tipo de complô, ainda que seja sempre possível algum tipo de direcionamento e de manipulação. Uma razão mais provável me parece combinar algo de ignorância e algo de preguiça. Os últimos eventos nos oferecem alguns exemplos. Não está demonstrada a autoria do ataque químico. No entanto, apesar de ceder algum lugar à negativa do governo sírio, toda a cobertura se permite veicular a tese de que não há dúvida sobre a culpa do regime.
'Os meios de comunicação parecem legitimar, acriticamente, a versão americana dos fatos e o ataque subsequente sem lembrar que os mesmos atores já mentiram para nós antes'
Todos reproduzem a fórmula veiculada pelas agências de notícias, segundo a qual o ataque químico atingiu uma área dominada por grupos opositores ao regime. Ninguém, no entanto, fez questão de verificar que grupos são esses e muito menos de dizer que, no caso específico, trata-se da versão local da Al-Qaeda. Não teria sido assim se fosse uma área dominada pelo Estado Islâmico. Essa cobertura acaba servindo aos interesses das partes que estão tentando legitimar esses grupos radicais, renomeando-os, repaginando-os e fazendo-os passar por oposição rebelde e não radical.
Outro sinal que me causou impressão foi a insistência nos últimos dias em exibir as terríveis imagens das crianças atingidas pelo gás. Isso não é habitual e, nas circunstâncias, serve a legitimar as respostas do Ocidente e, especialmente, o ataque americano. Finalmente, os meios de comunicação parecem legitimar, acriticamente, a versão americana dos fatos e o ataque subsequente sem lembrar que os mesmos atores já mentiram para nós antes, já iniciaram guerras ilegais de consequências trágicas antes.
Cecilia Baeza O conflito na Síria é objeto de uma guerra de propaganda intensa. Desde 2014, não há mais jornalistas estrangeiros realizando reportagens de forma independente – o regime ainda permite a visita de jornalistas mas devem permanecer sob o controle do Exército –, e isso complica muito a situação. O regime e os rebeldes se acusam mutuamente de divulgar falsas informações. Contudo, também existem jornalistas sírios que arriscam literalmente a vida para contar o que está acontecendo. É o caso do coletivo “Raqqa is Being Slaughtered Silently” [Raqqa, cidade síria, está sendo massacrada silenciosamente, em português], que tenta cobrir a atuação da organização do Estado Islâmico, e o “Kafr Nabl media center” que denuncia os crimes tanto do regime como de Jabhat al Nusra [um dos muitos grupos armados organizados que atuam no país].
'O problema é que quem alimenta essa suspeita são precisamente as mídias controladas por Estados que estão envolvidos diretamente no conflito, como RT (Russia Today) e Sputnik, que são ligados ao governo russo, são a voz do Kremlin'
Por outro lado, existe essa suspeita de que a mídia ocidental não estaria fazendo uma cobertura equilibrada do conflito. É verdade que os grandes conglomerados ocidentais muitas vezes tendem a deformar ou se desinteressar de conflitos em razão de seus preconceitos culturais ou de seus interesses. Acontece muito na África – ninguém fala da República Democrática do Congo por exemplo – e no Oriente Médio.
No caso da Síria, o problema é que quem alimenta essa suspeita são precisamente as mídias controladas por Estados que estão envolvidos diretamente no conflito, como RT (Russia Today) e Sputnik, que são ligadas ao governo russo, são a voz do Kremlin. A mídia ocidental é mais diversa do que parece: The Independent e The Guardian no Reino Unido, por exemplo, têm visões opostas em relação à guerra na Síria.
Existem muitos jornalistas ocidentais que realizam um trabalho sério e documentado que não merece ser jogado no lixo. O leitor deve formar sua opinião a partir de uma reflexão crítica sobre a produção midiática, se perguntando: Quais são as fontes? Quem fala? Sem cair numa visão conspiracionista.
Qual deveria ser a postura do Conselho de Segurança da ONU diante desse conflito?
Salem Nasser O Conselho de Segurança sempre dependerá de acordos políticos entre seus principais membros, nomeadamente os membros permanentes [EUA, Rússia, China, Reino Unido e França]. Num caso da Síria, em que esses membros estão em campos diferentes, ficam limitadas as suas ações.
O que razoavelmente se pode decidir em circunstâncias como as atuais é o estabelecimento de mecanismos de investigação que determinem a responsabilidade pelos ataques químicos. Era nesse sentido que caminhavam na reunião que precedeu o ataque americano. Faz pensar que aquela reunião só serviu, para quem a convocou, para que pudessem exibir as fotos das crianças e logo se autorizassem ao ataque.
Cecilia Baeza O Conselho de Segurança está demonstrando que seus mecanismos de tomada de decisão estão totalmente falidos. Em 2005, todos os Estados membros reunidos na Cúpula Mundial das Nações Unidas adotaram formalmente o princípio da responsabilidade de cada Estado de proteger a sua população contra o genocídio, os crimes de guerra, a depuração étnica e os crimes contra a humanidade.
Na Cúpula, os líderes mundiais também concordaram que quando um Estado não cumpre essa responsabilidade, a comunidade internacional é responsável por ajudar a proteger as pessoas ameaçadas com tais crimes. Isso claramente não está acontecendo na Síria, e o Conselho de Segurança é responsável por essa incapacidade de tomar as decisões adequadas.
O principal problema vem do poder de veto detido pelos membros permanentes. No caso da Síria, a Rússia está bloqueando sistematicamente toda condenação do seu aliado Assad, assim como toda medida que permitiria, por exemplo, abrir um corredor humanitário para a população civil ou uma zona de exclusão aérea para limitar o poder de destruição das forças aéreas militares. Com o poder de veto, a Rússia protege o regime sírio da mesma forma como os EUA protegem Israel de qualquer crítica da comunidade internacional. O Conselho de Segurança deve ser reformado urgentemente para reencontrar sua legitimidade.
Quais os reais interesses da Rússia e dos EUA nessa situação?
Salem Nasser A Rússia trabalha para incrementar o seu próprio poder. Trabalha também para impedir o avanço da doutrina da mudança de regimes que os Estados Unidos tentam fazer avançar já há algum tempo. E trabalha para construir um equilíbrio no Oriente Médio em que seu papel esteja preservado. Por tudo isso, tenta assegurar que a Síria se mantenha unificada e razoavelmente forte.
Já os Estados Unidos trabalham para enfraquecer a Síria, já que este país e seu governo são adversários de Israel, dos chamados países árabes moderados, e dos Estados Unidos. Por isso, ainda que não seja confessado ou explicitado, o projeto americano parece ser o de manter a Síria dividida e fragmentada, em permanente tensão interna. Por isso também investe oficialmente nos grupos rebeldes não terroristas, à frente deles os curdos, para que estes dominem áreas do território sírio, e, extra-oficialmente, acaba deixando livre curso aos grupos terroristas para que façam o mesmo em outras regiões.
Cecilia Baeza Os interesses russos são claríssimos: manter uma aliança estratégica e uma presença militar numa região onde perderam muito terreno depois do fim da Guerra Fria. O regime de Bashar al-Assad é o último que dá à Rússia um acesso para o Mar Mediterrâneo e uma posição chave no Oriente Médio. Não tem necessariamente uma grande coincidência ideológica entre o regime sírio e o governo do Putin, fora talvez da retórica contra o “terrorismo islâmico”. Hoje, Assad tornou-se completamente dependente da Rússia, e qualquer mudança na posição de Putin afetaria a própria sobrevivência do regime sírio.
No caso dos EUA, apesar das aparências, os interesses não são completamente divergentes dos da Rússia. As duas potências coincidem na “guerra global contra o terror”, e ambas cooperam indiretamente na luta contra o Estado Islâmico. Isso explica em parte a razão de os EUA deixarem a Rússia atuar na Síria sem opor muita resistência. Tampouco têm uma enorme competição econômica, porque os interesses americanos já estão bem posicionados no Iraque e na Arábia Saudita, dois produtores de petróleo bem mais importantes do que a Síria. Outra preocupação dos EUA na região é a segurança de Israel, algo que fica reforçado com a administração Trump mas não entra necessariamente em contradição com a Rússia. A posição de Israel em relação ao regime sírio é ambígua: por um lado, os dois Estados são “inimigos” declarados, mas por outro, muitos especialistas consideram que Israel prefere um inimigo conhecido e “domesticado” como o regime de Assad do que uma instabilidade que favoreceria grupos talvez mais radicais.
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